Silêncio que quebra barreiras do som
O silêncio também tem música. Projeto realizado por mais de 10 anos no Centrinho da USP, o Coral de Libras de Bauru ajudou a colocar música e ritmo na vida de surdos da cidade, mostrando que é possível viver em silêncio mas fazer muito barulho ao mesmo tempo.
Buzinas, motores, estouros de escapamentos, alto-falantes, música alta, gritaria, conversas… Viver no mundo dos sons é viver em meio a esses fatores. Estamos subordinados a ouvir o que não queremos e muitas vezes implorar por um momento de silêncio. Mas isso não acontece para uma parte da população brasileira que não passa por essas etapas: os surdos. Segundo o Censo de 2010, realizado pelo IBGE, 5,1% da população brasileira possui deficiência auditiva; o número daqueles que tem deficiência severa chega a dois milhões de pessoas. Para eles, a percepção de mundo é outra.
Das maneiras de inserção e integração dos surdos na comunidade, Valderes Rodrigues, pedagoga, encontrou uma eficaz: um coral de libras – ou linguagem de sinais. Trabalhando com surdos há 22 anos, Valderes iniciou o coral no Centrinho da USP em 2000 e seguiu com o projeto até o ano passado. Ela explica que a atividade era uma maneira de divulgar a língua de sinais e de integrar os surdos na comunidade. “É importante mostrar que eles não vivem em guetos, que não precisam andar somente entre surdos.”, completa. O grupo costumava fazer diversas apresentações, em teatros, escolas e até na Praça Ruy Barbosa, em Bauru. Valderes ainda diz que as apresentações causam um interesse muito grande: “muita gente assiste às apresentações e depois procura fazer aulas, aprender mais sobre a língua dos sinais”.
A pedagoga diz que a escolha das músicas sempre se baseava em passar uma mensagem. Canções como “É Preciso Saber Viver”, dos Titãs, e “A Paz”, do Roupa Nova estavam entre as escolhidas. “Sempre mostrávamos a música em português para os alunos antes de passá-las em libras, dizíamos quem era o artista”, conta Valderes. “Depois, com ajuda do nosso instrutor, que era surdo, passávamos do português para os sinais”. Ela explica que não é possível passar literalmente do português para as libras, que seria como jogar uma frase em um tradutor e transformá-la em inglês: a tradução nunca é 100% correta. Na hora de colocar o ritmo – algo muito associado com a audição – Valderes assumia seu lugar na frente para casar os sinais escolhidos com a velocidade e ritmo da música. “Mas algumas músicas não conseguíamos manter o ritmo, justamente porque a maioria dos surdos com os quais trabalhávamos não ouvia”.
Verônica Cara dos Santos, ex-participante do coral, diz que, mesmo após o fim do projeto, ainda se interessa em pesquisar músicas em libras, e assiste a vídeos de linguagens de sinais de outros países. Acrescenta, ainda, que gosta de observar as diferenças: “assisto vídeos dos Estados Unidos e vejo que os movimentos são bem diferentes, mas consigo identificar por causa das letrinhas embaixo [legendas]”. Renata Batista Rodrigues Leite, também ex-integrante do coral, diz que aprendeu a falar através da linguagem dos sinais com o Centrinho da USP. Ela conta que não sai muito de casa e mantém um namorado à distância. “Mas isso é muito normal pra mim”, afirma Renata.
Confira trecho da entrevista, traduzida em Libras, de Valderes, Verônica e Renata:
O barulho do silêncio
O silêncio é um cotidiano para Verônica e Renata – embora ambas usem o aparelho auditivo para sair às ruas. Porém, um mundo sem sons pode ser difícil e diferente para aqueles que escutam. Valderes diz que porque lida com muito silêncio trabalhando com surdos, às vezes não lida bem com o barulho. “Dou aula em uma escola pública e, muitas vezes, tenho que pedir para que as crianças não gritem, porque me incomoda”. Oleana Maciel de Andrade, psicóloga do Núcleo Integrado de Reabilitação e Integração do Centrinho USP, que trabalha com questões psicológicas da adaptação do surdo e com orientação para o mercado de trabalho, diz que trabalhar com surdos e com a língua de sinais não é viver no silêncio: “é uma forma de expressão como qualquer outra, apenas não é pela maneira oral. A língua de sinais – reconhecida como Língua Brasileira de Sinais – é muito completa e permite expressões reais. Não é abstrata.”.
SERVIÇO:
A FUNCRAF (Fundação para o Estudo e Tratamento das Deformidades Crânio-Faciais) oferece cursos para quem quer aprender a Língua Brasileira de Sinais.
A Fundação fica na Rua José Ferreira Marques, 10-54, Vila Universitária – Bauru.
O curso tem duração de um ano. Para mais informações, acesse www.funcraf.org.br ou pelo telefone (14) 2106-0900.