O trabalho infantil como exploração de mão de obra barata tira proveito do desamparo social e faz com que crianças amadureçam antes do tempo para conseguir sobreviver
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em convenção realizada em 1973, estabeleceu 16 anos como idade mínima para o trabalho, exceto em países muito pobres, onde a idade foi baixada para os 14 anos. A Constituição de 1988 adotou essas disposições e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no capítulo IV, também garante uma série de condições na contratação de menores de idade com o intuito de combater a exploração do trabalho infantil.
No Brasil existe a Lei da Aprendizagem, que trata sobre o trabalho de adolescentes e jovens. “A partir dos 14 anos, o adolescente pode trabalhar, desde que seja assegurada a frequência à escola, se não terminou o ensino médio ainda, e também deverá estar inscrito em um programa de aprendizagem, onde será assegurado o ensino teórico, um ensino profissionalizante”, explica a juíza do trabalho e diretora do Fórum Trabalhista de Bauru, Ana Cláudia Pires Ferreira de Lima. No entanto, o trabalho não pode ser noturno e/ou insalubre, como estabelecido no artigo 67 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). A partir dos 18 anos o contrato de trabalho sofre menos restrições e o jovem pode exercer qualquer função.
“Criança não trabalha, criança dá trabalho”
Assimilando as condições de trabalho asseguradas aos jovens é fácil perceber que o ofício no campo não é adequado para adolescentes e muito menos para crianças. As funções desempenhadas em lavouras são, em grande parte, insalubres, penosas e perigosas, podendo causar consequências no desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Tarefas com essas características são vedadas aos jovens através do ECA.
A psicóloga Fernanda Pádua Rezende esclarece que “o trabalho infantil prejudica o processo de desenvolvimento da criança. Em cada fase espera-se que a criança tenha contato com uma série de estímulos para que possa adquirir repertórios comportamentais socialmente relevantes. Se o trabalho priva a criança ao acesso a estes estímulos, é esperado que ela possa ter defasagens em seu desenvolvimento. Se foi um processo abusivo e exploratório ela pode ter consequências emocionais, afetivas e comportamentais significativas”. A partir disso, pode-se perceber que o trabalho infantil tem reflexos por toda a vida da pessoa sujeita à exploração.
A velha história da desigualdade no Brasil
Adriano Ferreira da Silva, dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo (MTC), fala que hoje “se você vai para o Rio Grande do Norte, você vai ter a exploração de crianças na castanha. As melhores castanhas, que são exportadas no Brasil, vêm do Rio Grande do Norte. Elas são [produzidas] em uma situação de exploração, onde têm crianças que já perderam suas próprias digitais, com essa questão de descascar a castanha”. O dirigente do MTC ainda explica que essa exploração é comum “no nordeste, no sertão, numa região onde tem uma situação de pobreza muito difícil. (…) Esses dias, eu fiz uma visita às comunidades e também visitei algumas fazendas aonde o patrão, os filhos dele estão estudando e os filhos do empregado, do vaqueiro, estão servindo de ‘espoleta’, sendo explorados na verdade, sendo vítimas da questão do trabalho infantil”.
“Por que muitos trabalhadores e trabalhadoras são vítimas do trabalho infantil? Porque estão nas terras do fazendeiro.”
“O grande problema, que faz com que o trabalho infantil aumente, é a falta de geração de renda, porque ninguém vai ser explorado porque quer, vai por uma situação de pobreza. Muitas crianças são exploradas por um prato de comida, isso é um verdade que acontece”, conta Adriano, sobre a difícil situação que faz da prática algo banal em muitos lugares.
“Às vezes um pequeno agricultor tem 10 pessoas dentro de casa e não tem pra onde ir, então acaba, muitas vezes, deixando o seu filho ser explorado. Há casos em que o patrão bate nas crianças. É muito forte isso e o pai acaba aceitando”, completa. E para Adriano a justificativa para a exploração ainda acontecer é a concentração de terras e a pobreza. “Por que muitos trabalhadores e trabalhadoras são vítimas do trabalho infantil? Porque estão nas terras do fazendeiro”, argumenta.
Não adianta camuflar o trabalho
As crianças são parte da família e é muito comum que haja o incentivo gradual à realização de tarefas, não raramente, atividades domésticas. Mas, “a partir do momento que se coloca uma criança para substituir um adulto para fazer todas as tarefas do lar, isso é inconcebível, porque o lugar de criança é na escola”, explica Ana Cláudia.
Sobre as tarefas aceitáveis para as crianças, a psicóloga Fernanda explica que “para cada idade a criança pode ser incentivada a executar algumas tarefas e isto ajudará no desenvolvimento de responsabilidade e autonomia. Por exemplo, uma criança de sete anos pode organizar seus pertences, ajudar nas louças e até a preparar um lanche com supervisão. Aos 12 anos pode ter mais tarefas, inclusive ir até a padaria para comprar pão, caso seja seguro. A ajuda pode ocorrer nas tarefas domésticas e em alguns trabalhos, desde que não prejudique o acesso à escola, brincadeiras e vida social, e tem que ser apropriado para a idade”.
Percebe-se, então, que as tarefas recomendadas são leves e apropriadas para cada fase de desenvolvimento das crianças. Mas o trabalho no campo não é assim. “O trabalho infantil, principalmente no campo, que são formas de trabalho extenuantes, compromete o desenvolvimento físico da criança. Vai perpetuar o ciclo da pobreza, onde a criança não vai ter uma educação, não vai ter condições, no futuro, de obter um emprego, obter uma fonte de renda que possa lhe conferir uma vida digna”, explica a juíza do trabalho.
Na falta de alternativas
Em muitas famílias, principalmente nas famílias mais numerosas e com renda baixa, há a necessidade de que os jovens comecem a trabalhar mais cedo, para ajudar nas despesas domésticas. A partir daí, uma solução que ganha força contra a evasão escolar é a aprendizagem. Ana Cláudia diz que “a aprendizagem é uma das melhores formas de combater o trabalho infantil, porque é a oportunidade do primeiro emprego”. Infelizmente, na zona rural não há tantas oportunidades, porque uma empresa oferece vagas de aprendiz de acordo com a quantidade de funcionários que tem. No campo as coisas são diferentes e as poucas empresas muitas vezes não assinam nem a carteira de trabalho.
Para a juíza, “o que nós devemos assegurar para a criança e o adolescente é o estudo, por isso que se estimula a prática de atividades no contraturno escolar, atividades desportivas, culturais, artísticas, o reforço escolar. Quanto mais anos de estudos a pessoa tem, maior a oportunidade de emprego e melhor patamar de renda que ela terá no futuro”. A verba destinada, então, à educação e ao lazer das crianças e dos jovens é uma prevenção à condições de exploração e um investimento no futuro dos cidadãos.
Até na carvoaria entra luz
Ana Cláudia diz que o trabalho infantil “é uma questão cultural, mas a nível mundial. Infelizmente, no Brasil, nós ainda temos cerca de dois milhões e setecentas mil crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil”. Em 2016 foi proposta uma lei para punir quem explora o trabalho infantil, visando penalizar quem lucra com a mão de obra mais barata das crianças. Hoje, não há uma penalização específica para exploração da mão de obra infantil. A magistrada conta que “o Brasil assumiu o compromisso, perante a ONU, de erradicar o trabalho infantil até 2025”, e diz que “nós estamos próximos disso”, referindo-se à data. No entanto, a erradicação ainda é uma realidade distante no país.
Atualizada em 21/05/2019 às 23:46
Reportagem: Nathália Sousa
Produção multimídia: Felipe Monteiro
Edição: Giovanna Castro
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