Perfil: A estrada de Leticia para longe do senso comum
Uma terça-feira, nas proximidades da Rodovia Marechal Rondon. Ao cair da tarde o movimento no local era tranquilo e Leticia se dispôs a conversar. Linda, vaidosa, bem vestida e orgulhosa dos novos seios, recém-colocados, a transexual, de 25 anos, nos deu seu depoimento, madura e segura do que falava. Confira a reportagem perfil de Leticia.
Leticia é nascida e criada em Bauru. A transformação corporal não se deu precocemente para ela. Aos 16 anos tomou uma dose pequena de hormônio, que não surtiu efeito, e até pouco tempo mantinha apenas o mega hair e a vestimenta feminina. Há menos de um ano fez a modificação: colocou silicone, refez o nariz e ainda planeja uma lipoescultura para modelar o corpo. “E por enquanto é só”.
Há cerca de um ano vive de viagens frequentes ao Rio Grande do Sul, “onde o público tem mais dinheiro e paga melhor”. Está na cidade por quinze dias, visitando a família, e aproveitou para fazer uma curtíssima temporada, “porque eu gosto de dinheiro. Quem não gosta, né?”. Há nove anos trabalha com prostituição, e faz três que se sustenta apenas exercendo essa atividade. Financeiramente, não há por que pensar duas vezes. “Para mim dá um retorno financeiro muito melhor. Em nenhum emprego eu ‘tiraria’ o que ‘tiro’ agora, não sou formada em nada, a não ser cabeleireira, e um salão não me daria a mesma coisa. E não é só pelo dinheiro não, eu faço porque gosto”.
Mercado. Leticia se divide entre as ruas e a Internet: seu site tem quase 50 mil visualizações. Entretanto, a maior movimentação ainda vem das ruas. “No site tem muitos curiosos, eles ligam e tem tesão só de conversar com a gente, você percebe que eles estão fazendo alguma coisa pela linha…”.
Se a rua dá mais resultados, o mercado digital compensa financeiramente. Um programa que custaria 50 reais pode duplicar ou triplicar de valor. “Aí é outro nível, vou para casa, coloco outra roupa. O cliente que procura uma acompanhante por site jamais estaria passando aqui. Ele pode saber que aqui você cobra mais barato, porém ele vai optar por ligar e marcar um encontro, porque eles gostam de discrição. Quando um cliente sai com uma acompanhante de site, ou ele vai até o local onde ela está ou vai diretamente para o motel. Lá ele só vai ter contato com você dentro do quarto, vai chegar e sair sozinho, é muito mais discreto”.
Clientela. “Como todos sabem, a maioria dos clientes são homens casados, mas tem de tudo”. Para Leticia, os clientes que saem com uma transexual estão em busca de satisfazer um fetiche. “Ele não tem vontade de sair com um homem, tem vontade de sair com uma trans, transvestida de mulher, mas com um brinquedinho diferenciado… É raro ele sentir tesão por outro homem”.
E dá para negar cliente? “Com certeza”. Beijo na boca, sexo sem preservativo, tanto para o oral quanto para a penetração, e falta de higienização são os principais motivos. “Eu não estou aqui suja, estou cheirosa, meu perfume é Calvin Klein, então a gente espera o mesmo do cliente. Não estamos aqui só pela necessidade de dinheiro, a gente tem que pensar em tudo isso também. Você teria coragem de beijar um banguela? Eu não teria, nem por dinheiro”.
Para dar o fora, prefere os bons modos, mas nem sempre é possível. “A gente prefere ser bem educada, para não deixar a pessoa constrangida. Alguém falar que você está fedendo ou que não está com uma boa higienização bucal é constrangedor. Então eu jogo o valor lá em cima… O duro é quando eles aceitam, aí tem que ter o gingado para inventar outra desculpa”.
Trabalho nas ruas. Expor-se ao público em um ambiente no qual o respeito nem sempre impera e o preconceito é latente, não é de se estranhar, é um desafio. “Para trabalhar na rua o que se precisa, primeiramente, é muita atitude. Pode parecer fácil, mas no começo é muito constrangedor. Você precisa ter coragem para se vestir de mulher, ir para uma esquina e enfrentar toda a sociedade… No começo eu pensava ‘o que eu estou fazendo aqui’. Em segundo lugar tem que ter muita cabeça. A prostituição te dá muito dinheiro desde que você saiba manuseá-lo. Se você não souber usá-lo, nunca vai ser uma prostituta que tem algo na vida. A gente pode levar uma vida de luxo, vai de você optar como gasta (o dinheiro). Eu prefiro guardar”.
Além de responsabilidade, uma boa dose de intuição ajuda na segurança. “Qualquer profissão é perigosa, nós sofremos riscos maiores, claro, pelas doenças e pela violência. Mas acredito que temos uma espécie de ‘sexto sentido’, e a gente se safa pressentindo quando há maldade no cliente”.
Porém, Leticia sente falta de assistência diária e organizações a quem recorrer. “Não sei se defendo a regularização, mas sinto falta de mais associações que nos ajudem todos os dias, no cotidiano, sejam entidades ou a polícia, para mim isso valeria muito mais que uma carteira assinada. Agora estão se preocupando mais, mas é preciso que aconteçam vários casos de agressão antes que se tome a iniciativa de fazer algo”.
E o preconceito? “Preconceito a gente sofre todo dia, assim como vocês que são héteros acabam sofrendo por outras coisas. Para nós, o preconceito é algo tão normal, a gente já sabe lidar com isso. Se nem o racismo acabou até hoje, como é que o preconceito com os GLS vai acabar tão rápido? Hoje já aceitam mais do que há três ou quatro anos, mas acabar… Acho que nunca vai acabar”.
Reportagem: Mariana Ribeiro
Produção: Maria Eduarda Amorim
Edição: Gabriel Oliveira
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