Por que Bauru sofre tanto com as enchentes?
Planejamento urbano e ambiental compromete escoamento da água da chuva em pontos importantes da cidade. Prefeitura declarou estado de emergência
Bauru é um município frequentemente assolado por problemas relacionados a enchentes. Qualquer chuva levemente acentuada causa inundações, alagamentos e fortes enxurradas na Avenida Nações Unidas, umas das principais da cidade. O cenário se repetiu de forma agravada nas primeiras semanas de janeiro. De acordo com o IPMet (Instituto de Pesquisas Meteorológicas), apenas na quarta-feira, dia 18, choveu metade do esperado para todo o mês. O resultado das sucessivas precipitações foram estragos que somam R$ 2,2 milhões. O montante levou a Prefeitura a declarar estado de emergência no município.
Mas por que as inundações e as enxurradas são tão recorrentes em Bauru? A resposta é simples: pela falta de um planejamento urbano, principalmente no que concerne a preocupação ambiental. No entanto, a resolução para tal problema já é bem mais complicada; a pressa no desenvolvimento das cidades brasileiras, durante as últimas etapas da industrialização nacional, levou diversos municípios a crescerem de forma insustentável e com deficiências na estrutura urbana, como é o caso de Bauru.
Veja a seguir quais são os problemas relacionados às enchentes e como eles são potencializados pela urbanização sem cuidado ambiental:
Inundações, alagamentos, enxurradas e enchentes
Pode parecer tudo a mesma coisa, mas não é. Apesar das enchentes corresponderem a um fenômeno natural, que ocorre comumente em áreas rurais nas quais existem rios, elas podem ser agravadas pela ação humana (como por meio da urbanização sem planejamento ambiental, que gera um solo altamente impermeabilizado e pouca arborização), eventualmente resultando em graves problemas que atingem os municípios.
Desse agravamento decorrem as inundações, as enxurradas e os alagamentos. Segundo as definições do Plano Diretor de Drenagem e Manuseio das Águas Pluviais, criado pelo Conselho Municipal de Bauru, inundações acontecem “quando este fenômeno natural [enchente] ocorre em áreas onde há ocupação” (conforme figura abaixo); “Com a impermeabilização das áreas urbanas, o escoamento superficial é maior e, consequentemente, o volume de água que chega ao rio também, provocando uma inundação de maiores proporções. Como a planície marginal e o leito maior do rio em muitos casos estão ocupados, o risco [à cidade] é maior”, atesta o documento, disponível neste link.
Já as enxurradas “são escoamentos superficiais provocados por chuvas intensas em bacias com curto tempo de concentração e com elevada declividade”, ainda de acordo com o Plano Diretor. O texto ainda alerta que o rápido acúmulo de águas e o acréscimo da velocidade aumentam o poder de destruição das enxurradas, que ainda por cima carregam terra, pedras e outros dejetos além de água, tornando-se ainda mais destrutivas.
Por fim, os alagamentos são “ocasionados pelo acúmulo de água na superfície urbana e, na maioria das vezes, ocorrem por falhas no sistema de microdrenagem e rompimentos de adutoras”. A microdrenagem refere-se à coleta de águas por pequenas e médias galerias (pavimento, sarjetas, bueiros e canais pequenas dimensões); já a macrodrenagem trata-se da rede de drenagem natural (rios e córregos), pré-existente à urbanização, que podem receber intervenções humanas (barragens, diques ou canalizações – tal qual recebeu o Rio Bauru, que atravessa a Avenida Nações Unidas e está ligado ao cerne da situação na cidade paulista).
Avenida Nações Unidas: o endereço dos problemas
Apesar de outras regiões em Bauru também apresentarem cenários de inundações, alagamentos e enchentes (principalmente no centro da cidade), o foco indiscutível das calamidades é a Avenida Nações Unidas, que atravessa boa parte do município. Dos quase 8 quilômetros de extensão, cerca de 4,5 quilômetros têm risco severo de inundações, alagamentos e enxurradas.
Foi nessa avenida em que aconteceram os maiores danos à cidade nas inundações recentes. Por conter às suas margens o Parque Vitória Régia (onde há um lago) e atravessar o canal do Rio Bauru, além de estar em meio a um solo muito impermeabilizado e a uma região pouco arborizada, na avenida ocorrem com frequência inundações, alagamentos e fortes enxurradas. Confira no mapa abaixo as principais zonas sujeitas a problemas derivados de enchentes:
A situação da Nações Unidas é crônica e de difícil solução. A Prefeitura de Bauru tem pensado em planos de ação há anos para sanar as deficiências da avenida; pelo menos desde 2008 o assunto já é discutido, quando foi estabelecido o novo Plano Diretor Participativo da cidade. Porém, o município não tem recursos para pagar as intervenções de micro e macrodrenagem necessárias, de modo que a execução das obras somente seria possível com verba estadual ou até federal.
Esse panorama foi exposto ainda em 2015, pela então arquiteta da Seplan (Secretaria Municipal de Planejamento) e conselheira municipal Natasha Lamônica, e nada de concreto foi efetivamente realizado desde então. Ouça trechos da entrevista em que a arquiteta comenta a situação da Nações Unidas:
O estado da Avenida Nações Unidas está diretamente ligado à ausência de um planejamento ambiental articulado para o desenvolvimento da via. Além da questão da sustentabilidade e da preservação ambiental, a falta de cuidado com o meio ambiente teve como consequência o desenvolvimento de uma avenida indispensável à circulação bauruense feita sem adequações mínimas de micro e macrodrenagem – as quais a cidade não tem dinheiro para fazer. Em entrevista exclusiva ao Repórter Unesp, o novo prefeito Clodoaldo Gazzetta estima que, hoje, os custos das obras na Nações estejam próximos a R$ 280 milhões, 40% acima do previsto em 2015 pela Seplan.
Para entender as medidas que precisam ser tomadas para amenizar os problemas da Nações Unidas, é necessário conhecer as relações diretas entre o meio ambiente e seu papel como componente do meio urbano.
O diagnóstico de Bauru e a importância de um planejamento ambiental
Em levantamento para o Plano Diretor de Drenagem e Manuseio das Águas Pluviais, o eixo “Meio ambiente urbano e sustentabilidade” do Conselho Municipal de Bauru diagnosticou os problemas encontrados pela cidade, dos quais podem ser considerados os principais ligados ao meio ambiente:
a) Impermeabilização excessiva do solo
b) Manejo inadequado da arborização existente
c) Cidade com déficit de arborização
d) Não há controle de impermeabilização de lotes particulares
e) Assoreamento de cursos d’água
f) Soterramento de corpos hídricos devido à disposição de resíduos diversos
g) Parques lineares não regulamentados, degradados e desconectados por vias públicas
h) Insuficiência de bases de dados municipais que retratem a situação de arborização
i) Projetos inadequados de vias públicas – arbustificação
Todos esses problemas – junto aos outros não mencionados que compõem a lista do diagnóstico – estão relacionados à ausência de um planejamento ambiental adequado. Foram omitidos os diagnósticos ligados mais diretamente à falta de infraestrutura (como falta de treinamento de equipes ou escassez de recursos) para ressaltar a importância do meio ambiente na promoção do bem-estar social.
Os problemas de “a, b, c, d”, por exemplo, relacionam-se com o avanço desenfreado e insustentável da urbanização, sem cuidado com arborização na cidade. O solo impermeabilizado favorece a formação de inundações, alagamentos e enxurradas; e a precariedade na arborização acentua esse problema, uma vez que as árvores (além de regularem a temperatura, terem papel ecológico e de preservação ambiental) ajudam a interceptar as chuvas e a infiltrar a água no solo, por meio do escoamento (no tronco e nos galhos) e a absorção (pelas raízes).
Já “e, f” dizem respeito ao depósito de lixo e outros resíduos no meio ambiente. As chuvas arrastam tais resíduos, prejudicando ainda mais o escoamento de água e chegando aos rios, podendo causar assoreamentos. Essa deposição indevida pode também causar o acúmulo de água em determinados pontos, tendo como resultado transbordamentos e enxurradas que podem gerar soterramentos.
O diagnóstico “g” refere-se às áreas de preservação ambiental que não são devidamente tratadas pelo município, tais quais as travessias dos córregos da Forquilha, Água Comprida e Barreirinho. O plano prevê que essas áreas sejam revitalizadas e recuperadas de modo sustentável, podendo contribuir ao bem-estar da população por meio da melhoria do ecossistema, purificação do ar (ao reduzir impactos ambientais urbanos) e servindo como áreas de lazer para o povo bauruense.
Por último, os problemas “h, i” voltam ao tema da arborização; enquanto o primeiro indica a incapacidade do município de pesquisar o panorama da arborização em Bauru, o segundo está relacionado à maneira equivocada como até mesmo a arborização é feita. A arbustificação é a situação descrita como o plantio de árvores de pequeno e médio porte (“arbustos”) onde deveriam haver árvores de médio e grande porte.
Debate multidisciplinar
Várias diretrizes para o desenvolvimento sustentável, planejado sob um viés ambiental, do município de Bauru foram implantadas nos últimos anos. A administração municipal (Prefeitura; Secretaria de Planejamento – Seplan; Secretaria do Meio Ambiente – Semma; Conselho do Município de Bauru – CMB) desenvolveu estratégias como o já citado Plano Diretor de Drenagem e Manejo das Águas Pluviais, ou o próprio Plano Diretor Participativo da cidade. Há toda uma seção destinada a arborização na página da web da Semma. Até mesmo o Plano Diretor de Transporte e Mobilidade, da Emdurb, tem preocupação ambiental.
No entanto, como adverte o professor doutor Adalberto da Silva Retto Junior, pesquisador de Planejamento Territorial e Urbano no curso de Arquitetura e Urbanismo da Unesp, “pouco adianta leis que trabalhem pontos inovadores no campo disciplinar, se as mesmas não são capazes de propiciar uma transformação efetiva”. “Os planos individualizados por temas, no meu entender, captam muito pouco do real funcionamento da cidade no seu território”, diz o pesquisador, que já trabalhou com planejamento de cidades da região, como Agudos, Piratininga, Bariri, Itápolis, Pederneiras, Jaú e Holambra.
Ele argumenta que, para dar qualidade de vida à população, é indispensável o conhecimento da cidade em seu território. “Para isso, há necessidade de se fazer pesquisa de cunho interdisciplinar. E não somente quantitativa, mas qualitativa, que possa efetivamente dimensionar aquilo que será normativa, os projetos que poderão servir para qualificar as cidades, e as estratégias futuras para seu desenvolvimento”.
O professor reitera a importância de um estudo multidisciplinar para o planejamento de um município, que envolva áreas como sociologia, antropologia, ciências políticas, história, economia, entre outras. Além disso, ressalta a importância de planejar a cidade no tempo. “Projetos devem ser pensados no tempo e não como obras imediatistas”, afirma.
“Pouco adianta leis que trabalhem pontos inovadores no campo disciplinar, se as mesmas não são capazes de propiciar uma transformação efetiva” − Adalberto da Silva Retto Junior
Solução distante
Esse estudo qualificado, amplo e multidisciplinar, e também o referido “planejamento da cidade no tempo”, parecem ausentes nos Plano Diretor Participativo de Bauru. Exemplo disso é o fato de que muitas das diretrizes presentes no plano (que tem como prazo de revisão entre quatro e dez anos, a expirar em 2018) estão longe de serem alcançadas, desde as mais genéricas (como qualificação técnica de funcionários – problema ainda presente, segundo diagnóstico do CMB) e obras para sanar as deficiências de macrodrenagem na Avenida Nações Unidas (evidente que as enchentes ainda causam estragos hoje em dia, nove anos depois do estabelecimento do Plano Diretor).
Assim, a cidade permanece vítima de graves problemas ambientais, apesar da aparente consciência ecológica desenvolvida a partir de 2008, durante mandato do ex-prefeito Rodrigo Agostinho, que trazia no discurso pautas do meio ambiente e cuja administração foi responsável, ao menos, pelo desenvolvimento de grande parte dessas diretrizes.
Em 2015, as estimativas eram de que Bauru seria atendida prontamente em Brasília, na captação de recursos federais. Porém a Nações Unidas continua intocada pelas obras de reestruturação. O resultado é danos milionários ao município e o risco a vida de cidadãos. Uma vez que, como lembrou Natasha, até morte já aconteceu lá.
Reportagem: Victor Dantas
Edição multimídia: Matheus Fernandes
Edição: Victor Pinheiro e Patrícia Konda