O bauruense não conhece o centro da cidade
Muitos imaginam, mas poucos percebem o nascimento prematuro da noite: as luzes do Calçadão se acendem, a Rui Barbosa silencia, a Machado de Mello ressuscita e a Rodrigues Alves apequena-se.
A extensa e vívida Batista de Carvalho demonstra sinais de enfermidade ao fim do expediente: os portões de ferro das lojas varejistas fecham-se lentamente, enquanto os pedestres correm. A situação no pós-18 horas é atípica e o Calçadão deixa de ser protagonista e se transforma apenas em uma passarela que separa o bauruense de seu destino. No início da noite o volume da movimentação arrasta os mais desavisados e impõe a dura rotina: o centro encontra-se em coma. Em breve, morrerá para o bauruense.
Com andar desmotivado e notadamente lento, diferentemente do da maioria, A., de 14 anos, sentou à soleira de uma grande loja de roupas. Solicitava, desesperadamente, algum trocado para quem ali passava “É a primeira vez que peço (dinheiro) aqui no Centro e gosto daqui. Quero juntar para comprar gás para minha família”, justifica. Era só início da noite e A. aproveitava da habilidade inata em fazer caretas, como denúncia do seu sofrimento, para angariar mais moedas e notas. “Não gosto de perguntas. Vou embora. Muito obrigado”, afirmou, lacônico. O diálogo foi, pela retórica defensiva de A., talvez a única maneira que achou para se comunicar com outrem, defender-se da sociedade, que o violenta diariamente.
Quando as luzes finalmente eram a única fonte de iluminação da Rui Barbosa, os transeuntes já estavam “protegidos” em seus respectivos destinos. Os únicos seres vivos pertenciam a escoltas daquele local quase morto: iam e voltavam, todo momento, pelas calçadas, com motos e carros, vigilantes a possíveis subversões. As regras da Batista e da Rui Barbosa, depois das 22 horas, desaparecem.
A imponente avenida Rodrigues Alves é só a sombra do que é durante o dia. Suas vias, vazias, servem para escoar todos aqueles que desejam ou têm intenção de verificar a ressurreição da Praça Machado de Mello. Os trens não funcionam, mas há mais vida operante do que em qualquer outro lugar. E., de 24 anos, aborda qualquer pessoa nas noites da Rodrigues. Na realidade, depois das 23 horas, o centro todo já não tem lei e não há conversa. Tudo é regido pela ética do “sim e não” e do olhar. Qualquer ato que fuja do modelo é observado com curiosidade, muito receio e, talvez, encarado com hostilidade. “Aqui não dá para viver. Bauru é muito ruim, os policiais ficam me atormentando. Estou juntando dinheiro para ir para Pederneiras, tenho família lá e é mais ‘sossegado’, não ficam me atormentando”, conta E. Quando questionado sobre o que iria fazer com o dinheiro, respondeu com hesitação “é para pegar esse ônibus, o Santa Fé”. Embora tenha lido com muita dificuldade o letreiro iluminado do coletivo, e provavelmente não soubesse ao certo o que significava aquele ônibus e para onde ia, sua resposta, arguta, foi a maneira que achou para escapar do diálogo. “Deus te abençoe, irmão”, despediu-se.
A Machado de Mello, frequentada somente por aqueles que não têm opção de passar por outras vias, apresenta mais vida do que qualquer outro local do centro. Sua estrutura apresenta contradições claras: um posto policial, morto, uma ferrovia desativada, viva, e uma padaria 24 horas, ébria. As vidas encontram-se em diferentes pontos dessa tríade: o estabelecimento comercial oferece bebidas, comida e conversa, a Rodrigues Alves oferece todo o resto, e o posto policial parece hostil às vontades dos violentados sociais. O posto assemelha-se a um grande castelo em que os reis estão bem guardados, envolto a paredes de cimento, que interrompe o fluxo do vento frio. Entram e saem com naturalidade, ignorando o que acontece ao redor. Um mundo separado, da indiferença, na galáxia centro de Bauru.
A padaria, um dos poucos lugares 24 horas da cidade, reserva uma das maiores vida inteligente do Centro. Trabalhadores notívagos, consumidores sem opção, e a vida da Machado de Mello, encontram-se, em alguma hora, nos arredores do comércio. Ali discute-se política, sem partidarismo, pobreza, sem enfrentamento, cinema, com reflexão, em um clima mais amistoso. A TV, no canal da sessão da madrugada, angariava cada vez mais pessoas, ávidas pelo cinema. O filme de ação emocionava todos aqueles que por ali passavam. Todos tinham opiniões sobre os atores e teciam comentários e críticas construtivas. “Aqui não há problemas. Houve algumas tentativas de roubo, mas nunca tivemos problemas”, comenta o funcionário que, sozinho, “faz tudo” na padaria.
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O dia que nasce nas sombras
Após completar 24 horas, a praça Rui Barbosa já apresenta outra face de sua realidade. Nenhum “bauruense” almeja ficar ali. Não há mais nenhuma pessoa estranha aos verdadeiros e únicos seres noturnos do centro. Lá, F., mais conhecido como I., é o “rei”. Depois de muito tempo, provavelmente, foi abordado por pessoas que não gostariam de manter uma relação mediada pelo consumo do que o homem vendia. “Você quer mostrar a noite, sombria? Vamos lá na ferrovia, irmão. Você não vai conseguir nada sozinho, irmão”, anunciava em bom tom, enquanto se aproximava. “Você quer uma entrevista? Uma matéria? Mas não tem como eu fornecer algo, sem me dar algo em troca. Você tem que falar para mim ‘ó, vamos ali. Eu pago cinco latinhas de cerveja para você’, aí eu posso dar o que você quer”, solicita F. Após a recusa imediata, o homem sente sua autoridade questionada. “Desapareço com você, sua câmera e essa mochilinha velha. Você quer mostrar a ‘noite sombria’ do centro? Então vamos ver a ‘noite sombria’”, enfatiza F.
Ao fundo, a Polícia Municipal observa, mas sem interferir. Acredita-se que os problemas do Centro se resolvam no próprio Centro. “Sou louco para pegar esse rapaz. É perigoso aqui. Tomem cuidado.”, aconselhou o policial de Bauru. “O que você está conversando com eles, irmão?”, pergunta F. Assim se inicia outro diálogo hostil. “Deixa eles trabalharem, não encha o saco”, afirma o policial municipal. Mais dois amigos ou consumidores dos produtos de F. juntam-se a ele. Brigam entre si. A noite no Centro também é performática. Tudo acontece depois das 18 horas.
O verdadeiro centro de Bauru é uma mistura do visível, até às 18 horas, do aparente, das 18 horas às 23 horas, e do invisível, das 23 horas em diante. O centro é a reprodução das contradições, que o bauruense não conhece, não experimenta e não sabe. Relembrando Guimarães Rosa, na obra Grande Sertões Veredas, “a gente só sabe bem aquilo que não entende”.
Reportagem: Gabriel Oliveira
Produção: Isis Rangel
Edição: Mariana Ribeiro
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