Entre jovens brancos, o número de assassinatos cai para 18. Dos mortos entre 15 e 24 anos, 77% são pretos ou pardos
Homicídios dolosos são a principal causa de morte entre jovens no Brasil. Isso é o que diz o segundo Relatório da CPI do assassinato de jovens publicado em 2016. O número de mortes intencionais violentas no Brasil, de janeiro de 2011 a dezembro de 2015, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ultrapassa o número desse mesmo tipo de morte, no mesmo período de tempo, na Síria, país que está em guerra civil desde 2011. As principais vítimas são jovens pretos e pardos das camadas mais pobres.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016 traz alguns dados e números que exemplificam essa afirmação e que podem ser observados no gif a seguir.
As pesquisas atuais sobre violência feitas no Brasil apontam para o seguinte cenário: maior número de mortes de negros; aumento dos homicídio por armas de fogo na população negra; diminuição deste número na população não negra e grande diferença nas chances de ser vítima de homicídio entre negros e não negros. Esses dados podem ser observados no Mapa da Violência de 2016 – Homicídios por arma de fogo, no Atlas da Violência de 2016 e no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016. E podem ser conferidos nos infográficos abaixo.
Relatos da rua
Fernando* é um jovem negro, morador de Bauru. Ele já sofreu mais de uma vez com a violência policial. Conta que não pode subir na comunidade onde tem amigos por conta da perseguição da Força Tática.“Na última vez, eu percebi que eles estavam me seguindo. Pensei: ‘o que está acontecendo? Os caras estão querendo me matar’. Minha sorte é que tinha mais gente na rua, crianças e famílias. Se não tivesse eu não sei o que eles fariam comigo. Se em rua movimentada os caras querem bater em nós, imagina em rua deserta o que não vão fazer?”.
João* é um bauruense negro de meia idade, e diz que sabe que a polícia e as pessoas têm problema com a sua cor. Já foi abordado diversas vezes e em quase todas foi agredido.”Quem é mais violento é a Força Tática, eles sempre passam com as armas na mão. E você não pode encarar não, senão eles descem do carro. Eu sempre que passo perto abaixo a cabeça, se você olhar para eles, eles já descem com a arma nas mãos para te ‘enquadrar'”, relata João.
Tanto João quanto Fernando dizem ter medo da polícia. Para João, ela não significa segurança, função primordial da corporação. “Ela significa segurança para quem tem dinheiro, para quem não tem, significa medo”, critica o morador de Bauru. As ameaças, a falta de testemunhas e a impunidade dos policiais são as principais reclamações.
“O que acontece a noite só a coruja vê. Mas a coruja não fala, né? Eles somem mesmo com a gente, mas a gente não tem como provar” (João)
Fernando conta outras abordagens que, em sua opinião, foram violentas. Um dia, quanto voltava para sua casa depois de um passeio, um policial de dentro de um carro o viu, foi na sua direção e o ‘enquadrou’. “Eles encostaram do meu lado e já desceram apontando a arma na minha cara. Aí eu perguntei o que estava acontecendo. Eles disseram ‘o que tá acontecendo o c**, encosta aí rapaz, tô mandando você encostar’. Para quê apontar a arma na minha cabeça? E se ela dispara sem querer?”, contesta.
Além da violência policial e da certeza de que o racismo é o culpado por essa violência, João também já sofreu em outras instâncias. Relatou uma vez que entrou em um mercado e foi seguido pelo segurança. “Fiquei muito bravo, briguei com o segurança, eu não ia roubar nada. Chamei o gerente, mas não apareceu ninguém. Nessas horas ninguém aparece mesmo. Eu não entro mais lá, sempre que vou com minha irmã espero do lado de fora”.
“A gente não tem o direito de ir e vir. Estamos sempre sob suspeita. Tudo eles desconfiam” (João)
Genocídio
É com base em dados e depoimentos como esses que movimentos sociais, alguns órgãos públicos e entidades da sociedade civil denunciam o genocídio da população negra no Brasil. É o caso, por exemplo, do relatório da CPI do assassinato de jovens, da Anistia Internacional, do Movimento Mães de Maio, do Fórum Nacional de Juventude Negra, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e de mídias alternativas como os portais Geledés e Alma Preta.
Segundo Antonio Carlos Barros, presidente da Comissão de Negros e Assuntos Discriminatórios (CONAD), é possível afirmar a existência de genocídio ao constatar a existência de hierarquias entre as diferentes etnias. “Existe uma manutenção de estruturas que indicam que existem ‘raças superiores’ a serem preservadas e ‘raças inferiores’ a serem eliminadas, como se fossem ‘um mal social’. Portanto, essa leitura acaba sendo aplicada a qualquer tempo histórico, seja em questões nazistas, africanas, mediterrâneo ou norte-americanas”.
Patricia Alves, coordenadora de educação do Instituto Omolara Brasil e pesquisadora do Núcleo Negro Unesp para Pesquisa e Extensão, complementa que para além da morte e sumiço de pessoas negras, o racismo está na negação de educação de qualidade, moradia, saúde, segurança, ascensão social e econômica à população negra.
No áudio abaixo, a pesquisadora Alves comenta sobre o sumiço de pessoas negras.
Solon Neto, membro do Conselho Municipal de Direitos Humanos de Bauru, também aponta o genocídio como uma causa estrutural do racismo. “A ideia de genocídio não está só ligada à morte, ela está também ligada à estrutura. No caso de Bauru, através da estrutura você pode ver quantidade de pobres da cidade. Quando você pega o cadastro único da cidade – iniciativa do Governo Federal para identificar e conhecer as famílias brasileiras de baixa renda – tem mais de 100 mil pessoas. E quando você observa a característica dessas pessoas, elas são negras, em sua maioria. Quando você vai às periferias da cidade você observa que há uma diferença racial muito forte e é uma característica que se repete a nível nacional”, explica.
Bases para o genocídio
Antonio Barros aponta para os motivos históricos que fazem com que, em sua opinião, o Brasil seja estruturalmente racista. “A história do Brasil está fundamentada na construção de uma nação que não buscou o desenvolvimento de um povo, mas a manutenção de uma sociedade europeia portuguesa decadente, que precisava se manter a qualquer custo. Enquanto a Inglaterra desenvolvia novos processos diante das questões de escravatura, o Brasil construiu a Nação sobre o império do sangue negro e indígena”, afirma.
Após o fim da escravidão não houve um processo que visasse a inserção da população negra na sociedade civil. Segundo Patrícia Alves, propagou-se a ideia do embranquecimento da população, levando negros e negras às margens da sociedade. “Se a gente voltar lá naquele discurso de 1911 de João Batista de Lacerda no Primeiro Congresso Mundial das Raças, onde se pensa o extermínio da população negra como um projeto de país, a gente tem uma ideia da estrutura racista em que se baseou nossa sociedade”, explica ela.
A trajetória histórica e política do Brasil caminhou para o cenário atual e é apontada como um dos grandes responsáveis pelo genocídio da população negra. O relatório da CPI de assassinato de jovens aponta que “a escravidão baseada na clivagem racial acarretou tanto a chaga do racismo, quanto do preconceito e da discriminação racial. Até os dias de hoje as desigualdades sociais – notadamente às de renda e, principalmente, às de oportunidades, têm na diferenciação racial sua principal raiz explicativa”.
Políticas Públicas
Em 2011, o Governo Federal, em parceria com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, a Secretária Nacional de Juventude e a Secretaria de Governo da Presidência da República começou a materializar o programa Juventude Viva, que foi lançado em 2012.
O programa buscava a ampliação de direitos dos jovens, a desconstrução da cultura da violência, o enfrentamento do racismo institucional e a transformação de territórios com altos índices de homicídio. Sua prioridade era o combate à morte em massa da juventude negra. Atuou em 142 cidades que apresentavam elevado índice de homicídio de jovens negros. Hoje o programa se encontra em reformulação e suas atividades estão suspensas. O retorno do Juventude Viva está atrelado ao lançamento da segunda fase do programa, segundo informações da Secretária de Promoção da Igualdade Racial.
Solon Neto aponta as cotas raciais estabelecidas nas faculdades federais e em algumas estaduais, como a Universidade Estadual Paulista (Unesp), como política pública para o combate ao genocídio da população negra. De acordo com Solon, as cotas raciais nas universidades públicas impulsionam o acesso de jovens negros ao ensino superior, o que pode os levar tanto a setores estratégicos para discussão do racismo e do seu combate, como também proporcionar a discussão dessa estrutura racista dentro da universidade, ambiente marcado por maioria branca.
Em relação à importância dos Conselhos Municipais de Direitos Humanos em Bauru, Solon Neto aponta sua função de recolher denúncias e levá-las para setores públicos que possam propor políticas de combate, além de tentar levar crimes de violação de direitos humanos a instâncias que possam julgá-los. Ele afirma que há necessidade de políticas públicas e que o Estado é o principal responsável por promovê-las.
Abaixo você confere um infográfico com informações da quantidade de dinheiro gasto com segurança pública no Brasil. Os dados foram retirados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016.
Resistência por meio da arte
No dia 20 de maio de 2017, aconteceu o 1° Encontro de Cultura Negra de Bauru. Organizado por Yoledê Cultural. O evento contou com dança, música, literatura, arte, moda, culinária, palestras e artesanatos de origem africana. O evento fez parte da comemoração da 15° Semana Nacional de museus e foi realizado no Museu Ferroviário de Bauru.
De acordo com Patricia Alves, o encontro é uma forma de resistência ao racismo. “Ele busca trazer as várias pessoas, homens e mulheres que atuam de diversas formas, para preservar e valorizar, por isso é resistência”, aponta.
Para a pesquisadora, espaços e eventos como esse são muito importantes. Todas as pessoas que o compõe e que levam consigo uma forma de expressão que valoriza a cultura negra ajudam na visibilidade e valorização dessa cultura. “Não estamos fazendo só um encontro, mas somando à luta e se percebendo dentro disso”, acrescenta Patricia Alves.
Ela comenta no áudio abaixo a continuação do 1° Encontro de Cultura de Negra em Bauru e a importância de seguir preenchendo os espaços públicos com temáticas negras.
A playlist abaixo traz músicas que denunciam o genocídio da população negra e são uma forma artística de denúncia e resistência que, junto com outras formas de expressão, são de grande importância para a visibilidade e mudança desse cenário.
*Os nomes utilizados em são fictícios e foram mudados para preservar a segurança dos entrevistados.
Foto de destaque: EBC
Reportagem: Ana Carolina Ribeiro
Produção multimídia: Mariana Pellegrini Bertacini
Edição: Ana Flávia Cézar