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Esquecidos pela sociedade também são parte da vida no Calçadão

Rua dos esquecidos. Era assim que a rua Batista de Carvalho, mais conhecida como Calçadão da Batista, era chamada antes de receber a nomenclatura atual. O nome foi dado pelo comerciante Baptista de Carvalho, no fim do século XIX, porque a prefeitura não havia nomeado a rua até então. Mesmo com o novo nome, o Calçadão ainda está presente no cotidiano de centenas de “esquecidos” que passam e vivem por lá.

Milhares de pessoas passam pelo centro da cidade todos os dias, seja por lazer ou a trabalho, para ir ao banco ou para comprar. É um grande shopping a céu aberto, localizado em uma única via que, há aproximadamente vinte anos, foi transformada em um amplo calçadão turístico (veja a história do Calçadão aqui). O lugar já é tão famoso que pessoas de outras cidades vêm para cá em busca de novas oportunidades, como é o caso de Anderson Jorge e Valdir  Cristiano da Silva, ambos de Ribeirão Preto. Anderson é ambulante há dez anos e é a terceira vez que ele vem para a Bauru para vender seus tapetes.

“Aqui as vendas são melhores. Corre mais dinheiro e é onde a cidade tem mais fluxo”, comenta.

Trabalhar na rua não é fácil para os ambulantes. Além de precisarem conquistar o cliente a cada abordagem, ainda têm que enfrentar a fiscalização diária.

Valdir nunca teve problemas com os fiscais do local. “Aqui é tranquilo. Sem discriminação nenhuma”, conta.

Por outro lado, o artista Gilmar Pinheiro diz que sofre muito com a fiscalização  que, segundo ele, “pega muito no pé”. “Quando ela chega, o que acontece? Se a gente não sair do lugar, eles vão chamar à polícia ou vêm com a peruinha deles lá  prender a mercadoria da gente”, enfatiza indignado o retratista.

A calçada que (des)abriga

Mas o calçadão não é só lugar de passagem. É também lugar de morada para muitos dos desabrigados que vivem no centro da cidade. Enquanto caminhava pela rua Gustavo Maciel – perpendicular à praça Rui Barbosa – à procura de entrevistados para esta reportagem, deparei-me com uma mulher aparentemente de meia-idade, que pedia esmola para quem passava por ali. Ela estava mal vestida, segurando apenas uma sacolinha com comida. Seus pés encardidos e calejados sentiam o atrito do asfalto sem nenhuma sola de calçado que pudesse amenizá-los da dor e da sujeira. O odor do álcool que exalava dela podia ser sentido de longe.

Não esperei muito e fui ao seu encontro em busca de uma entrevista. Era justamente por essas pessoas que eu estava ali naquela manhã de sábado do dia 12 de abril. Perguntei se podia entrevistá-la e ela embriagada me respondeu que sim. Perguntei o seu nome e ela, de pronto, me respondeu: “Eliana”. Nem se passaram frações de segundo e ela, de súbito, a si mesma corrigiu: “Meu nome é Alessandra”. Perguntei a sua idade e Alessandra, confusa de si, disse que tinha 19 anos. A face cansada denunciava que já era uma senhora com seus lá cinquenta anos de idade. Alessandra se distraía fácil. Era só alguém passar por ali perto que ela logo interrompia a conversa para pedir cigarro e dinheiro.

Em uma dessas ocasiões, quando ignorada por uma casal que passava, fitou o meu bloquinho de notas e a minha caneta e semelhante a uma criança desejosa por um objeto, os pediu para que pudesse escrever o seu endereço. Tentei convencer-lhe de que a entrevista só poderia ser realizada ali, naquela hora, mas não adiantou. Resignada lhe dei o bloquinho e ela começou num fluxo contínuo a escrever palavras soltas e desconexas. Um homem que passava pela calçada, ficou admirado quando a viu escrevendo – “Oh como ela escreve”, exitou. Alessandra parecia gostar de escrever. Assim que terminou, peguei o bloquinho, lhe agradeci e fui embora. Alessandra parecia já não ter mais consciência e se a tinha era tão confusa e desconexa que era difícil compreendê-la.

Alessandra não era a única por ali. Assim como ela, havia tantos outros ébrios que perambulavam pelo calçadão sem rumo algum. O álcool, naquela situação miserável, talvez fosse a única solução para que pudessem ser notados.

ao som de "Eterno Aprendiz", dançam Elizabete e seus amigos

Ao som de “Eterno Aprendiz”, dançam Elizabete e seus amigos [Foto: Amanda Tiengo]

As pessoas que passavam, quando as viam, se afastavam com medo ou cutucavam umas às outras para que observassem o estado deplorável em que os errantes se encontravam. Elizabete Aparecida Pereira, mais conhecida como Betinha, disse que há dez dias está debaixo de chuva e sol, dormindo nos bancos da praça Rui Barbosa. “Tomo banho às sete e cinquenta na rodoviária”, acrescenta a moradora de rua que sobrevive com a ajuda do Centro POP – Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, da Secretaria do Bem Estar Social. Betinha é desinibida e parece ignorar quem a ignora. Simpática, sorri o tempo todo. Quando me viu com a cinegrafista que me acompanhava, veio curiosa para saber o que estávamos fazendo. Respondi que estávamos fazendo um reportagem sobre o centro de Bauru e perguntei se ela não aceitava me conceder uma entrevista. Betinha, encantada, logo aceitou, “ai que chique”, exclamou ela. “A praça é a minha história. Eu nasci aqui, morei aqui. Não morri ainda, mas nasci aqui e a minha história é esta praça”, comenta.

Betinha, é apenas mais uma, assim como Alessandra, Anderson, Valdir, Gilmar e tantos outros que vivem e sobrevivem do fluxo econômico do centro. Quando questionados sobre o por que eles escolhiam a região central, ao invés de outros lugares da cidade, todos foram unânimes: “aqui é onde circula o maior número de pessoas”.

 Mesmo sob a indiferença alheia,  Betinha e seus amigos, também moradores de rua, parecem não se importar. Eles, literalmente, dançam diante da sociedade ao som de Eterno Aprendiz, tocada por uma banda instalada no coreto da praça. 125 anos se passaram e a rua Batista de Carvalho, mesmo com outro nome, ainda não deixou de ser a Rua dos… Ambulantes, Andarilhos, Moradores de Ruas, Artistas. Todos dignos de maiúsculas como qualquer nome que se preze e que não se pode esquecer. A “rua dos esquecidos“, na verdade,  está cheia de gente que quer e merece ser ouvida.

Reportagem: Jéssica Fonseca

Produtor multimídia: Amanda Tiengo

Edição: Paula Monezzi

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