Artigo: A profissão menos organizada do mundo
Você com certeza já ouviu e talvez até concorde: prostituta é a profissão mais antiga do mundo e existe desde muito antes de Cristo. Mesmo assim, grande parte das profissionais do sexo ainda não se organizam politicamente.
Niterói, 15 de abril de 2014. Como tem se tornado comum no Brasil, um protesto toma conta da principal avenida da cidade. Cerca de 100 prostitutas saíram em passeata para pedir a regulamentação da profissão e protestar contra a violência policial. Era a segunda movimentação do tipo em menos de 15 dias.
A primeira ocorreu no dia dois de abril e era um protesto contra a prisão de duas colegas que alugavam um quarto no edifício 327 da Avenida Amaral Peixoto, famoso ponto de prostituição de Niterói. As moças foram presas porque, segundo o Código Penal, alugar um local para praticar a prostituição é crime.
A mobilização de prostitutas pode ser pitoresco, chocante e até ofensivo para uma parcela da população, mas em algumas regiões do Brasil os profissionais do sexo vêm se organizando politicamente e lutando por seus direitos. Parte disso se deve a militância de Gabriela Leite, puta (a palavra que ela preferia usar quando se referia a sua profissão), socióloga formada na Universidade de São Paulo e candidata não eleita a deputada federal em 2010.
Gabriela começou a mobilizar prostitutas já na década de 1970 e nunca mais parou. Em 1992, criou a ONG Davida (RJ) que orienta profissionais do sexo sobre saúde e cidadania e tem como projeto mais famoso a grife Daspu em que são criadas roupas costuradas por ex-prostitutas.
Em 2002, o governo brasileiro por meio da Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) reconheceu como ocupação regular a profissão de prostituta, ou seja, a partir daquele ano, os profissionais do sexo começaram a poder contribuir com o INSS como um profissional autônomo.
Um projeto de lei que tenta regulamentar a prostituição entrou na pauta do Congresso em 2012 – o terceiro projeto do tipo em menos de dez anos. Para os mais conservadores, prova de que a depravação e a anarquia estão tomando conta do Brasil. Para os progressistas, uma vitória de uma das classes profissionais mais marginalizadas em todo o mundo. Mais do que isso, esses avanços mostram que a militância política das putas surtiu algum efeito.
Mas esse efeito ainda não chegou a todos os cantos do país. Apesar de ter sido local do mais famoso prostíbulo brasileiro, Bauru ainda não trata bem suas putas. A prefeitura não tem nenhum dado sobre quantas elas são na cidade ou alguma política pública forte que trabalhe com a prevenção de DSTs e gravidez, entre outras medidas que em cidades como Rio de Janeiro e Belo Horizonte funcionam muito bem.
Há ainda o preconceito do próprio bauruense que finge que as putas e a Casa da Eny não existem. A professora de Design da UNESP, Ana Beatriz Andrade é categórica: “não rola falar de puta em Bauru”. Carioca, a professora desenvolveu sua tese de doutorado trabalhando com a questão da Daspu e se tornou amiga íntima de Gabriela Leite. “Eu estou há quatro anos e meio em Bauru e eu aprendi uma coisa muito interessante por aqui: mulher não fala. Independente de ser puta ou não, mulher não fala aqui”, afirma a professora que foi execrada quando apresentou seus trabalhos sobre a Daspu em eventos da UNESP. “Aprendi que não adiantava falar sobre isso por aqui, nunca mais apresentei nada sobre essa minha pesquisa em Bauru”, conta.
Em Bauru, os profissionais do sexo são totalmente desorganizados, muitos deles nem sabem que existe um projeto de lei no Congresso que pretende regulamentar a profissão. Alia-se isso ao fato de o governo não enxergá-los como uma classe política e temos o cenário relatado por Ana Beatriz: as prostitutas não “existem” em Bauru.
Apesar disso, o Brasil é um dos países mais avançados na questão da organização política das putas (os homens que se prostituem pouco se envolvem nessa luta). Há várias cidades brasileiras em que existem organizações e associações que lutam para melhorar a qualidade de vida de todos os profissionais do sexo. É visível que em cidades em que eles são organizados, a marginalização diminui, criando melhores oportunidades de vida.
A travesti Sabrina Vasconcelos de 18 anos, explica como funciona a prostituição em Bauru. “Eu não ajudo ela, ela não me ajuda, cada uma por si, aqui nas [avenida] Nações Unidas é assim. Sobre a gente se organizar isso daí não existe, porque às vezes a gente está num lugar, o ponto é da outra e a gente tem que sair, então é por isso que somos desunidas, é mais cada uma por si mesmo”, diz.
Para pessoas que são acostumadas a viver sob tais regras, enxergar a necessidade de se unir para conseguir direitos se torna muito difícil. Mas exemplos como o da Rede Brasileira de Prostitutas (entidade que reúne várias associações de prostitutas do país) mostram que a união é possível e que o retorno positivo existe.
Há muitas pessoas contra o projeto de regulamentação e outras tantas que pregam o preconceito contra essas profissionais, o único modo delas assegurarem seus direitos é se unindo e lutando contra os preconceituosos. Precisam de muita força e apoio, mas isso elas têm conseguido cada vez mais. Naquela tarde do dia 15 de abril em Niterói, a maior parte das pessoas que passavam pela avenida na hora do protesto cantou junto com as putas: “Eu, eu, eu, eu só dou o que é meu” – enquanto for assim, por que lutar contra? Cada um deveria decidir o que faz com seu corpo, pelo menos é o que está escrito naquele documento regulamentado há mais de 50 anos, a Declaração de Direitos do Homem.
Artigo: Isis Rangel
Produção: Jéssica Fonseca
Edição: Carolina Ito
One thought on “Artigo: A profissão menos organizada do mundo”