Maternidade é marcada por injustiças sociais e jornada dupla de trabalho
No momento conturbado da política brasileira, ganham força discussões acerca dos impactos das reformas econômicas para o futuro das mães trabalhadoras
A carioca Camila Barbosa Lima, 29, é uma profissional qualificada no ramo em que atua. Formada em design gráfico e pós-graduada em gestão estratégica em comunicação, Camila passou, no entanto, por uma situação desagradável há alguns anos: fora desconsiderada de uma vaga de trabalho por conta do nascimento de sua filha. Uma situação particular que ilustra a dificuldade de milhares de mulheres em conseguir espaço no mercado de trabalho.
Possuir uma boa formação profissional, dominar outro idioma, ter estudado fora do país. Estas são qualificações bem-vindas em um candidato para uma vaga de emprego, mas que podem ser preteridas quando o assunto é outro: o gênero. Por conta das dificuldades alegadas por muitos empregadores em relação à maternidade, os homens levam, em geral, vantagem quando disputam uma vaga de emprego com uma mulher.
Para a bióloga e criadora do site “Cientista Que Virou mãe”, Ligia Moreiras Sena, a discriminação de mulheres em vagas de emprego se justifica por uma lógica machista no mercado de trabalho. Ela acredita que a justificativa não serve apenas para afastar do mercado de trabalho as mulheres que são mães, mas todas as mulheres – uma vez que todas as mulheres podem ser mães, mesmo as que não tem filhos no momento podem engravidar. “Essa é uma justificativa bastante misógina que fere os vários tratados internacionais que garantem os direitos das mulheres, e que, infelizmente, algumas empresas, mesmo disfarçadamente, ainda seguem”, comenta.
A bióloga formada pela Unesp e co-autora do livro “Educar sem violência – Criando Filhos sem Palmadas” também contraria a ideia de que a maternidade é um processo prejudicial à vida profissional da mulher. “Posso dizer com toda a tranquilidade que empregar mulheres mães traz benefícios adicionais para uma empresa. Pelo fato das mulheres que são mães acumularem diversos papéis sociais e serem sobrecarregadas inúmeras vezes, nós desenvolvemos uma maneira de administrar muito bem diferentes situações. E isso é uma habilidade que a gente não restringe a nossa vida pessoal, mas aplicamos à vida profissional também”. Lígia ainda completa afirmando que contratar uma mulher que é mãe tem que implicar à empresa o compromisso social de compreender que toda a sociedade é responsável pela criação das crianças, não apenas uma mulher.
Se para muitas empresas ter uma criança pequena pode gerar dúvidas quanto à disposição da contratada em se dedicar ao trabalho, para Camila Barbosa esta justificativa é duvidosa. “Não acredito que meu desempenho seja prejudicado pela maternidade e atividades domésticas. Sinto que o desempenho é prejudicado por fatores relacionados à própria relação de trabalho, no dia a dia do escritório. O desempenho tem uma relação maior com a cultura da empresa e o perfil do empregado”.
Além da dificuldade de muitas mães em compor a população economicamente ativa do país, a desigualdade de gênero é cruel com a maternidade por outro fator: a jornada dupla de trabalho. Um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com a ONU Mulheres comprova que a responsabilização das mulheres pelo trabalho doméstico não remunerado continua sendo um padrão predominante na sociedade brasileira. O estudo realizado com base em indicadores da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) apresenta séries históricas de 1995 a 2015 e traz um dado desalentador: mais de 90% das mulheres declaram realizar atividades domésticas.
O estudo, publicado neste ano dois dias anteriores ao Dia Internacional da Mulher, conclui que não há uma nova divisão das tarefas domésticas entre homens e mulheres, pois o tempo médio gasto pelos homens nesta atividade praticamente se manteve estável. Em média, as mulheres trabalham semanalmente 7,5 horas a mais que os homens.
Outro fator considerado pela pesquisa em relação ao tempo dedicado ao trabalho doméstico é a renda. Quanto maior a renda, menor o tempo despendido com atividades no domicílio. As mulheres mais pobres chegam a gastar, por exemplo, 11 horas a mais que as mulheres de alta renda com atividades em casa. Uma das explicações é que famílias com rendas mais altas têm maiores possibilidades de contratar trabalhadoras domésticas e adquirir eletrodomésticos.
Além de trabalhar mais, uma mulher tende a ganhar menos quando ocupa o mesmo cargo que um homem. E o Brasil é um dos piores países quando o assunto é disparidade salarial entre os gêneros. Um relatório do Fórum Econômico Mundial coloca o Brasil na 79ª posição, em um raking que analisou 144 países. Os últimos colocados são Arábia Saudita, Síria, Paquistão e Iêmen.
Especialista em políticas públicas e gestão governamental e uma das autoras da pesquisa, Natália Fontoura acredita que a predominância da figura feminina como principal responsável pelo trabalho doméstico se deve à dificuldade das mulheres em conseguir maior participação no mercado de trabalho. Ela conta que eles avaliam através dos dados algumas transformações importantes que aconteceram no Brasil, como por exemplo o fato das mulheres estarem mais escolarizadas e assim entrarem mais no mercado de trabalho. “Se considerarmos décadas atrás, nos últimos 20 anos, o que a gente percebe é que houve um teto de participação das mulheres no mercado de trabalho. Elas entraram maciçamente nos anos 70, 80, mas desde o ano de 1995 percebemos que essa proporção de mulheres que participam do mercado de trabalho se mantém estável, em torno de 50%, nem chega a 60%. É, portanto, um patamar considerado muito baixo e concluímos que mais da metade das brasileiras não trabalham e nem procuram trabalho”, explica.
A pesquisadora do Ipea também cita o fator sócio histórico como uma das causas da predominância da mulher em atividades domésticas. Para ela, as mulheres no Brasil são responsáveis por um trabalho permanente, não valorizado, que acontece todos os dias: elas cuidam dos mais necessitados, como crianças e idosos e, por conta de tudo isso, fica mais difícil se colocar no mercado de trabalho. “Eu acredito que vivemos em uma cultura machista, em que o papel das mulheres é desvalorizado. Quando a gente fala nos espaços de poder, elas ainda estão aleijadas. E isso está enraizado em nossa cultura, o que não é de fácil transformação”, conclui.
Reforma da Previdência
Claudinéia da Silva, 37, é uma entre milhões de brasileiras que compõem umas das categorias mais significativas da ocupação feminina no trabalho. Residente no Bairro Parque Jaraguá, em Bauru, Claudinéia é empregada doméstica há quatros anos. Segundo projeção do Pnad, aproximadamente 14% das mulheres ocupadas no Brasil exercem o emprego doméstico remunerado. A categoria também é notável por um significativo envelhecimento. Em 2015, apenas 16% das empregadas domésticas tinham até 29 anos de idade. Reconhecida pela baixa adesão ao trabalho formal, altas cargas de trabalho e renda média abaixo do salário mínimo, esta é uma das categorias profissionais que mais sofrerá os efeitos da reforma da Previdência.
Aprovada na Comissão Especial da Câmara por 23 votos a 14, a proposta da reforma da Previdência segue para ser votada no plenário da Casa. Principal projeto do Governo Temer, a PEC 287 é também alvo de fortes críticas por parte de centrais sindicais, movimentos sociais e da sociedade civil. Entre as mudanças, podem ser aprovados o aumento da idade mínima de aposentadoria de 65 anos para homens e de 62 anos para mulheres, aumento do tempo mínimo de contribuição de 15 anos para 25 anos, além do incremento do tempo mínimo de aplicação no INSS para conseguir aposentadoria integral, que passa a ser de 40 anos. Entre os 36 membros titulares da Comissão, há apenas uma mulher, a deputada Jandira Feghali (PcdoB-RJ).
Para Aparecida Moura, Secretária Nacional de Políticas do Trabalho e Autonomia Econômica das Mulheres, as reformas na economia podem promover maior equidade entre os gêneros. “Atualmente as mulheres brasileiras possuem em média 8 anos de estudos, sendo que a maioria com ensino superior. E mesmo assim muitas mulheres ainda ocupam postos de trabalho caracterizados por instabilidade, informalidade, precariedade e baixos salários. As mulheres são, hoje, 51,6% da população brasileira. Contudo, ainda temos que nos deparar com situações nas quais o salário de uma mulher branca é 70% menor em relação a um homem branco, e a mulher negra chega a ganhar 40% do salário deste homem. Ao adotarmos políticas públicas para mulheres de forma sistemática e sincronizada pelo governo e a sociedade civil, podemos, sim, fazer as transformações que precisamos para maior equidade e avançarmos ainda mais na autonomia econômica da mulher no Brasil”.
Questionada sobre a influência da reforma da Previdência na vida das trabalhadoras brasileiras, a pesquisadora do Ipea, Natália Fontoura, não esconde sua preocupação. “A questão que está em jogo [com a proposta da Previdência] é a repercussão muito danosa para a população pobre e para as mulheres. Elas terão ainda mais dificuldades de se inserirem no mercado. Se hoje elas têm dificuldades em entrar no mercado como os dados mostram, tudo indica que haverá piora em questões como alcance a maior formalidade, facilidade para se aposentar. E outros quadros como retração das políticas sociais, envelhecimento da população e adoção de políticas hoje inexistentes, como a assistência à população idosa, têm de fato um risco de impactar a participação das mulheres na economia”, alerta.
Com a única certeza de que o futuro é incerto diante do momento político do país, Claudinéia espera pacientemente pelo ônibus que a conduzirá até sua casa. Sem a garantia de uma aposentadoria alcançável – Claudinéia começou a trabalhar na roça ainda na adolescência –, a mãe de três filhos só pede ao repórter que não prolongue muito a entrevista. “Só não posso perder esse ônibus. Chegando em casa ainda tenho roupa pra lavar, tenho que fazer janta e limpar a casa. É difícil, é complicado”.
Reportagem: Jhony Borges
Produtora Multimídia: Giovana Romania
Editora: Bárbara Paro