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Por dentro da Casa da Eny

Eny Cesarino fez história não apenas no interior de São Paulo, mas em todo o Brasil. Dona de um dos bordéis mais famosos do país, saiu de São Paulo para se instalar em Bauru e começar a trabalhar como prostituta no centro da cidade.

Eny abriu sua própria casa de prostituição. O local – Eny’s Bar – ficava na entrada da cidade e era ponto de encontro de muitos eventos. Personalidades importantes, políticos e empresários passavam pelo bordel.

Suely Moura (nome fictício criado a pedido da entrevistada) foi uma das meninas de Eny. Começou cedo, e seu primeiro e último trabalho foram lá, na casa da Eny. Em entrevista, Suely nos contou como foi trabalhar na prostituição.

Foto: Amanda Lima

Foto: Amanda Lima

O que é ser uma prostituta, na sua visão?

Acima de tudo, ser puta é encarar a hipocrisia de todos a respeito do sexo. Parece que sexo é algo que não existe para as pessoas: todo mundo faz, mas você sempre tem que esconder. Ser puta é isso, é você estar ali com homens que vão lhe procurar, homens frágeis, homens que precisam realizar suas fantasias e essas coisas todas. E, acima de tudo, é viver na carne o preconceito.

O termo ‘puta’ não lhe incomoda? Acho que meu receio faz parte dessa hipocrisia, não?

Vou ter que concordar com você. Eu adoro o termo puta, mas os receosos teimam em chamar as garotas que trabalham de prostitutas.

Por que a senhora gosta do termo? A maioria dessas garotas gosta de ser chamada assim?

Eu faço muito questão do nome puta, é o que mais gosto, aliás, porque acho que a gente não pode esconder esse nome e colocá-lo de um modo que um dia fique bonito. São muito poucas as meninas que gostavam do termo na época e admitiam ser uma. As meninas também carregavam o preconceito. Elas achavam que puta é um nome feio. E isso ocorre por que a sociedade acha que puta é um nome feio. A antiga imagem de prostituta é a da mulher que não gosta de trabalhar, de sem-vergonha, sem contar a questão social envolvida nisso tudo.

O que leva uma pessoa à prostituição?

O que leva a qualquer outro trabalho. Eu, por exemplo, fui porque gosto da noite, gosto da vida boêmia. Sou da geração da virada, fiquei jovem em plena revolução sexual, que se deu com o advento da pílula anticoncepcional. No começo foi difícil, mas estava cansada da vida que levava. Minha vida era trabalhar num escritório no centro e cursar o colégio – estava terminando a 8ª série. Andava o tempo todo de ônibus, tinha que acordar às seis horas da manhã para poder fazer a integração. Não podia ter uma vida de boemia, porque tinha que trabalhar para poder ajudar em casa. Éramos uma família bem grande – somos seis irmãos e eu sou a mais velha – por isso tive que aprender a trabalhar para poder ajudar os meus pais.

Minha mãe era passadeira e meu pai era pedreiro. Ele mais vivia no bar do que em casa ou no trabalho. De qualquer forma, ele conseguia sustentar a família, não tenho nada a reclamar dele, tanto que a situação em casa começou a ficar difícil depois que ele morreu de cirrose. Minha mãe ficou muito doente e eu passei a ser a única responsável pela família. Era muito triste por ver meus irmãos chorando por não ter nada de comer em casa. Foi por isso que resolvi procurar outra forma de ganhar dinheiro.

Tentei encontrar outro emprego, mas ninguém queria uma criança que nem mesmo tinha terminado a escola. Então procurei uma cafetina famosa, uma que representava a senhora Eny e que trabalhava entre as garotas do escritório, e falei “eu quero trabalhar, nunca trabalhei na prostituição”. Ela disse: “Todas que chegam aqui falam isso”. Mas eu falei a verdade. Fui com medo, foi muito difícil também, mas eu assumi o risco do meu medo, do meu preconceito, e depois eu comecei a conhecer o mundo, as meninas, as minhas amigas. Tenho amigas daquela época ainda.

“Comecei na Eny e  terminei lá. Aprendi  muitas coisas. A principal  foi me tornar uma mulher  cada vez mais madura”

 

Suely Moura

A senhora poderia descrever o seu dia-dia durante esse período?

A Casa da Eny era referência em bordéis de toda a cidade e dizem que de todo o Brasil. Teve um período que a prefeitura transferiu todas as putas para o bairro Formigueiro, mas a Eny pisou firme e manteve a sua Casa lá naquele trevo da rodovia. Dizem que ela teve até ajuda do prefeito para conseguir o terreno e construir o palácio das putas. Nunca tinha visto um lugar como aquele, era enorme e sempre estava cheio de gente. Minha primeira vez naquele lugar foi com um senhor já de idade e que aparentava ser bem de vida. Acho que ele percebeu que eu estava com medo e foi muito educado.

Várias vezes me encontrei com a senhora Eny. Ela nunca foi de dar muitas broncas nas garotas, mas uma coisa ela pedia sempre: tínhamos que estar presentes entre os clientes, liberando suas fantasias, vendendo o corpo e todo o prazer que ele poderia ter, diferentemente do que acontece hoje em dia – os donos de bordéis apenas querem saber do dinheiro e quanto mais rápido você fizer o serviço, melhor para a Casa.  Comecei na Eny e terminei lá. Aprendi muitas coisas. A principal foi me tornar uma mulher cada vez mais madura. Adorava as rodas de conversas com as amigas de trabalho que colocavam na Casa um pouquinho de cada canto do Brasil. A maioria das meninas eram de Bauru e de todas as cidades ao redor, mas tinha garota do Paraná, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Lá encontrei as mais diferentes figuras e figurões da época.

Todos os quartos da Casa, que eram quase quarenta, viviam lotados. Também era a mesma coisa com os bares, a sauna e a piscina. Claro, a senhora Eny tratava a todos com o máximo de carinho e discrição. Eu fui mulher de sambista, fui mulher de intelectual. Para mim, todos os homens um dia foram procurar prostitutas.

Como a senhora resolveu a questão em família?

Com família, tudo é difícil. Principalmente quando se faz uma opção como a minha. Eu já tinha uma relação conflitante, queria a liberdade que minha mãe achava que não deveria ter. Então, foram muitos altos e baixos, mas hoje convivemos muito bem. Somos uma família de mulheres. Mas uma coisa eu digo: é difícil assumir a prostituição, por conta do estigma e do preconceito. Depois que você assume, as coisas se tornam mais fáceis. O difícil é ter vida dupla. Por mais que tenha falado em casa que meu expediente tinha passado a ser noturno, acredito que minha mãe nunca acreditou na história. E se acreditou alguma vez, logo percebeu.

O que a senhora diria para uma mãe que acabou de descobrir que a sua filha é prostituta? 

Eu diria a ela para entender a filha e tomar muito cuidado no lugar em que vai trabalhar, para não deixar ser explorada. O meio da prostituição do jeito que está hoje, sem leis e tudo mais, é um ambiente ruim para trabalhar. Então a gente tem que sempre procurar uma casa melhor, com uma pessoa com visão melhor de mundo. Isso é o que eu acho que uma mãe deveria falar para filha que fosse para a prostituição.

Como é a sua vida depois que deixou essa rotina? Como as pessoas a olham?

Bem, eu não escondo de ninguém que eu era puta. Digo sem vergonha nenhuma e dou graças a Deus por ter conseguido sair da profissão. Hoje sou casada. Arrumei o meu marido dentro do bordel, não tenho vergonha de dizer. Temos dois filhos e mantenho uma relação muito boa com os meus irmãos. Claro que o preconceito sempre existiu e vai continuar existindo, temos que avançar muito em relação a isso.

Mais: confira um webdocumentário sobre a Casa da Eny

Reportagem: Paula Monezzi

Produção: Lucas Leite

Edição: Felipe Garcia

4 thoughts on “Por dentro da Casa da Eny”

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