País mantém imagem diplomática e pacifista ao mesmo tempo em que exporta armas para diversas regiões em conflitos
Desde a Segunda Guerra Mundial, o Brasil não participa de nenhum conflito internacional. O envio de tropas para fora de suas fronteiras ocorre há setenta anos apenas em missões de pacificação. O país é conhecido por outras nações do mundo por ser pacífico e promover a paz. No entanto, isso não impede que a indústria bélica brasileira seja relevante no mercado internacional, presente em zonas de guerra mundo afora; e muito menos que os números de mortes no Brasil se assemelhe a países em conflito.
O comércio de armas do Brasil no mundo
No que diz respeito às exportações de armas leves, como revólveres, munições, fuzis, pistolas, carabinas, espingardas, metralhadores, entre outras, o Brasil é o quarto maior do planeta. A informação está presente no relatório “As Armas e o Mundo”, divulgado em 2015 pela Small Arms Survey, entidade que acompanha o comércio internacional de armas de fogo e conflitos armados. Os três maiores exportadores do ranking são Estados Unidos, Itália e Alemanha.
O país vem se tornando lentamente uma potência na venda desses artefatos, que também incluem equipamentos como granadas, além de armas não letais, como gás lacrimogêneo. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), o valor da exportação de armas leves pelo Brasil subiu 36% em um período de apenas 5 anos, de 2007 a 2012: passou de 201 milhões de dólares para mais de 315 milhões. Estados Unidos, Estônia, Paquistão e Emirados Árabes são alguns dos países que figuram entre os dez maiores compradores.
Em relação às vendas de bombas, como gás lacrimogêneo, por exemplo, houve também um grande aumento. Em 2007, as exportações foram de 460 mil dólares. Já em 2011, a casa dos milhões foi atingida: 5,7 milhões de dólares. Em 2012, o valor passou a 17,8 milhões. No total, entre 2001 e 2012, foram enviados para o exterior cerca de 2,8 bilhões de dólares em produtos desse tipo.
Falta transparência
A Small Arms Survey estimou que esse mercado movimenta ao menos cerca de 8,5 bilhões de dólares por ano. Mas a organização ressalta a dificuldade de realizar avaliações com precisão, devido à relutância de países em divulgar os seus dados sobre o assunto. Essa falta de clareza é um problema também no Brasil: no termômetro de transparência sobre o comércio de armas que é feito pela Small Arms Survey, o Brasil tem nota 7 – a escala vai de zero a 25, que representaria transparência total.
Apesar de divulgar o total das exportações, o Brasil não revela todas as informações, como os tipos de armas comercializadas e os anos em que as transações foram realizadas. Isso levanta a preocupação com possíveis compradores, que poderiam incluir regimes acusados de autoritarismo e violação de direitos humanos, além de terroristas e traficantes.
Armas brasileiras em zonas de conflito
Artefatos produzidos por empresas fabricantes de armas brasileiras têm sido encontrados em conflitos pelo mundo nos últimos anos. Em 2011, diversos governos de países onde ocorreram os protestos que ficaram conhecidos como Primavera Árabe foram vistos usando armas brasileiras. Já em 2013, bombas de fabricação brasileira foram utilizadas pela polícia e pelo Exército turcos para combater manifestantes em Istambul.
Armas de fragmentação são proibidas em mais ou menos cem países, devido a sua imprevisibilidade. Apesar de serem programadas para detonar assim que atingem o solo, muitas vezes falham no momento do contato e permanecem à espera de civis desavisados. Pesquisadores encontraram algumas dessas armas de fabricação brasileira na guerra civil do Iêmen recentemente.
De 2010 a 2015, as exportações de armas brasileiras para a Arábia Saudita cresceram cerca de 235 vezes. Dados do Ministério do Desenvolvimento apontam que, entre janeiro e outubro de 2015, as compras fizeram com que o país se tornasse o segundo principal comprador de armas leves brasileiras, superado somente pelos Estados Unidos. O período coincide com o envolvimento dos sauditas na guerra do Iêmen, liderando coalizão que combate um grupo rebelde que tenta derrubar o governo – cuja atuação foi criticada pela Anistia Internacional por causar mortes de civis.
Em maio do ano passado, a Forjas Taurus, maior fabricante de armas da América Latina, teve dois de seus ex-diretores denunciados pelo Ministério Público Federal por venderem armas a um traficante do Iêmen, em um ato de violação a sanções internacionais. Teriam sido vendidas 8.000 pistolas ao traficante em 2013. Segundo a empresa, o destinatário do lote era o governo do Djibuti, país sobre o qual não há embargos comerciais.
Já a fabricante brasileira Condor Tecnologias Não-Letais, que tem sede em Nova Iguaçu (RJ), fornece armas para inúmeros governos. Segundo pesquisadores do Instituto Igarapé, organização sem fins lucrativos focada em segurança e desenvolvimento, somente a Venezuela adquiriu da empresa 143 toneladas de produtos entre 2008 e 2011. É o equivalente a pelo menos US$ 6,5 milhões em artefatos não letais. Em 2011, imagens divulgadas por opositores da monarquia do Bahrein mostravam bombas iguais às da Condor que teriam sido usadas para repressão. Na época, a empresa divulgou comunicado afirmando nunca ter exportado itens para o país.
A situação preocupa observadores internacionais. O lucro é o principal quando se trata da exportação de armas no Brasil e a falta de regulamentação também não ajuda. A Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar foi criada em 1974, durante a Ditadura Militar, e passou por reformas apenas nos anos de 1981, 1983, 1990 e 1993. Em nenhuma reforma foram obtidos maior controle ou mais transparência nas transições comerciais internacionais.
O país foi um dos primeiros a assinar o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA), da Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, nunca ratificou o acordo, cujo foco era restringir violações de direitos humanos causadas pela falta de regulamentação na venda internacional de armas e impedir o desvio durante as transações.
E as armas dentro do país?
A chamada “bancada da bala”, por exemplo, é o conjunto de congressistas brasileiros que apoiam o afrouxamento de leis de controle de armas e o aumento do acesso a elas. Políticos como o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC/RJ), conhecido nacionalmente por suas declarações controversas, assim como seus filhos, Flávio Bolsonaro, deputado estadual (PSC/RJ), e Eduardo Bolsonaro, deputado federal (PSC/SP), declaram um posicionamento favorável ao armamento da população.
A bancada se mobiliza em torno dos interesses da indústria bélica, tendo como destaque o Projeto de Lei (PL) nº 3.722/2012, elaborado pelo deputado federal Rogério Peninha Mendonça (PMDB/SC), que visa revogar o Estatuto do Desarmamento. O PL segue como pauta no plenário, aguardando julgamento na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Essa não foi a única tentativa da bancada tentar alterar as condições de aquisição, registro e porte de armas de fogo – diversos outros projetos enviados ainda tramitam no Congresso.
O apoio entre essa frente parlamentar e a indústria de armas é mútuo. De acordo com o Congresso em Foco, as empresas armamentistas Forjas Taurus e Companhia Brasileira de Cartuchos fizeram, nas eleições de 2014, doações que totalizam R$ 1,91 milhão para mais de 30 políticos, que eram candidatos a cargos como deputado estadual, deputado federal, senador e governador.
Ainda de acordo com o levantamento, todos aqueles que disputaram posto na Câmara dos Deputados foram eleitos, sendo que o maior beneficiário das doações foi o deputado estadual Pedro Lupion (DEM/PR), que recebeu R$ 149,8 mil da Forjas Taurus e da CBC. A segunda maior doação foi feita para o deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP), que recebeu R$ 130 mil da CBC.
O Estatuto do Desarmamento, que foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, previa a consulta popular para decidir sobre os rumos da legislação que regulamenta o comércio de armas no país. O referendo foi realizado em 2005 e o povo teve que decidir, nas urnas, se pessoas civis teriam o direito de comprar armas. O porte de armas já havia sido proibido.
A pergunta à qual os brasileiros tiveram que responder era a seguinte: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Os eleitores podiam votar “sim” ou “não”, voto em branco ou voto nulo. A maioria da população votante escolheu o “não”: foram 63,94% dos votos rejeitando a proposta, enquanto 36,06% votaram no “sim”.
Com a vitória do “não” para o referendo sobre o Estatuto do Desarmamento, o povo brasileiro decidiu por preservar o direito pelo acesso às armas de fogo no Brasil. O “não”, apoiado por empresas como a Forjas Taurus e a Companhia Brasileira de Cartuchos, foi vitorioso em todas as regiões e estados do país. Desse modo, ainda era possível a obtenção dessas armas, desde que o comprador estivesse de acordo com os requisitos para isso.
Ainda assim, o referendo apenas colocou restrições ao artigo 35 do Estatuto do Desarmamento; todo o restante do projeto foi instituído. Em seguida, a principal medida prática tomada pelo governo foi a criação da Campanha Nacional do Desarmamento, que visou a regularização de armas sem registro que a população tivesse em um prazo de até 180 dias, ou a entrega de boa-fé das mesmas para órgãos governamentais, conforme a Lei 10884 de 17/06/2004.
Ainda de acordo com a lei, cidadãos que entregassem as armas receberiam indenizações com base no tipo e calibre da arma. Atualmente, as quantias variam de R$ 150,00 a R$ 450,00. Segundo relatório da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), a campanha recolheu, até 2014, um total de 649.250 armas em todo o país.
Com a promulgação do Estatuto do Desarmamento, também foram modificados os requisitos que um cidadão deve cumprir para conseguir adquirir armas de fogo. Confira no infográfico abaixo quais são essas condições:
Efeitos do desarmamento
Apesar do esforço do governo federal para incentivar o desarmamento, há quem discorde das políticas públicas tomadas. Carlos Eduardo Assumpção, funcionário da Safari, a mais antiga loja de armas de Bauru, acredita que as vendas caíram por causa do Estatuto do Desarmamento. “Devido a proibição de propagandas de armas, muitas pessoas acreditam que é proibido ter armas de fogo no Brasil. Existe a procura, mas acabam desistindo por causa da burocracia e dos altos custos para conseguir comprar”, afirma. Ele também faz uma crítica aos intuitos básicos do projeto. “Não teve o efeito que o autor da lei esperava, que era diminuir as mortes por armas de fogo no Brasil. Muito pelo contrário, o número só vem crescendo desde então”, diz.
De fato, o número de mortes por armas de fogo no Brasil cresceu desde que o estatuto está em vigência, como pode ser visto na edição de 2016 do Mapa da Violência, estudo divulgado pela Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso).
Porém, como também pode ser observado no gráfico, esse aumento tem um valor percentual menor do que o do período anterior ao Estatuto do Desarmamento. O Mapa da Violência também fez uma comparação entre os dados de homicídios por armas de fogo previstos e os homicídios por armas de fogo registrados, todos durante o período de 2003 à 2014.
Após a promulgação do estatuto e da criação da Campanha Nacional do Desarmamento, em todos os anos o número de homicídios por armas de fogo foi menor do que o previsto, sendo a previsão feita com base no aumento percentual dessas mortes em anos anteriores.
Civis e políticos começam a se posicionar contra o projeto em vigência e à favor das armas de fogo. “Creio que o governo não entendeu que a população brasileira é a favor de que as pessoas de bem tenham armas”, declara Alexandre Noronha, gerente geral do Centro de Treinamento Tático, empresa especializada em treinamentos e formação de agentes de segurança.
Um dos principais pontos das pessoas que defendem a legalização das armas de fogo e o armamento da população é sobre segurança e criminalidade. Muitos acreditam que os crimes acontecem porque criminosos sabem que a população não está armada e eles não sofrerão revide. “Ajudaria muito [ter armas], pois quem tivesse a intenção de assaltar as pessoas seria surpreendido por quem estivesse armado, então eles pensariam duas vezes antes de ir para a rua”, reitera Alexandre.
foto em destaque: Guilherme Sette
Reportagem: Heloísa Scognamiglio e Lucas Ferreira
Produção Multimídia: Mariana Hafiz
Edição: Marina Kaiser