Cabelos presos, regata, top, shorts de academia e tênis. Assim se vestia Victória Sacchi, de 24 anos, quando a encontrei na saída da academia que frequenta diariamente, no bairro onde mora em Bauru. A estudante de Engenharia Elétrica da Unesp falava sobre o treino que havia acabado de fazer, no dia seguinte à comemoração de seu aniversário, quando chegamos na rua principal da região, em direção a sua casa. Foi então que começou a situação que a jovem descreveria mais tarde como corriqueira: o assédio em olhares longos e indiscretos vindo de pedestres e motoristas em direção a ela.
Subíamos acompanhadas do amigo homem e colega de casa dela. Enquanto andávamos, eu observava os olhares e Victória conversava conosco de maneira descontraída, caminhando sempre de forma rápida e um pouco a frente. A três quarteirões de sua casa, um motorista passou do nosso lado e gritou algo ininteligível. A moça não demonstrou reação e seguimos até chegar em seu prédio.
Victória nasceu em São Paulo e mudou-se para Bauru para cursar a universidade. Ela conta que na capital não andava muito desacompanhada e que passou a perceber o assédio mais claramente e ver o nível do problema depois que iniciou a graduação e começou a andar mais sozinha. Isso reflete o panorama do país, em que uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2017 revelou que 42% das mulheres brasileiras disseram já ter sofrido assédio, sendo cerca de um terço desse (29%) na rua.
Esse número aumenta quando se trata de mulheres com maior escolaridade assim como Victória (que possui curso superior), tendo 57% destas relatado ter sofrido algum tipo de assédio. Esse número pode estar ligado a um maior acesso à informação e um medo menor de sofrer represálias.
Victória conta que tenta não prestar atenção e ignorar as abordagens que recebe na rua, mas elas atingem seu emocional e psicológico. “Eu sinto raiva, sinto vergonha, porque as vezes você acorda bem, de bom humor e aí vem aquele monte de olhar e você encolhe, só quer estar em outro lugar, com a cabeça enfiada em algum canto. As vezes eu só relevo, mas na maioria dos casos eu fico bem irritada”, desabafa.
Ela fala ainda que muitas vezes teme pela sua segurança e por sua vida, como quando algum veículo passa devagar e mais de uma vez ao seu lado. A universitária relata um assédio com um tom rude que a marcou. “Alguns garotos passaram e falaram “Nossa, que carne deliciosa”. Usaram essa palavra mesmo. Eram uns 4 ou 5 meninos, não dava nem para reagir. Essa foi a coisa mais objetificadora possível, porque realmente eles falam como se a mulher fosse um pedaço de carne, uma mercadoria.”
Victória é uma mulher branca e de uma classe social mais abastada. O cenário do assédio entre as mulheres negras e pardas, constantemente sexualizadas pela mídia e sociedade no geral, é ainda maior. Enquanto 40% das mulheres brancas relataram ter vivido alguma situação de assédio, o número aumenta para 45% quando se tratam de mulheres negras e pardas, segundo a pesquisa do Datafolha.
A paulistana relata também que se sente mais segura quando está acompanhada por alguém do sexo masculino, principalmente quando usa roupas mais justas e curtas e por isso prefere ir à academia acompanhada do amigo. Ela conta que quando anda com um homem, os olhares na rua continuam, mas não recebe cantadas e abordagens mais incisivas.
Ela fala também que a maneira como se veste influencia em como se sente diante do assédio. “Eles abordam de qualquer maneira, mas eu acho que a gente se sente talvez menos culpada quando está de roupa longa. As vezes vou caminhar na Getúlio e se eu vou sozinha eu coloco camiseta, shorts ou calça. Mas se estou com meu namorado ou algum amigo, já não ligo tanto de andar de top, porque faz um calor terrível e a gente tem vontade de andar assim, mas tem receio, o que não deveria ser algo problemático, na verdade”, explica.
A culpabilização da vítima é algo recorrente em casos de violência à mulher, como mostra a pesquisa de 2016 feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em que 30% da população concorda que se a mulher usar roupas provocativas, não pode reclamar se for estuprada. Isso impede Victória e outras mulheres de terem controle do que vestem em seus próprios corpos.
Apesar de tentar ignorar e relevar as situações de assédio no dia a dia, a jovem conta que as vezes reage. “Geralmente quando dá uma distância segura, eu falo algum palavrão, mostro o dedo o meio, mas nada de colocar o dedo na cara e ir para briga, porque você não sabe como o cara vai reagir”, explica.
A universitária relembra uma vez em que reagiu e se sentiu amedrontada com a reação. Ela estava em uma festa acompanhada do namorado, uma amiga e o namorado da amiga, quando um rapaz começou a encará-las sem discrição, deixando-a incomodada, o que a levou a pedir para que ele olhasse para o outro lado. Quando confrontado, o rapaz partiu para cima dela e os seguranças do local tiveram que ser chamados. “Ele ficava falando “cala a boca, sua vagabunda, eu não estava olhando pra você, você é uma nojenta” e ameaçando me matar. Depois ele sumiu depois da festa, mas fiquei com receio dele estar do lado de fora esperando para fazer alguma coisa”, recorda com medo.
O assédio está presente na vida da universitária desde os 12 anos, como relata:
A experiência vivida por ela é o reflexo dos dados de um levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com base nos dados do Sinan (Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde) de 2011, que apurou que crianças e adolescentes são cerca de 70% das vítimas de estupro no país.
A trajetória e a maneira de lidar com o assédio de Victória é só uma dentre as milhares de brasileiras com histórias parecidas e que enfrentam a objetificação e o desrespeito diariamente nas ruas. Escândalos sexuais e campanhas de incentivo à denúncia dos casos, como o #Time’sUp em Hollywood, começam a mudar um cenário em que o assédio é perpetuado, mas ainda tem um longo caminho a se percorrer.
Repórter e Produção Multimídia: Carla Rodrigues
Edição: Vandressa Vellini
Foto de capa: Preocupação constante (Créditos: Carla Rodrigues)