53,6% dos gamers brasileiros são mulheres, segundo a pesquisa Game Brasil, realizada este ano pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), pela Blend Research e pela produtora de jogos Sioux Interactive. Apesar de apresentar que, pelo segundo ano consecutivo, a porcentagem de mulheres jogando supera a de homens, o número ainda surpreende grande parte da sociedade que tende a ver o mundo dos games como um espaço masculino. Para o público de jogadores o resultado também pode parecer estranho: dos entrevistados, a maioria relatou que a quantidade de homens que encontram jogando supera substancialmente a de mulheres.
Parece contraditório, mas vários podem ser os motivos que levam os gamers a ter essa percepção. Ainda de acordo com a pesquisa Game Brasil, as jogadoras preferem utilizar dispositivos móveis, como celulares ou tablets, enquanto os meninos preferem consoles. “As mulheres habitam outros espaços que não o que eles são maioria”, afirma Helena Nogueira, jornalista e gamer.
A jovem de 23 anos conta que começou a jogar logo na infância – quando ganhou junto com seu irmão um Nintendo 64 de Natal – e segue no mundo dos games até hoje. Para ela, “ter o console de mesa da Nintendo da geração se tornou obrigatório” e o gosto por essa área do entretenimento influenciou até na escolha da profissão. Ainda assim, Helena enfrenta certo preconceito familiar. “[Já aconteceram] coisas como estar jogando com meus primos e um deles virar e dizer ‘você não joga bem, é inútil continuar tentando’ ou ‘passa o controle pra mim que eu faço essa parte pra você’”, comenta.
Mas o caso de Helena ainda é uma exceção: nem todas as meninas têm contato com jogos de console. A dificuldade ao acesso a videogames como Nintendo e Xbox também é uma barreira para garotas desde a infância. Para a psicóloga Izadora Perkoski, mestre em análise de comportamento e pesquisadora da área de games, o apoio da família em relação aos interesses das filhas é essencial para que elas se sintam confortáveis no ambiente e tenham acesso aos jogos de forma segura. No entanto, o contato com videogames não é tão incentivado para as meninas quanto é para os meninos. “A menina geralmente é desmotivada a jogar com meninos e não ganha videogames dos pais”, concorda Helena. Produtora do documentário Donzela em Defesa, no qual trata sobre o assunto mulheres e games, a jovem ainda acredita que esse processo de desmotivação acontece também durante a pré-adolescência. “Na infância não há tanto estranhamento com o fato da menina se mostrar moleca, em outras palavras, fazer coisas consideradas do gênero masculino. Na pré-adolescência a supervisão e a ansiedade social sobre elas aumentam, o que é crucial para o afastamento dos videogames”, explica.
Desfavorecidas neste meio, as mulheres continuam encontrando resistência em outros estilos de jogos – um número bem menos expressivo de mulheres são jogadoras de MMORPG, jogo online com vários jogadores. Os games que conectam pessoas de diferentes localizações no mesmo ambiente virtual costumam ser tóxicos e machistas. Uma pesquisa realizada ano passado pela Universidade Estadual de Ohio obteve como resultado a resposta de 293 garotas que jogavam em média 22 horas semanais e 100% das entrevistadas confirmaram que já haviam sofrido assédio em jogos online.
Por relatos, é possível constatar que é comum que mulheres recebam propostas sexuais, xingamentos ou ainda alusões ao estupro. Comentários machistas como “Vai lavar a louça” e “Volta para a cozinha” também são utilizados para agredir psicologicamente as jogadoras. Por esse motivo, grande parte do público feminino abandona os jogos online.
Gabrielle Saunitti, de 22 anos, é gamer desde pequena e sempre jogou online. A jovem conta que mesmo criança sofria assédio nos chats de Grand Chase e não conseguia entender ou lidar com a situação. A experiência se repetiu quando começou a jogar League of Legends e, ao perceber que aquilo era comum naquele ambiente, Gabrielle parou de jogar por um tempo. ”Depois disso eu comecei a esconder que era uma jogadora, até mesmo comecei a conversar no chat como se fosse homem, usando o final das palavras no masculino”, conta.
A representação estereotipada das personagens mulheres
A possibilidade de possuir qualquer identidade e assumir diversas funções pode ser um dos maiores atrativos do mundo dos games, mas quando se trata de personagens para o público feminino, a variedade ainda deixa a desejar. Representadas por estereótipos de corpo, etnia e personalidade, as mulheres dos jogos se dividem entre a heroína forte e extremamente sexualizada ou a ingênua e indefesa mocinha. “A representatividade é mais um fator que sustenta a afirmação de que ‘esse espaço não nos pertence’”, acredita a gamer Helena Nogueira.
Boa parte das personagens mulheres aparecem vestindo roupas curtas e justas em um corpo magro, com seios e nádegas avantajados – o mesmo estereótipo de beleza que é reproduzido na sociedade não virtual. A sexualização também está presente nas locuções da figura, que geralmente tem gritos semelhantes aos gemidos sexuais, ofegantes e agudos. “Um exemplo problemático são os jogos de MMO. Quando a personagem homem ganha uma armadura, fica grande, musculoso. Quando é mulher, ficam como se estivessem de calcinha e sutiã”, comenta o ilustrador de games Bruno Ferraz.
Talvez isso não seria um problema se esse não fosse um modelo predominante – sem opções, muitas meninas que jogam não se sentem representadas por essas imagens. “A gente pode fazer a mesma crítica da televisão, do cinema e da propaganda. A imagem que a menina vai construir não é composta só pelo videogame, mas é evidente que como política você prefere que os jogos tenham uma diversidade maior de papéis”, ressalta a psicóloga, pesquisadora e professora na área de games Ivelise Fortim. A hipersexualização e a fragilidade são mensagens enviadas sistemática e generalizadamente para as meninas e, para a também psicóloga Izadora Perkoski, “essa socialização para submissão faz com que elas não desenvolvam, ou desenvolvam com muito mais dificuldade, certas habilidades relevantes para a vida adulta”, como o poder sobre o próprio corpo e a escolha de um estilo de vida.
Como produtor da identidade visual de personagens, Bruno Ferraz acredita que, além do problema da sexualização feminina, isto também escancara um problema de design, uma vez que “o designer coloca como preferência a sexualização em detrimento do seu próprio jogo e da narrativa, e ainda prejudica as mulheres”. Apesar de concordar com a necessidade de variação de biotipos, o jovem acredita que a quantidade de personagens masculinos ou femininos é um fator independente. “Eu nunca vi diferença entre ‘esse personagem tem que ser mulher ou homem’. Se, no sentido do jogo e do background daquela personagem, ela ser mulher ou homem fizer sentido, então eu não vejo problema” afirma.
No entanto, a gama de figuras femininas têm ganhado algumas variações que agradam ao público de gamers mulheres. Para Helena Nogueira, algumas personagens vão contra a estereotipação e propagam a ideia de empoderamento feminino. Confira abaixo alguns exemplos:
Pensando na dificuldade em se sentir representada pela grande maioria das personagens que teve contato, Gabrielle Saunitti decidiu fazer o seu trabalho de conclusão do curso de Produção Multimídia sobre a importância da representatividade nas produções culturais. “Me vi rodeada pela necessidade de abordar esse assunto. Com esse trabalho mostrei um pouco da realidade das mulheres no meio da cultura pop”, explica. Desenhou, então, algumas personagens já conhecidas em desenhos e games sem seguir o padrão da indústria – o resultado foi personagens diversificadas, gordas, negras, trans e asiáticas, todas características que não ganham destaque na mídia.
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Nos bastidores das produções
Como cita em seu artigo Mulheres e Games: uma revisão do tema, Ivelise Fortim acredita que a presença feminina é vista como “outsider” nos jogos, ou seja, um grupo que vem de fora e quer se estabelecer em um novo campo. No processo de produção dos games a situação não é diferente e o número de mulheres que trabalham na área é inferior ao de homens.
De acordo com as entrevistadas, vários são os problemas que influenciam esse cenário: a falta de acesso de meninas quando crianças ou jovens a games de console, a educação infantil e o consequente afastamento da área de exatas e também o preconceito com mulheres que trabalham na área de tecnologia. “Se você não dá acesso para as meninas aos videogames, depois elas não têm interesse em cursos de tecnologia ou de games” acredita Ivelise. Para a psicóloga, é difícil encontrar programadoras uma vez que os cargos ocupados por mulheres na indústria de games geralmente são em profissões de apoio, como marketing e comunicação. “A gente ainda não produz desenvolvedoras, então temos menos mulheres formadas nessa área, e tem também o ambiente sexista e hostil que privilegia menos as trabalhadoras”, comenta.
Repórter: Bárbara Paro Giovani
Produtora Multimídia: Nathalie Portela
Editor: Yuri Ferreira