Opinião |Onde se encontra a tecnologia na velhice?
De lavrador a auxiliar administrativo e a porteiro de edifício; a relação de um homem da roça com a tecnologia simboliza toda uma geração
“Lavouras de cana-de-açúcar e de café, chão de terra batida e cheiro de esterco de gado”. É assim que o porteiro João Osmar Portes, 74, sentado diante de duas TVs de plasma que exibem as filmagens de segurança do edifício, descreve o cenário em que nasceu, cresceu e viveu até seus 32 anos de idade.
Até aquele momento, Seu João morava em um sítio, no distrito de Lençóis Paulista (SP), Alfredo Guedes, e era lavrador. Tendo trabalhado na roça desde menino, conciliou estudos e serviço. Finalizando o ensino médio, dedicou-se integralmente ao gerenciamento das plantações. Além da enxada, operava máquinas agrícolas, e descreve esta como a maior expressão de seu relacionamento com a tecnologia nos tempos passados.
A presença no meio rural, na primeira parte da vida pelo menos, é característica da geração que hoje se constitui como terceira idade – os chamados “baby boomers”, nascidos no momento pós Segunda Guerra. Desta forma, têm uma visão de mundo e valores diferentes em relação a outras gerações. Seu João foi acostumado a esperar o período da colheita: o imediatismo e a praticidade são ideais supervalorizados a partir do século XXI, apenas.
Entretanto, se engana quem considera os velhinhos atrasados em relação à adaptação à tecnologia contemporânea. De acordo com uma pesquisa realizada pela Accenture (empresa global de consultoria de gestão, tecnologia da informação e outsourcing) neste ano, 25% dos entrevistados da faixa etária em questão têm o costume de ler blogs ou ouvir podcasts, 28% estão em redes sociais e 36% assistem ou colocam vídeos na internet. Números superiores aos do ano passado, quando eram, respectivamente, 15%, 25% e 26%. Não só as ferramentas de web 2.0 estão mais populares entre os mais velhos, afinal, no ano passado, por exemplo, 21% dos entrevistados ouviam música em dispositivos portáteis, e agora são 31%.
Além desta perspectiva que aborda o entretenimento, é importante tratar das questões práticas acerca da tecnologia no trabalho da terceira idade. Hoje em dia, a maior parte da população acima de 60 anos é aposentada, segundo dados do censo mais recente do IBGE. O restante se divide entre ocupantes de cargos de diretoria e gerência em empresas e os ofícios chamados periféricos, característicos de episódios de reinserção no mercado de trabalho: porteiro, cobrador de ônibus, empacotador de mercado e afins.
Seu João se enxergou perdido em 1974, quando, com 32 anos, recém separado de sua esposa e recém estabelecido na cidade de Agudos, não possuía capacitação além do nível médio e era um “chucro moço vindo da roça que não sabia nada de aparatos tecnológicos”, em suas palavras. Por isso, matriculou-se em um curso técnico de administração e aprendeu noções básicas de informática.
Aos 74 anos, é porteiro do edifício Antilhas há sete. O “chucro da roça” domesticou-se. Conheceu o pacote Windows, adquiriu celular para se comunicar com a nova esposa, tem internet em casa e assiste a seriados, trabalha com um sistema operacional exclusivo de segurança de prédios e opera câmeras e um computador.
Para ele, a adaptação foi natural e inevitável. Conforme apareciam demandas, ele se adequou. Conseguiu acompanhar um pouco do ritmo das inovações. No entanto, Seu João reconhece que o seu conhecimento e uso da tecnologia atual é moderado e afirma que a vida seria mais confortável se ele se dispusesse a aprender mais sobre o assunto.
Opinião
É muito generalista afirmar que a geração baby boomer possui um passado de contexto rural, no entanto, não se pode ignorar que essa característica está presente na maior parte da história dos nossos avós e se relaciona, por vezes indireta, por outras, diretamente ao contexto atual da relação da terceira idade com as tecnologias digitais.
Tanto porque as tecnologias eram mais “limitadas”, menos desenvolvidas, antigamente, quanto pela divergência de valores em comparação com a atualidade – fatos que se correlacionam –, as prioridades estabelecidas anteriormente não giravam em torno do imediatismo e da velocidade da informação do presente século. O perfil delineado por Seu João, que é na verdade uma alegoria para a identidade massiva da geração baby boomer, denota que era possível (e aceitável) ser alheio a grandes inovações tecnológicas. Telefonema era episódio raro, em caso de necessidade; televisão em casa era artigo de luxo; o rádio de pilha era o entretenimento mais acessível. Não se fazia questão de uma conexão para além da pessoal, da face a face. O mundo virtual não era precisado.
Com muitos anos e uma geração – a X – no meio do intervalo entre boomers e Y, concepções de mundo foram reformuladas. Hoje, a tecnologia, a conexão, a rede, são, de certa forma, intrínsecas a nossa existência. Aprendemos, desde muito jovens, a nos mantermos sempre disponíveis para contato, mesmo que – e na maioria é este o tipo – virtualmente.
A diferença mais expressiva é em relação à importância atribuída às tecnologias. Antes, eram só maneiras de ajudar e otimizar a vida. Hoje, são verdadeiras balizadoras do comportamento humano, fazem parte de nossa noção de mundo, de existir, de viver. A tecnologia está em nós de maneira palpável, nas nossas ações diárias, e de maneira etérea, como concepção.
Sendo assim, tão presente, a tecnologia atrai. A inclusão digital nunca foi tão valorizada. Mesmo os desinteressados são arrastados por questões de necessidade. Observamos, através de Seu João, que o mercado de trabalho acompanha o ritmo das evoluções digitais. Desta forma, a geração baby boomer cada vez mais se aproxima do mundo digital, percebendo-se uma tendência a fechar a lacuna tecnológica criada nos últimos anos.
Reportagem: Ingrid Woigt
Produção multimídia: Bárbara Christan
Edição: Daniela Leite