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“A fala da criança é soberana e a nossa função é protegê-la”

Ieda Maria de Souza, atual Presidente do Conselho Tutelar II de Bauru, comenta sobre a atuação do órgão que cuida do bem estar dos menores vulneráveis na cidade. Desde 2013, é Conselheira Tutelar em Bauru, e nos conta sobre os atendimentos mais recorrentes, o trabalho em conjunto da Rede de Proteção de Bauru e sobre os desafios que o sistema encontra diariamente.

MARIANA: Como funciona o Conselho Tutelar de Bauru?

IEDA: Somos um órgão autônomo, permanente e protetivo. Isso porque acima de nós está apenas o Juiz da Vara da Infância, Dr. Ubirajara Maitinguer, independente de que se altere o gestor da cidade, temos nossas próprias eleições, e não somos um órgão jurisdicional, mas protetivo.

Ou seja, não julgamos, mas encaminhamos o julgamento e isso vale para qualquer aplicação de medida. Logicamente, em situações de risco e vulnerabilidade, quando uma criança está com seus direitos violados, e a denuncia é constatada de imediato como um fato real, antes de comunicar o Juiz sobre o que está acontecendo, nós aplicamos a medida protetiva e na sequência informamos o juiz sobre aquilo que fizemos.

“No Conselho Tutelar, somos guardiões do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA é nosso livro de cabeceira e atuamos com base nele”, conta Ieda. Imagem: Laura Fontana.

“No Conselho Tutelar, somos guardiões do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA é nosso livro de cabeceira e atuamos com base nele”, conta Ieda. Imagem: Laura Fontana.

M. Como são os atendimentos no Conselho Tutelar?

I. Os atendimentos do Conselho acontecem fisicamente no prédio da SEBES (Secretaria de Bem Estar Social – Av. Alfredo Maia, quadra 1, Vila Falcão), já que não temos sede própria. Esse lugar é estratégico pela proximidade com as equipes de CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e com o pessoal do CREAS (Centro de Referência de Assistência Social).

M. Quais os principais casos atendidos?

I. Nos dois conselhos por dia atendemos em média 70 pessoas. Falta escolar, mães buscando creches, usuários de álcool e drogas, crianças abusadas, espancamento. Atendemos muitos casos de falta escolar, isso porque vivemos hoje a sociedade do ‘ter’ e não do ‘ser. É muito comum chegar aqui um pai e uma mãe dizendo “nossa, mas eu dou tudo pro meu filho, tem o melhor boné, tá na melhor escola”, e ele já está envolvido com alguma SPA (Substância PsicoAtiva), que são álcool e drogas, e dentro da própria casa ninguém percebeu.

Em casa não se conversa mais, trocam uma mensagem no facebook, no whatsapp, um email que manda pro filho, e lá um belo dia vem uma surpresa. As escolas mandam a relação de faltas pra a gente e convocamos os pais para que sempre se mantenha o direito à educação preservado, quer dizer, a criança tem que estar na escola.

M. Quais os encaminhamentos após o atendimento?

I. Nós apresentamos a quem vem aqui toda a estrutura da Rede Socio Assistencial. Muitos que nos procuram estão passando por dificuldade financeira e dificuldade de alimentação e não sabem nem da existência de um CRAS. Esse serviço faz uma triagem, faz o cadastro do bolsa família, às vezes faz encaminhamento para o “Minha Casa, Minha Vida”. Também encaminhamos para Postos de Saúde e para os CAPS, por exemplo quando uma criança chega aqui por usar SPA e precisa de acompanhamento psicológico e ambulatorial.

As vezes a questão da criança é um problema comportamental, é não lidar com o ajuste da família. O modelo de família não é mais o tradicional, não é pai, mãe, filho, filha e cachorro. às vezes são dois pais, duas mães, ou nem pai nem mãe, a avó ou uma tia é guardiã por que os pais estão reclusou ou porque não quiseram o filho, e às vezes não está com nenhuma pessoa mais da família extensa (diretamente ligados, ainda que por laços sanguíneos).

A Rede de Proteção de Bauru, portanto, é composta pelo CRAS, CREAS e o Fórum. O CRAS está sempre envolvido nos casos que atendemos, já o CREAS é para casos de maior gravidade, como abusos ou violência doméstica. Ali há uma área especializada no atendimento das mulheres vítimas de violência, na unidade da Raposo Tavares.
A psicóloga do CREAS, especialista em sexualidade e abuso, nos dá bastante apoio porque infelizmente atendemos muito casos de abuso. Dentro da rede, além das instituições acolhedoras para crianças e adolescentes, temos abrigos para mulheres, casas de passagem e residências inclusivas, para deficientes.

M. E nos casos de destituição da guarda da criança?

I. Existe um estereótipo sobre o Conselho Tutelar, muito se diz que ele “tira a criancinha da casa da mãe”, mas não, o conselho não é um órgão punitivo, ele é um órgão protetivo, mas toda vez que uma criança ou adolescente encontra-se em situação de risco na família, essa família precisa ser estudada.

Em alguns casos, acompanhando, a gente percebe que não há o mínimo de estrutura necessária para se criar aquele cidadão em casa. Ou porque vai ser vítima de violência doméstica, psicológica, ou vai ser uma pessoa usada pelo tráfico, na prostituição.

Enfim, recebemos a denúncia, visitamos o local, e uma vez constatado maus tratos, essa criança é retirada do ambiente familiar, emitimos um mandato judicial, e a encaminhamos para uma instituição cuidadora, que chamamos de abrigo.

M. O que acontece com a criança no abrigo?
I. Nos abrigos (são 8 em Bauru), serão trabalhados o emocional dessa criança, se os pais podem ou têm interesse de visitar, entre outras coisas. Fazemos em conjunto com a Rede vários estudos até chegar a uma audiência com o juiz, e se a família não quiser a criança,investigamos os laços consanguíneos da família extensa, e à vezes não encontramos ninguém. Então temos fazer a restituição do poder familiar e encaminhar para a adoção. Então, os técnicos do Fórum tomam a frente do processo.

A parte mais triste é quando o processo envolve a destituição do poder familiar. Todo o processo de adoção vai acontecer após a destituição e a medida protetiva.

M. Quando a criança entra para o Cadastro Nacional de Adoção, quem acompanha a família que quer adotar?

I. Se alguém manifesta o interesse em adotar, faz o cadastro e aí o Fórum estuda porque ele querem adotar. Tomamos cuidado porque infelizmente Bauru já ocupa uma posição no ranking de tráfico e prostituição infantil. São analisadas as escolhas dessa família: se só quer menino, ou menina, ou recém nascido, ou até 7 anos…. As crianças com mais idade são mais difícil de ser adotadas, porque a família geralmente quer alguém mais novo que possa ir se moldando dentro do ambiente familiar.

A Associação Flor de Liz atua junto com o Fórum no processo de adoção. Ao contrário do que parece, não é só ir no abrigo, pegar uma criança e começar a chamar de filho. Existe toda uma questão psicológica pra essa criança, a aceitação da nova família, a consciência de que ele faz parte da família agora, de ser tratá-lo como membro da família. Principalmente, a família que adota deve entender que às vezes ele já foi rejeitado na própria gravidez, ou na gestação já foi rejeitado, e em um determinado momento da vida ele vai mostrar isso. Então às vezes o conselho vai atuar depois que o casal já tá com uma criança que foi adotada, e o casal não sabe como lidar. Ou a criança começa a crescer e fala “você não é meu pai, nem minha mãe” e nesse momento a gente faz a intermediação.

M. No site oficial do Conselho Tutelar do Distrito Federal, há documentos destacando o racismo contra as crianças e adolescentes. Na adoção, é constatado que a maioria deseja crianças brancas. Como o RACISMO aparece aqui no Conselho Tutelar de Bauru?

I. A questão do racismo é muito ampla, é cultural, as pessoas não foram preparadas pra respeitar os outros. Nós damos palestras em escolas como combate ao bullying, e apesar disso ainda vemos muito preconceito. A grande diferença do nosso tempo agora é que hoje, você chamar uma pessoa de macaco, você vai responder. Não vai falar você é um preto, é negro, raça, não a cor da pele, há muito racismo dentro das escolas ainda, esse preconceito ultrapassa as barreiras da família.
Recentemente eu atendi um caso de um menino negro que era adotado por uma família branca, que aguardou até os 18 anos pra vir aqui. Me disse que quando saia com a família para passear e perguntavam para a mãe adotiva se ele era o filho, ela respondia “É, só que ele ficou mais tempo no forno”. E ele teve que aguentar isso por muito tempo porque no tinha pra onde ir. No atendimento, ele disse isso chorando, num tom de desabafo de quem aguentou aquilo a vida inteira. Pra ele, “talvez era melhor ter deixado eu crescer num abrigo do que me adotar pra fazer isso”. A diferença de pele era gritante e por algum motivo essa mãe escolheu um negro, sendo de uma família branca.

“Me disse chorando que quando saia com a família para passear e perguntavam para a mãe adotiva se ele era o filho, ela respondia ‘É, só que ele ficou mais tempo no forno'”

A gente sabe do preconceito como uma forma velada que a sociedade convive. Isso aparece nos plantões policiais, por exemplo, muitas vezes um adolescente negro que estava perto de alguém que era usuário de substância é apreendido sem ter feito nada. Automaticamente passa a ser julgado, pré-julgado.

Coloco o racismo como uma forma de bullying dentro das escolas, e o preconceito aparece de todas as formas. Atendo um adolescente que não quis mais ir à escola porque tem uma doença genética que entorta a coluna conforme ele cresce e é chamado de corcunda, ponto de interrogação. Há meninas chamadas de baleia. Uma menina em Bauru já cometeu suicídio por causa desse preconceito, porque pra ser aceito num grupo, você tenta mudar algumas coisas. Essa menina que morreu queria ter o corpo das crianças magras, o padrão da estética da escola, do grupinho, era aquele. Ela parou de comer e definhou até falecer. Essas pessoas que fazem o bullying são co-responsáveis por essa vida.

No caso da adoção, você preenche uma ficha como se fosse numa loja escolher um produto, mas nem sempre esse ‘produto’ vem dessa forma. Sempre que chega uma criança ao abrigo, mesmo que não se encaixe no que as famílias desejam, todas são consultadas. Algumas chegam a ver, mas é preciso ter uma estrutura para uma pessoa branca e loira, adotar um negro. Como ele vai ver isso? Você terá que se preparar e redobrar seu amor a ele para que não sinta essa diferença.

M. Como a criança que vem fazer uma denúncia é atendida?

I. O caso do menino Bernardo ficou famoso por ele ter ido procurar e não ter sido efetivo a ponto de um desfecho trágico de sua morte. Muitas crianças vem aqui fazer denúncia, pois aqui as portas estão abertas, sendo depoimento de uma criança ou adolescente, de uma mãe ou pai com a criança, damos a mesma importância.

Até porque, pra uma criança vir e sentar aqui na nossa frente e expor alguma angústia, é porque alguma coisa tem. A gente sempre parte do pressuposto que toda denuncia é fundada. Se for infundada ou não, vamos descobrir depois. Então, supondo que venha uma criança falar que está sendo abusada ou espancada, o primeiro passo é fazer uma averiguação na rede, saber se já há algum registro dessa família. Muitas vezes num atendimento, ja percebemos quem está mentindo, e a fala da criança é soberana. Muitas vezes, a criança está aqui comigo, e pergunto se ela sustenta o que está dizendo, e ai vamos para a delegacia. chegando lá fazemos o boletim e a partir disso ela não volta mais pra casa. Ela já vai pra um abrigo e a gente vai estudar.

“Pra uma criança vir, sentar aqui na nossa frente e expor alguma angústia, é porque alguma coisa tem. A gente sempre parte do motivo que toda denúncia é fundada. Se for infundada ou não, vamos descobrir depois.”

M. Como é o procedimento com as crianças que são retiradas da família assim que nascem?
I. Existe um trabalho da rede para diminuir o número de acolhimentos da maternidade. Quando uma mãe viciada em crack, por exemplo, passa mal e vai a um posto, e eles detectam a situação, vêem que ela não está fazendo o pré-natal e logo disparam um email para a rede com essas informações. Aí a gente vai visitar pra dar tempo de fazer os pré natais. Pelo protocolo, a gestante que não fez 6 pré-natais terá a guarda do filho retirada assim que ele nascer, nem sai da maternidade com ele.

Os abrigos não podem ser depósitos de criança, então vamos atrás dessas grávidas pra fazer o acolhimento e dar a chance de ficar com a criança assim que nascer. Em alguns casos, não tem jeito, e a maternidade liga para fazermos o acolhimento. A mãe já não ve mais a criança. Tem historicos em que já é o 13º filho da mulher. Dependendo do historico, o Juiz encaminha para uma familha acolhedora e depois ja vai para o cadastro de adoção.

M. Muitas vezes a mãe não tem condições, não quis engravidar e nem quer ter o filho. Há muitas pessoas que defendem que se possa fazer um aborto para que a criança não nasça nessas condições. O Conselho tem posicionamento sobre a legalização do aborto?

I. Nossa posição é totalmente contra isso. Em momento algum você vai cercear uma vida. O aborto é tido como medida legal em caso que haja o risco, somente esse. Por isso a gente trabalha a prevenção, tentamos trazer pra essa mãe a identidade desse filho. Existem procedimentos médicos como laqueadura, para ajudar no planejamento familiar que eles não costumam fazer, mas isso é feito entre um médico e a paciente. Pra a gente cabe cuidar de quem já tá ali, nós não temos autonomia pra decidir sobre a vida de alguém. Em momento algum isso passa pela esfera do Conselho Tutelar.

M. Ainda se faz adoção ilegal?

I. Nos últimos dois anos não temos registros de isso ter aparecido no Conselho. A adoção ilegal vai aparecer em algum momento da vida da criança, pois em alguma hora ela vai entrar em uma escola e terá que levar a documentação que vai comprovar quem é quem. E isso vai pro cartório, que vai denunciar o que chegar de estranho, assim como a escola.

M. O que falta mudar na estrutura da Rede?
I. Temos conversado muito a respeito disso. Falta para nós um mecanismo pra aproximar a família aos filhos. A família é o pilar, é a sustentação da casa, e muitos casos de drogas, violência, estupro, adolescentes em liberdade assistida, começaram porque o problema começou em casa. A rede toda está buscando ideias pra trazer as famílias pra dentro da escola, dos conselhos, do CRAS, pra mãe e pai perceberem que aquela criança depende deles, e que cada conversa já pode descobrir alguma situação, que será levada ao Conselho e podemos agir a tempo. Esse é o nosso maior desafio: não é só cuidar, acolher, abrigar,destituir, adotar. É antes, trazer esses pais para não chegar a esse problema, para que a gente tenha uma sociedade mais saudável pra se viver.


 

Para conhecer  mais dados sobre a adoção em Bauru, acesse “Caminhos da falta de um lar

Ieda Maria de Souza é formada em Relações Públicas na Fundação Educacional de Bauru com especializações em marketing pela Fundação Getúlio Vargas, gestão de pessoas pela Fundação Armando Alvares Penteado e educação ambiental na Faculdade São Luís, de Jaboticabal.

 

Serviço:

Conselho Tutelar 2

Endereço: Av. Alfredo Maia, quadra 1 s/nº – Vila Falcão

Horários e Telefones: 2ª à 6ª – 8h às 18h – (14) 3227-3339 / (14) 3227-3499

Sábados, Domingos, Feriados e Período Noturno: (14) 98804-5530

Para denúncias anônimas de violação dos direitos das crianças e adolescentes –  DISQUE 100

 

Texto: Mariana Caires

Produção Audiovisual: Laura Fontana

 

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