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Caminhos da falta de um lar

A Rede de Proteção às Crianças e Adolescentes de Bauru trabalha pelo bem-estar dos menores em estado de vulnerabilidade

A adoção pode ser uma nova chance de relacionamento familiar a uma criança que por algum motivo esteve em estado de vulnerabilidade e hoje vive em um abrigo. É também um sonho de famílias que desejam ter um novo membro para criar. Segundo dados de junho de 2015, oito crianças estão cadastradas como disponíveis para adoção em Bauru, seis delas acima de 15 anos, já na adolescência, e 175 famílias aguardam na fila para adotar.

No Brasil, 6.125 crianças e adolescentes estão no Cadastro Nacional de Adoção e 34.029 pessoas formam a ‘fila’ dos pretendentes. Um dado se repete nos números de Bauru, do Estado ou do país inteiro: a procura é maior que a demanda, mas os abrigos não esvaziam porque as preferências de quem deseja adotar  em relação a idade, o sexo, a cor e as condições de saúde das crianças que fazem parte do Cadastro, não correspondem à realidade de quem vive nos abrigos.

Infográfico Adoção Final 2- Laura Fontana Novo

As crianças recém-nascidas, brancas, sem irmãos e não portadoras de doenças ou com algum tipo de deficiência são as únicas que usufruem dos abrigos como deveria acontecer com todos: um local de passagem. Estes ambientes se tornam lares de crianças e adolescentes que crescem com o carinho dos profissionais atuantes, mas sem referências familiares, sem um local para chamar de lar.

Assim como estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Bauru trabalha com o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) que atua em diferentes eixos para assegurar os direitos dos mais de 19 mil menores que vivem na cidade. A Rede de Proteção Social é composta pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Conselho Tutelar, Fórum e inúmeras associações que recebem auxílio da Secretaria do Bem Estar Social. Normalmente, a rede é acionada após uma denúncia de situação de vulnerabilidade infantil chegar ao Conselho Tutelar.

Adoção: do tabu à iniciativa natural

Não vejo porque criar esse tabu, porque pra mim pai e mãe é quem cria, educa e dá amor”. A fala é de Giovanna Yoneda, bauruense de 22 anos adotada na terceira hora de vida. A jovem que hoje vive longe da família, na capital de São Paulo, acredita que a mídia ainda faz da adoção um tabu, enquanto que as pessoas devem começar a encará-la como natural. “No momento em que uma criança é adotada uma família é formada e não vejo porque algumas pessoas enxergam como algo diferente de qualquer outra família”, diz.

Se a adoção acontece enquanto o bebê é recém-nascido, o momento de contar sobre a constituição da família costuma ser delicado. Giovanna se lembra de como recebeu a notícia, “quando algum médico perguntava histórico de doenças na família minha mãe falava que eu era filha de coração”, conta, “quando perguntei o que era ela me explicou, mas mais de uma vez porque eu era muito nova”.

O aconselhável é, assim como fez a família de Giovanna, contar a realidade assim que a criança perguntar sobre a situação, comenta Sylvia, psicóloga da Associação Flor de Liz. A ONG é um grupo de apoio à adoção que atua na região de Bauru e completa dois anos em setembro de 2015. Realizam encontros de acompanhamento com pretendentes, pessoas que desejam adotar filhos e já passaram pelo curso do Fórum – 33 no momento,  e pais que já adotaram, 23 atualmente. Durante as trocas de experiência,  há relatos de pais que já passaram pelo processo, mostras de vídeos, leituras de documentos, sempre com o intuito de ajudar na informação.

A Associação Flor de Liz realiza também acompanhamento psicoterápico e psicopedagógico com crianças e adolescentes que são encaminhados por abrigos da cidade, um bom momento para que eles explorem suas individualidades e conheçam e expressem seus traumas. “Essas crianças em atendimento psicoterápico normalmente estão tão acostumadas a agir no coletivo em abrigos, que gostam do acolhimento no atendimento individual”, conta Sylvia. “Principalmente porque se tratam de crianças que foram muito enganadas já na fase inicial de sua vida, então é importante que estabeleçam relações de confiança com o psicólogo”, completa.

Sem incentivos do Governo, a associação é mantida por empresas e não é uma etapa obrigatória no processo de adoção. Os pais chegam ao grupo após passarem pelo curso fornecido pelo Fórum, este sim obrigatório.

Ilustra Jackie Monteiro

Ilustração feita por Jackie Monteiro para o livro “Filho por Amor – A história de Guido”, das psicólogas Alessandra Macêdo, Geórgia Hackradt, Gessica Raquel, Mariana Francelino e Nayara Mota. O livro conta a história de um garoto chamado Guido e sua vivência junto à sua irmã Nina, em uma instituição de acolhimento até serem adotados.

Giovanna cresceu sem passar por grandes discriminações. “As pessoas se sentem até sem graça quando fazem alguma brincadeira sobre eu ser um pouco diferente dos meus pais e eu falar que sou adotada” e conta que nunca teve a curiosidade de conhecer os pais biológicos. Pensa que “se fui adotada é por que, por algum motivo, meus pais biológicos tiveram que fazer isso e eu só tenho que agradecer aos meus pais por tudo”.

Sobre o convívio familiar, Giovanna conta que nunca foi diferente do que em outras famílias do seu círculo social. Mas há casos de crianças que sofrem discriminação na nova família, conta Ieda Maria, presidente do Conselho Tutelar II. “Um menino negro adotado por uma família branca já chegou vir chorando me falar que, quando sua mãe explicava para alguém a relação dos dois, respondia que era seu filho que havia ficado mais tempo no forno”, conta Ieda. A declaração demonstra que o racismo está enrustido inclusive nas poucas famílias (são 15.235 no Brasil, 44.77% do total de pretendentes) que aceitam adotar crianças negras (2.021 negras e negros, 33% do total de crianças). Enquanto que crianças das características de Giovanna são as mais desejadas. (92% dos pretendentes aceitam crianças brancas, 31% só aceitam meninas, 29% só aceitam crianças de até um ano) Ou seja, assim como há 22 anos, hoje Giovanna possivelmente não passaria muito tempo sem lar.

                                                 

No primeiro semestre de 2015, 625 crianças foram adotadas no Brasil segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (Vídeo: Laura Fontana Novo/Repórter Unesp)

Primeiro passo, a denúncia de vulnerabilidade

Por dia, os Conselhos Tutelares de Bauru recebem em média 70 atendimentos e denúncias, abrangendo falta escolar, abuso sexual infantil, pedofilia, violência física e psicológica contra crianças e adolescentes. Muitas das ligações e denúncias físicas são casos emergenciais que precisam de uma ação rápida e, para isso, a cada dia um conselheiro é responsável por agir nesses casos.

“O Conselho não julga, nós encaminhamos um julgamento, isso vale pra qualquer aplicação de medida. Logicamente em situação de risco, caso de vulnerabilidade, quando uma criança ou adolescente está com seus direitos violados, e é uma denuncia que é de imediato um fato real, antes de comunicar o juiz sobre o que está acontecendo nós tomamos a medida. Nós aplicamos a medida protetiva e na sequência informamos o juiz sobre aquilo que a gente fez”, comenta Ieda.

Bauru possui dois Conselhos Tutelares, mas de acordo com a determinação legal de que deveria haver um Conselho a cada 100 mil habitantes, a cidade deveria ter três unidades para atender aos seus mais de 364 mil habitantes (dado registrado pelo IBGE em 2014). Ieda Maria é Presidente da Unidade II do Conselho Tutelar, situada na Vila Falcão, no prédio da Secretaria de Bem Estar Social (SEBES). Ela conta que “ esse local é estratégico pela proximidade com a equipe do CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] e do CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social] , que tem uma psicóloga especializada na área de abuso, uma situação que infelizmente atendemos muito, principalmente casos de denúncia ou eles mesmo vêm até a unidade”.

Ieda conta que, em Bauru, denúncias são feitas pelas próprias crianças, que ali recebem o auxilio que necessitam. A vulnerabilidade dessas crianças é fruto, muitas vezes, de falhas na própria estrutura familiar. São mães e pais que não planejaram a gravidez, ou não têm condições psicológicas e financeiras de criar os filhos em um relacionamento saudável de lar.

Para a presidente do Conselho Tutelar, a rede de proteção ainda precisa se fortalecer na área da família, para agir na prevenção desses maus-tratos, ou dessas gravidezes indesejadas. Uma mãe que não cumpre seis pré-natais, por exemplo, já tem retirado o seu direito de ficar com o filho assim que ele nascer. Ieda acredita que se houvesse uma melhor instrução durante a gravidez com o acompanhamento psicológico adequado, poderia ser possível impedir que essas crianças sejam encaminhadas para abrigos.

Acolhimento – Nova oportunidade no antigo lar

Em Bauru, duas Associações atuam com o método de Acolhimento das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. O programa foi criado pelo Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária em 2006 e incorporado à lei devido aos resultados positivos, como consta na Agência de Notícias do Senado.

O serviço chegou a Bauru pela Fundação Toledo (FUNDATO), em 2011, e funciona de modo que famílias se dispõem a acolherem em seu lar menores vulneráveis, enquanto as relações dentro do lar de origem são tratadas em conjunto pela Rede Social de Proteção de Bauru. O acolhimento dura em média seis meses, e tem tido resultados positivos, como avalia Fabíola, assistente social da Fundação, já que, “por exemplo, nenhuma criança ou adolescente teve que voltar ao abrigo após passar pelo trabalho da FUNDATO”.

Fabíola conta que a etapa mais difícil do trabalho de acolhimento é a capacitação das famílias acolhedoras. A família que deseja se tornar acolhedora vai à FUNDATO e tem uma primeira conversa para conhecer as necessidades do serviço. Se depois disso, continuar interessada a assumir tal responsabilidade, passará por em média seis encontros de capacitação, em que são trabalhados diversos temas: “nos encontros, falamos com as famílias acolhedoras sobre configuração familiar, toda a parte jurídica para ter completa noção do serviço, da questão do apego, do desligamento, de não fazer posts das crianças nas redes sociais, já que elas estão em medida protetiva, ou seja, há todo um cuidado”, explica a assistente social.

A FUNDATO também visita o lar da futura família acolhedora para inclusive saber se todos da casa estão dispostos a participar do processo, e para conhecer o espaço físico. Quem se interessa pelo serviço são geralmente famílias de classe média ou baixa, sem muitos recursos financeiros, mas bem estruturadas, que tem condição de ensinar o que é uma família, dar carinho e amor, que é o que as crianças mais precisam.

“Essa preparação demora em média dois meses, e assim que uma nova criança chega à Fundação, a família é noticiada e, caso se enquadrar nos desejos de acolhimento, já prepara a casa para recebê-la. “Quando o acolhido é um bebê, o processo é mais simples, mas quando já está crescido, a família tem que estar preparada para explicar muito bem para a criança o porquê de ela estar ali”, conta Fabíola
Para auxiliar nas relações dentro da casa acolhedora, o psicólogo e as assistentes sociais da Fundação acompanham o processo de perto. A família biológica recebe o acompanhamento da Fundato e da Rede de Proteção de Bauru, que realiza encontros uma vez por mês para fazer o estudo dos casos e avaliar a evolução da família. Uma vez por semana, o motorista da Fundação busca as crianças para que elas se encontrem na Fundato com a sua família de origem, com o objetivo de viabilizar a convivência familiar.
Mas há algumas famílias que no meio do processo não têm mais o interesse em ficar com a criança, e então a situação será encaminhada para o Fórum e este dará início ao processo de adoção.”.

“Diferente da adoção, o nosso trabalho é para que a criança volte para sua casa em boas condições”, conta Fabíola. A associação cuida atualmente de 13 crianças, a mais velha com quatro anos. São oito meninos e cinco meninas, uma delas portadora de Síndrome de Down.  

O serviço de acolhimento em Bauru também é realizado pela Acop.

Confira aqui uma entrevista com Ieda Maria de Souza, atual Presidente do Conselho Tutelar II de Bauru.

Para mais informações, procure:

Fundação Toledo (FUNDATO) fundato@fundato.org.br

Tel: (14) 3879-3650

Endereço: Rua Azarias Leite 13-16

Reportagem: Mariana Caires

Produção Multimídia: Laura Fontana Novo

Edição: Bianca Arantes

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