No Brasil, são realizados mais de meio milhão de interrupções por ano, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto 2016. A estimativa é que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos de idade já tenham realizado pelo menos um aborto durante a vida – mas a incidência pode ser ainda maior, uma vez que muitos casos não são reportados. Segundo um levantamento da Organização Mundial da Saúde, entre 2010 a 2014, 22 milhões de procedimentos foram feitos em ambientes inseguros; destes casos, estima-se que 47 mil mulheres morrem anualmente decorrente de complicações após o aborto.
“Quando eu soube [que estava grávida], eu não sabia como lidar exatamente com aquilo. Saber como resolver, eu sabia. O que eu não sabia era com que força eu iria chegar até o final do processo, porque, apesar de ter acompanhado bem antes (quando eu fiz o meu, já tinha ajudado outras mulheres), foi muito estranho: me deixou meio cansada e eu não queria ninguém perto de mim”, conta a cientista política e ativista pró-escolha Katherine*, 23 anos, sobre sua experiência quando decidiu realizar o procedimento do aborto: “É uma experiência singular, um divisor de águas. Foi aquele momento em que eu pensei ‘pô, cresci! Eu tenho que lidar com isso, comigo, com as minhas escolhas’”.
O aborto é um tema envolto por tabus e polêmicas muitas vezes ligados a conceitos morais, legais e religiosos, os quais geram uma barreira entre as escolhas pessoais de diversas mulheres e o acesso das mesmas a um procedimento seguro. Assim, a clandestinidade se abre como um novo caminho.
Violência e descaso
No Brasil, a legislação permite aborto legal quando a gestação oferece risco à saúde da mãe, quando a gravidez é oriunda de uma violência sexual ou quando o feto é anencéfalo. Desse modo, a criminalização abre margem para a manifestação de violência de diversas formas contra as mulheres, oriunda de vários âmbitos da sociedade.
Créditos: Bianca Furlani
Segundo Katherine*, muitas pessoas criminalizam um ato necessário para mulheres que querem liberdade reprodutiva, sexual – como foi com a conquista dos anticoncepcionais – e de decisão sobre si e seus corpos. Tornar ilegal “é um recado muito claro de domínio, de castigo. Isso sim é uma violência, não direta, mas institucional, uma violência moral”, explica ela. A ativista ainda apontou que as mulheres sofrem violência psicológica quando falam que abortaram, quando passam por pressão psicológica dos médicos dentro das maternidades e durante exames ou curetagem – técnica que esvazia o útero de resíduos – e através também da violência social, quando as mulheres falam sobre isso, mesmo defendendo, sem nunca terem feito.
Ela prossegue explicando que o sentimento oriundo do aborto foi de culpa, mesmo que tenha superado posteriormente. “E acompanhar essas mulheres também causa uma culpa, porque tudo ao redor, o mundo inteiro está dizendo que você é uma criminosa e tudo mais. Mas você tem aquela consciência de que não é. Nem você, nem as outras mulheres. Você está buscando liberdade para as mulheres, propriedade sobre o próprio corpo, as próprias escolhas, domínio sobre a própria vida”.
Katherine* afirma que, no início, a dor é muito grande, mas depois que a mulher entende o significado da maternidade, o alívio é intenso.
Apensar de dizer que gerar um filho causar uma grande felicidade, para a ativista, ser mãe é um grande desafio: “Ter um filho é tatuar no meio da cara uma responsabilidade. O motivo [para abortar] é o bom senso de que você não tem condição, nem para tentar, para conseguir”, explica.
Por esse sentimentos e para prevenir transtornos de ordem mental que, em 2005, foi lançada a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento pelo Ministério da Saúde, que visa atender as mulheres em situação de aborto espontâneo ou induzido, oferecendo assistência quanto à saúde física, emocional e social. Suas diretrizes indicam, ainda, o não julgamento, a orientação, o auxílio médico e o alívio da dor.
Contudo, ao contrário do que foi dito, “observamos que atualmente alguns profissionais têm denunciado as mulheres que chegam nos serviços de saúde após terem realizado a interrupção da gravidez, dentro do que é chamado de ‘aborto clandestino’. Ou seja, há uma contradição que produz o movimento das mulheres não buscarem os serviços de saúde”, explicam a psicóloga Raquel Barretto e a pesquisadora Ana Elisa Figueiredo.
Além disso, a cientista política relembra uma situação de uma mulher próxima a ela: “uma moça de 17 anos sofreu violência obstétrica. Ela fez o aborto, foi fazer a curetagem, o médico olhou para ela e falou: ‘dormiu sem calcinha e acordou grávida?’ e começou a rir, e fez o procedimento rindo. É uma violência absurda”.
Casos deste gênero são comuns tanto em consultórios como em delegacias, o qual as mulheres procuram após casos de estupro, abuso ou violência domésticas. Por isso, a hipnoterapeuta clínica Luciene Lima diz que “a falta de suporte para as mulheres pode ser considerada uma violência maior do que a criminalização, pois a esta se dá como norma regulamentadora a uma prática que visa a proteção à vida. No entanto, essa criminalização ocorre geralmente sem trabalho de conscientização prévia. Essa conscientização poderia funcionar como suporte que evitaria que as mulheres chegassem à criminalização pela qual passam quando decidem realizar um aborto”.
Rede de apoio
Visto a negligência e despreparo das instituições em atender uma mulher em tais situações, estas passam a ter receio de procurar ajuda médica, tornando a realização do procedimento mais temerosa. Com isso, “os grupos feministas têm um papel importante nesse debate. Eles chamam a atenção para a questão de que nem sempre o aborto clandestino será inseguro, assim como, nem sempre o aborto legal trará segurança para as mulheres submetidas ao procedimento”, explicam Raquel e Ana Elisa.
Katherine*, antes de realizar o aborto, trabalhava acompanhando as mulheres durante seus próprios processos.
Até o momento da publicação desta edição, a ativista atendeu mais de 250 mulheres em três anos e conta que o procedimento não é como a maioria das pessoas acham: “pensam que você vai morrer sangrando, e que vai acontecer mil coisas… Não é nada disso, nada do que esse imaginário social que as pessoas criaram acerca deste assunto. Nós crescemos ouvindo tanta coisa que mesmo sabendo que não é o que as pessoas falam, o medo ainda existe; o medo não é algo simples, não é algo que você vai lidar como outras situações que você conseguiria”. Contudo, não descarta que, em alguns casos, complicações podem ocorrer.
Com o advento da internet, a ajuda tornou-se mais simples. Existem hoje diversos grupos nas redes sociais que tem como o objetivo fornecer orientação, informações, suporte emocional e de materiais – como os medicamentos para o aborto, artigos sobre o assunto e endereços para hospitais ou clínicas que realizam o procedimento.
A cientista política enfatiza que a ajuda não tem fins financeiros e a assistência, muitas vezes, “não vem como um problema; na verdade, vem como uma força, porque é uma forma de dizer que elas não estão sozinhas, e é uma forma de dizer para mim mesma que eu não estou só. E isso realmente une. Na verdade, o aborto vem muitas vezes como uma argamassa na relação entre mulheres; afinal, feminismo não é brincadeira, não é briga de egos, é um movimento sério, é um movimento que realmente tem ações diretas”, conta Katherine*.
Obstáculos do aborto
Apesar de haver meios legais e clandestinos para o aborto, ainda existem outras barreiras entre a mulher e a interrupção da gestação – independente do motivo. A primeira a se destacar são os casos em que a mulher passou anteriormente por uma violência sexual e, devido a isso, recorre a um procedimento seguro e teoricamente legalizado.
Contudo, “além da violação do físico, há um processo que envolve uma perda parcial da autonomia e do processo decisório, já que o método envolve diversos profissionais, exames e protocolos a serem cumpridos, junto da burocracia por parte das instâncias maiores”, explicam Raquel e Ana Elisa. Essa demora para a liberação do aborto causa mais sofrimento e consequências emocionais à mulher, que acaba passando por diversos tipos de violência no caminho.
Outro obstáculo encontrado é o fator financeiro. Como já mencionado, milhares de mulheres acabam morrendo por decorrência de abortos mal feitos ou ambientes inadequados e insalubres. Nesse número, estão as mulheres de condições socioeconômicas baixas da sociedade. “Atualmente, uma mulher com mais recursos pode pagar uma viagem e recorrer a um aborto seguro no exterior. Não ouvimos falar sobre sequelas físicas nesse caso”, pontua Raquel e Ana Elisa.
Além disso, Katherine* expõe que a maior barreira – além de fatores como medo, insegurança e falta de apoio do parceiro e de instituições – são os preços dos remédios para o procedimento. Segundo a cientista política, cada unidade custa, em média, 70 reais, e é preciso que seja tomada de acordo com a quantidade de semanas da gestação. Assim, é possível que a mulher tenha que ingerir até dez unidades em um procedimento, o que contabiliza uma soma de 700 reais.
Por fim, Raquel e Ana Elisa avaliam que no Brasil “é necessário o reconhecimento de que o aborto ocorre e repercute diretamente nas mortes maternas, nas internações, em danos físicos e mentais. Portanto, o aborto é um tema de grande relevância para a saúde pública e, necessita ser debatido com urgência no âmbito da sociedade civil”.
* O nome da cientista política e ativista pró-escolha foi alterado para garantir a segurança de sua identidade.
Repórter: Camila Ramos
Produção Multimídia: Bianca Furlani
Edição: Danielle Cassita
Foto de capa: Desenho de corpo feminino em porta (Créditos: Bianca Furlani)