A batalha do Marco Civil não acabou
O Marco Civil da Internet foi aprovado pela Câmara Federal no dia 25 de março de 2014, após dois anos de discussão entre sociedade civil, governo e empresas de telecomunicações. Muito se fala sobre o projeto de lei e como ele é importante para o Brasil, mas o que de fato ele muda em sua vida?
A ideia inicial do Marco Civil da Internet surgiu em 2007, quando o deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB/MG) passou a patrocinar um projeto de lei para tipificar o que era crime cibernético. A proposta de Azeredo causou polêmica, pois tinha muitas brechas que poderia condenar inocentes e limitar a liberdade na rede. A partir daí, setores da sociedade civil e deputados se reuniram para criar uma lei que especificasse direitos e deveres dos usuários de internet no Brasil, dando origem ao PL 2126/21 que ficou conhecido como Marco Civil.
Desde 2011, ano de início da tramitação do projeto de lei na Câmara, o texto passou por algumas mudanças, relacionadas principalmente aos seus três pontos mais polêmicos: neutralidade da rede, armazenamento de dados e a questão dos data centers. Contra a aprovação do texto original estavam PMDB e as empresas de telecomunicações, a favor estavam a sociedade civil e todos os outros partidos, inclusive os de oposição ao governo Dilma Rousseff. A aprovação pelos deputados foi considerada uma grande vitória para a sociedade e o governo federal. Apesar disso, para o advogado Maurício Augusto de Souza Ruiz, o Marco Civil não trouxe nada de inovador. “O grande mérito do Marco Civil não são as inovações na área tecnológica e na área de informática, e sim reunir diversos conceitos jurídicos existentes, em várias áreas do Direito em uma única lei, uma única norma”, diz.
Marco Civil – Neutralidade
O artigo nono do Marco Civil estabelece o princípio de neutralidade da rede, o que significa que as empresas provedoras não podem mais cobrar preços diferentes baseados no conteúdo que o usuário acessa. O professor de Relações Internacionais da Universidade Sagrado Coração (USC), Daniel Freire, explica o que muda com a aprovação da lei. “Os provedores de serviço não poderão distinguir aqueles serviços que eles poderão vender ao consumidor, por exemplo, eu só vendo o acesso as redes sociais e a e-mail, e não vende o acesso a outros conteúdos, não vai mais poder vender pacotes fechados, não vai poder mais ter essa discriminação, seja o que estiver oferecendo”, diz.
Para os defensores da aprovação do Marco, a neutralidade era um ponto inquestionável. Várias entidades da sociedade civil participaram ativamente das discussões e do lobby no Congresso para a aprovação da lei, entre elas estava o Coletivo Digital. O diretor administrativo do Coletivo, Rodolfo Avelino explica o motivo das empresas de telecomunicações serem contra a neutralidade. “O que as empresas de telecomunicações defendiam era seu modelo de negócio que era de fato, regular a velocidade, quais sites poderiam ser acessados mais rapidamente. Eles questionavam: ‘eu proponho minha infraestrutura e quem ganha mais dinheiro é o Facebook, o Google, empresas que não detém a infraestrutura, mas que estão ganhando muito em cima da minha’, e eles questionavam quebrar a neutralidade da internet”, conta.
A garantia da neutralidade do conteúdo é uma vitória para o consumidor, mas há quem aponte falhas do texto nesse ponto. O professor Freire afirma que o Marco Civil deveria cuidar da questão da velocidade na internet, pois como foi aprovado, as empresas ainda podem controlar a rapidez com que determinados sites carregam seu conteúdo. “A única coisa que o Marco Civil não atacou foi a questão da velocidade, onde os provedores ainda poderiam distinguir a velocidade do serviço, então por exemplo, vídeos do YouTube que ele tem uma relação direta, ele pode deixar mais rápido, um vídeo que é de outro site ou de outro provedor de acesso, ele deixa mais lento, ele divide a banda.”, explica.
Além disso, as empresas podem aumentar os preços de seus pacotes seguindo a velocidade como uma forma de retaliação a aprovação do Marco. “Então, nesse ponto o Marco Civil deveria ter se dedicado, porque a velocidade na internet é quase tudo, se a pessoa demora muito tempo para abrir um site, ela fecha e vai para outro, então isso ataca a neutralidade”, afirma o professor Freire.
Armazenamento de Dados
Outro ponto polêmico do projeto de lei era a questão do armazenamento de dados pelos provedores de internet. As discussões estavam em torno do tempo de armazenamento e da retirada de conteúdo considerado ofensivo da rede. O Marco Civil reforça os direitos a privacidade e a liberdade de expressão, já garantidos pela Constituição e por isso, torna lei o armazenamento de dados dos usuários pelos provedores de conexão e serviço por tempo determinado.
Os provedores de conexão serão obrigados a guardar o número de IP (Internet Protocol) do usuário e a hora de início e de término da conexão, os provedores de serviço vão armazenar quem fez upload de vídeos e fotos, o histórico de navegação dentro daquele site, desde que o usuário esteja identificado – ambos serão obrigados a armazenar tais dados por seis meses a um ano.
Muitos críticos ao Marco Civil acusam essa obrigatoriedade de armazenamento como uma afronta direta a privacidade do usuário. O advogado Souza Ruiz discorda. “Hoje, os servidores já fazem isso, mas eles não admitem oficialmente. Se acessarmos uma rede social, como o Facebook e clicarmos no histórico de atividades vai aparecer tudo o que você fez durante um longo tempo lá, significa que mesmo você conectando e desconectando, o provedor armazenou sua informação. O YouTube armazena suas preferências, conforme você assiste um vídeo, ele te sugere outros. Eles já fazem isso, mas agora serão obrigados a guardar sob sigilo absoluto, ninguém poderá ter acesso aos históricos, então vejo isso com bons olhos”.
Esses dados servem para a Justiça localizar possíveis criminosos, por isso só poderão ser acessados sob ordem judicial, inclusive para retirada de conteúdo ofensivo. Esse é outro problema apontado pelo professor Freire. “As ordens judicias costumam demorar, então esse ponto talvez seja um excesso de zelo do Marco Civil. Aguardar uma ordem judicial para retirar um conteúdo que está te trazendo prejuízo – considerando a lentidão e o volume de processos que o Brasil tem – na internet é uma eternidade”, completa.
O armazenamento de dados foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mas alguns defensores do Marco esperam que a presidente Dilma vete o parágrafo segundo do artigo 15. O diretor do Coletivo Digital torce pelo veto presidencial. “Não queremos que o armazenamento de dados dos provedores de serviço seja mantido desse jeito, não aceitamos, porque na lei está escrito que o tempo mínimo é seis meses, mas há casos em que pode ser por tempo indeterminado. Isso é um grande problema, porque depois podem usar isso contra as pessoas. O tempo tem que ser determinado”, explica Avelino.
Data centers
Dos pontos mais polêmicos do Marco Civil, a questão dos data centers serviu para apimentar a luta entre governo e PMDB para a aprovação do projeto de lei. Todas as empresas que prestassem serviços para a internet brasileira seriam obrigadas a ter um centro de dados (data centers) localizado dentro do território nacional. Esse era o principal motivo para as empresas serem contra o Marco, pois encareceria a prestação de serviços no país e poderia limitar a instalação de novas empresas.
Tal medida era uma tentativa de legislar sobre empresas estrangeiras com maior facilidade, já que uma vez dentro do território nacional, elas teriam que obedecer a lei brasileira. Para o advogado Souza Ruiz, esse ponto serviu apenas para o desgaste do governo, pois em nossa Constituição já há a garantia de soberania da lei. “Uma coisa curiosa é que a lei do Marco Civil determina, de forma bem direta, que todas as empresas que prestarem serviço no Brasil deverão respeitar a lei brasileira. Em Direito Penal nós temos o princípio da ubiquidade ou o princípio da teoria mista da ação: não importa a ação ou o resultado do crime, se tiver ocorrido no Brasil, a lei penal brasileira é competente para julgá-lo. Se eu estou no Brasil, fui ofendido através de um site sediado em outro país, a lei brasileira será responsável, será competente para julgar isso”, explica.
A obrigatoriedade da instalação de data centers no país foi vetada pela Câmara, o que agradou o PMDB, que passou a votar a favor da aprovação do Marco no último segundo. Como é de interesse do governo aprovar o projeto de lei ainda esse ano, o Marco Civil virou moeda de troca dentro do Congresso.
Jogo político
O projeto de lei do Marco Civil tramitava desde 2011 na Câmara, ganhando relevância após Edward Snowden denunciar um esquema de espionagem de figuras públicas – incluindo a presidente Dilma – pelo governo dos Estados Unidos, em meados do ano passado. Após a denúncia, Dilma pediu caráter de urgência na aprovação do Marco Civil no Congresso. A partir daí, o jogo de interesses econômicos – das teles – e políticos – oposição e PMDB – começaram. O partido entrou em crise com o governo no início deste ano, e teve seis ministros empossados desde então. Além disso, usou o voto a favor na aprovação do Marco para conseguir benefícios no futuro – ação esperada em ano de eleição presidencial e com perspectiva de instalação de CPI para investigar a Petrobrás.
Com pouco mais de duas semanas tramitando no Senado, o projeto aprovado pelos deputados já tem 41 propostas de emendas, o que dificulta a aprovação do texto integral. Ou seja, o projeto do Marco Civil provavelmente voltará para a discussão na Câmara, tornando o desejo do governo federal – de aprovar a lei ainda esse ano – quase impossível.
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=9C6SLXB_BeU]
Reportagem: Isis Rangel
Produção: Jéssica Santos
Edição: Annelize Pires
2 thoughts on “A batalha do Marco Civil não acabou”