A polícia militar brasileira é reconhecida internacionalmente como uma das que mais matam. Entenda melhor sobre os mecanismos de segurança pública historicamente adotados no país
A violência da polícia brasileira, marcada pelo militarismo, é um tema recorrente no relatório da organização internacional Human Rights Watch (HRW). Em 2018, pelo segundo ano consecutivo, o texto destinado ao Brasil pede que medidas sejam urgentemente tomadas para conter os casos de mortes cometidas por policiais. “Os abusos praticados pela polícia, incluindo execuções extrajudiciais, contribuem para ciclo de violência em áreas de alta criminalidade”, argumenta.
Segundo a organização, estatísticas alertam, ainda, para o risco que os próprios profissionais de segurança correm dentro dessa realidade. “Colocam em risco a vida de outros policiais que ficam sujeitos à retaliação pelos abusos violentos dos colegas. Por consequência acabam aumentando a violência durante confrontos com suspeitos”, aponta o texto.
De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 385 policiais foram mortos no Brasil em 2017, ano do último levantamento. A maioria dos casos ocorreu fora do horário de trabalho dos agentes, o que deixa ainda mais evidente que os homicídios podem ter sido motivados por retaliações. Além disso, no mesmo ano 5.012 pessoas foram mortas por policiais no país, um aumento de 26% em relação ao ano anterior.
Ação policial como reflexo da sociedade
Entre os casos de violência policial, existe o que alguns especialistas chamam de “racismo institucional”. De acordo com uma pesquisa do Gevac (Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos) da UFSCar, dois em cada três jovens mortos pela polícia militar de São Paulo são negros e 79% dos policiais envolvidos são brancos.
Simultaneamente ao número alarmante de morte de negros, a maior parte dos casos de violência policial acontecem contra criminosos, ou até mesmo inocentes dos bairros pobres das cidades brasileiras. O Rio de Janeiro é um exemplo claro dessa realidade. As unidades de polícia pacificadora (UPP) operam constantemente em comunidades carentes em nome do combate ao tráfico de drogas, mas que carregam em seu histórico casos como o do Amarildo e do dançarino DG, amplamente divulgados pela mídia.
Para um policial militar que prefere não se identificar, a guerra às drogas é um jogo perdido. “A guerra interna contra o tráfico de drogas se alastrou de uma forma, que eu não saberia dizer outra solução, senão descriminalizar. Nesse cenário de guerra entre facções, a farda militar permite uma ostensividade que não existe nas outras polícias. Acredito que a presença do militar consiga inibir os crimes contra a vida, mas o sistema está fracassado, não existe viatura e policial suficiente para todos os cantos das cidades”, aponta.
O PM acredita ainda que o modelo de segurança pública brasileiro não é eficiente. “O regime militar deveria ser exclusivo das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) pois lidam com a defesa do país, lidam com guerras. A polícia militar lida com a população geral, e deveria ter um outro tipo de treinamento para tal”, opina. Sua perspectiva vai de encontro com uma onda de pesquisadores que defendem a desmilitarização da polícia.
A função da polícia militar
Segundo o site oficial da polícia militar, a instituição tem caráter ostensivo e por isso anda fardada, com o objetivo de passar segurança à população. “Nesse contexto, a polícia militar tem papel de relevância, uma vez que se destaca, também, como força pública estadual. Primando pelo zelo, honestidade e correção de propósitos com a finalidade de proteger o cidadão, a sociedade e os bens públicos e privados”, declara.
Ao contrário da polícia civil, que trabalha na investigação de casos já ocorridos, a polícia militar vai às ruas na intenção de coibir o crime no ato ou preveni-lo. Entretanto, apesar desse direcionamento mais popular apresentado pela organização atualmente, o modelo de polícia deriva das organizações de defesa do Estado e de elites regionais. Isso explica certas operações realizadas ainda nos dias de hoje que não priorizam o cidadão, como a repressão em manifestações populares, por exemplo.
“No treinamento, aprendemos que devemos preservar a vida humana sob qualquer circunstância, até com o risco da própria. Respeitar as autoridades superiores e as ordens vindas de cima. Hierarquia e disciplina”, relata o policial militar entrevistado para esta matéria. “O policial é um representante do Estado, é o braço armado, e nele é jogado a responsabilidade de entrar na viatura e fazer o que é determinado. A luta deve ser contra o sistema que permite que nossos governantes usem a força armada em favor de si e do capital”, opina.
David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que, “a polícia surge inspirada nesse modelo para a proteção de um Estado, de uma província. Isso muda um pouco na época de 30, quando acontece uma revolução no estado de São Paulo, que se revolta contra o governo federal. Nesse momento fica bem claro que se tinha poderes estaduais muito fortes(…) Uma história de militarização das polícias estaduais que serviam aos poderes das elites estaduais”, completa o especialista.
Desmilitarização é a solução?
De acordo com Marques, é por volta dos anos 60 e 70 que começa a surgir debates de ideais sobre a polícia brasileira e discussões sobre a profissionalização dos policiais, período coincidente com a ditadura militar. “Isso vai se aprofundar na redemocratização, com a ideia de polícias profissionalizadas”, aponta.
“Não me parece que decorra exatamente da questão do militarismo a eficiência ou não desse modelo. A polícia tem outros problemas, como a forma que ela é organizada hoje, principalmente a questão dos regulamentos disciplinares internos, que servem para que uma elite da polícia, no caso o oficialato, exerça seu poder sobre os praças, que são os estratos inferiores das corporações”, pontua o especialista em segurança.
A solução seria uma reorganização dos órgãos responsáveis. Dessa forma, Marques defende a criação de um sistema único de segurança pública que tenha como base políticas públicas fundamentadas em evidência sobre o que de fato funciona e o que não funciona. O objetivo seria otimizar a produção de informações e aplicação de conceitos e medidas, aumentando a eficiência da polícia.
O policial militar, que defende a desmilitarização, também aponta deficiências no modelo de segurança pública vigente. “Existe a polícia civil, a polícia militar e a Polícia Federal. Elas quase não se comunicam e pouquíssimas vezes trabalham em conjunto. Isso permite que o crime organizado consiga obter êxito em âmbito nacional. Afinal, o tráfico de drogas movimenta bilhões de reais por ano, e tem consigo, representantes em todos os poderes. São muitos os pontos desfavoráveis quando não se tem uma unificação das polícias”, argumenta.
Histórico de repressão
Os casos de repressão policial em manifestações populares e em comunidades carentes não são uma exclusividade do presente. Há uma série de documentos históricos, pesquisas e produtos culturais que denunciam a violência da polícia militar desde que ela surgiu.
De acordo com o relato anônimo do policial militar, “a instituição só lida com isso quando o caso chega na mídia, quando há denúncia no Ministério Público. A polícia que age em manifestações é especializada nesse tipo de situação. Ou seja, eles estão ali pra desfazer aquele ‘conflito contra o Estado’, e nessas situações tem o aval do Estado mesmo”.
“O policial é truculento apenas com os que não tem como alcançá-los, e se chegar ao conhecimento dos superiores, eles não seguram a bomba. Existem diversas punições administrativas que chegam até a exclusão. O policial também pode ficar preso em uma prisão militar”, completa o PM.
Para o coordenador do Fórum de Segurança Pública, “desvios existem em praticamente todas as corporações que a gente for levantar. A questão das ações truculentas, é uma especificidade de organizações policiais que têm um monopólio do uso da força do estado. Então, em casos que esse poder, essa prerrogativa está colocada, isso deve ser sempre alvo de controle”.
No dia 31 de março deste ano, o golpe militar que instaurou uma ditadura no Brasil completou 55 anos. Em um cenário cujo debate ideológico se acentuou desde a queda do governo Dilma e se firmou nas últimas eleições presidenciais, o tema foi amplamente discutido nas redes sociais e canais midiáticos do país.
O militarismo no governo atual
O presidente Jair Bolsonaro, conhecido por sua identificação com o militarismo, deu uma declaração polêmica em que incitava unidades militares a realizarem comemorações ao momento histórico que deu início à ditadura. Em outras oportunidades, ele já apoiou o golpe militar e denominou como “revolução”.
Todavia, em nota emitida pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, o Ministério Público Federal condena a atitude do presidente: “É incompatível com o Estado Democrático de Direito festejar um golpe de Estado e um regime que adotou políticas de violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes internacionais”.
O pacote de medidas para a segurança pública do atual presidente também vem gerando discussões. O principal ponto é a flexibilização quanto ao porte de armas. Confira mais na matéria sobre o pacote anticrime.
Fontes: G1, Portal de Notícias / Folha de São Paulo / Jus Brasil / Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Créditos de imagens do vídeo: Reprodução/ Arquivo de Memória Folha de São Paulo e Estadão
Repórter: Giovanna Castro
Produtora multimídia: Aline Campanhã
Editor: Rafael de Toledo