“Essas crianças de hoje em dia só vivem nessa tal de internet!”. Quem nunca ouviu essas palavras de algum parente mais velho? Apesar de ser um alerta feito corriqueiramente, dados mostram que essa é uma situação real – segundo uma pesquisa realizada pela ONG Safernet Brasil, uma entidade nacional que visa enfrentar crimes e violações aos direitos humanos na web. Com participação de mais de 2.800 crianças, jovens e adolescentes de todo o país, o estudo mostrou que o acesso ao mundo virtual é algo constante na vida desses indivíduos: 62% dos entrevistados afirmaram acessar a rede todos os dias; outros 21% disseram estar presentes no mundo online pelo menos de duas a três vezes por semana.
O século 21 é tido como a era da conectividade e, nesse novo período de tempo, a internet vem se consolidando como um elemento vital no cotidiano humano: passamos a resolver problemas por e-mails, nos informamos sobre o mundo através dos websites, abandonamos as longas filas das agências bancárias e as substituímos pelos aplicativos, além de que o próprio smartphone já se tornou uma extensão de nossa mente.
Contudo apesar da internet ser cada vez mais utilizada, não significa que seus usuários estejam, necessariamente, fazendo o uso correto dessa tecnologia. É que com algumas das vantagens advindas do mundo online (como o anonimato e a facilidade de acesso e compartilhamento de informações) também surgiram modos inadequados ou criminosos de comportamento. Dois deles merecem destaque: o cyberbullying e a exposição íntima online, crimes que, segundo mostram as pesquisas, as mulheres têm sido suas maiores vítimas. Conheça mais a seguir.
A violência do bullying virtual
Uma das definições da palavra “virtual” é “condição existente apenas em potência, sem efeito real”. Apesar do cyberbullying, de fato, existir apenas no mundo dos computadores, seus efeitos são mais do que presentes no psicológico de quem o sofre.
Esse tipo de ofensa é entendida como uma modalidade virtual do bullying, identificado pelas intimidações repetitivas entre crianças e adolescentes, porém com características próprias. O cyberbullying possui efeito multiplicador e de grandes proporções. Sendo assim, as ferramentas tecnológicas e as redes sociais são utilizadas para produzir, veicular e disseminar conteúdos de insulto, humilhação e violência psicológica, capazes de provocar constrangimento nos envolvidos.
O cyberbullying é tão sério que, segundo a pesquisa mencionada da Safernet Brasil, 49% dos internautas disseram que este é seu segundo maior medo durante o uso da web. Apesar da legislação entender que essa prática é um crime contra a honra realizado em ambiente virtual (ou seja, passível de punição segundo o código penal), os transgressores encontram facilidade em realizá-lo ao criarem perfis falsos nas redes sociais – principal local da prática.
Os perfis fakes agressivos também foram destaque no estudo realizado pela Safernet Brasil. De acordo com a pesquisa, 10% dos indivíduos entrevistados consideram normal xingar ou zoar nas redes sociais. Em contrapartida, 69% dizem não achar graça nesses perfis falsos. Outro dado importante é que 77% das meninas entrevistadas reconheceram que perfis fakes podem machucar, contra 59% dos meninos que responderam a mesma pergunta.
Essa maior sensibilidade das meninas ao assunto pode ser compreendida quando visto que elas pertencem ao grupo que mais vivencia o problema da difamação no mundo virtual. É geralmente por meio desses fakes que imagens íntimas dessas mulheres são divulgadas sem sua autorização, ocasionando outro crime virtual: a pornografia de vingança ou exposição de imagem íntima.
Expondo a intimidade
“Eu fiquei desesperada. Nenhuma menina merece passar por isso. Sempre me considerei uma pessoa forte em relação a coisas assim, mas quando ele começou a me ameaçar, mandar essas fotos, falar coisas de mim, me chamar de nomes horríveis, eu desmoronei. Só queria chorar o dia inteiro, não sabia como reagir. Eu me sentia fraca, indefesa”, comentou S.P.*, uma jovem de 16 anos que teve parte de sua vida afetada pela exposição desse tipo de imagem – crime cada vez mais comum nas redes sociais. No depoimento a seguir, ela conta mais detalhes do episódio.
O cyberbullying e a exposição íntima virtual são dois crimes que, por vezes, caminham juntos. E o número de casos atendidos pela ONG Safernet Brasil sobre essas duas infrações vem saltando nos últimos anos. Só em 2017, a organização registrou 285 atendimentos sobre exposição íntima online e 359 sobre cyberbullying – um aumento de mais de 500% nas duas modalidades se comparado com 2012, ano que se iniciaram as medições. A maioria desses crimes foram cometidos contra o sexo feminino.
Casos como o de S.P.* estão se tornando comuns. Constantemente leem-se notícias de mulheres que sofreram enormes reveses em suas vidas por conta desse tipo de delito que ocorre no mundo virtual.
A jornalista Rose Leonel também passou por essa exposição. Rose teve um companheiro por quatro anos de sua vida e, depois do final de seu relacionamento, sofreu uma série de crimes online contra sua imagem realizados pelo ex-parceiro. O homem hackeou o e-mail de Rose e enviou para seus diversos contatos mais de 15 mil imagens íntimas da jornalista.
O crime aconteceu entre 2005 e 2006. Como na época não havia uma jurisdição específica para esse tipo de infração, o ex-companheiro permaneceu por um longo período livre de qualquer punição da justiça.
“Esse tipo de crime é motivado pelo sentimento de posse dos homens frente às mulheres, fruto do patriarcalismo da nossa sociedade. Esse machismo está impregnado em nossa educação e cultura, ou seja, dentro do nosso DNA social. Assim, muitos homens, quando passam pelo fim do relacionamento, não enfrentam normalmente esse momento e, movidos por um sentimento de vingança e posse, se vingam da parceira”, conta Rose.
Apesar desse tipo de crime virtual também acontecer com o público masculino, a jornalista explica que quando o homem está envolvido nessa situação, a imagem transmitida por ele é mais amena do que em comparação às mulheres. “O homem, se exposto, lhe funciona como uma propaganda. Mas a mulher é acometida por um estigma que a aniquila e rouba sua vida. Esse tipo de crime tem uma similaridade com o estupro, onde a mulher é a vilã da história, sempre culpabilizada pela sociedade”, afirma Leonel.
O acontecimento inspirou Rose a criar a ONG Marias da Internet, instituição que funciona como um elo entre as vítimas de exposição íntima online e profissionais da área do direito, psicologia e perícia digital. A entidade possui cinco anos de vida e recebe de cinco a dez denúncias por mês em seu canal online.
O trabalho desenvolvido por Rose na ONG foi levado à diante e já chegou, inclusive, no Congresso Nacional. A jornalista, juntamente com um grupo de juristas, redigiu uma proposta de lei com o intuito de acrescentar à Lei Maria da Penha mecanismos de combate a condutas ofensivas contra a mulher no mundo virtual ou em outros meios de propagação da informação. A proposta (que ficou conhecida como Lei Rose Leonel) foi aprovada em plenário e encaminhada para a Câmara dos Deputados Federais para revisão. Segundo Leonel, a previsão é de que até junho de 2018 o projeto seja encaminhado para sanção da presidência da república.
Esperança para as vítimas
Graças à luta de mulheres como Rose e tantas outras que tentam combater os crimes no mundo virtual, a impunidade desses delitos pode estar com os dias contados. “Meu ex-companheiro foi condenado na instância penal e cível. A pena foi de pagar 30 mil reais de indenização, somado a um ano e onze meses de prisão. Foi negociada, então, uma multa de 1.500 reais mensais por um ano e onze meses”, conta a jornalista.
Apesar de Leonel afirmar que ainda não recebeu nenhum valor dos processos, a condenação de seu ex-namorado nessas duas instâncias, somada à aprovação da câmara dos deputados da PL 5.555/2013, demonstram que está havendo um avanço no combate aos cyber delitos.
Para auxiliar as vítimas a tomarem medidas contra os crimes do mundo virtual, a ONG Marias da Internet e o portal Safernet Brasil disponibilizam um canal de comunicação online onde os envolvidos podem denunciar as infrações e tomar as medidas legais cabíveis. “Estamos aqui para dar às mulheres todo o suporte, abraçá-las e mostrar que existe saída desse pesadelo”.
*Nome alterado para preservar a identidade da vítima menor de idade
Repórter: Leonardo Guerino
Produção Multimídia: Gabriela Carvalho
Edição: Aressa Muniz
Foto de capa: Pela internet também machuca. (Créditos: Pixabay)
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