Democracia, violências e religiões
Comumente, as crises e os problemas sociais devem ser encarados a partir de seus fatos, consequências e culpados. Muitas vezes despreocupados com a verdade, o culpado é aquilo que mais se busca na averiguação do mal-estar na civilização. Esta busca é alardeada de forma escatológica, afinal, o que está em jogo é o fim. Ora, todos sabem que o fim é a maior ameaça ao bem (à teodiceia), por isso o mal deve ser aniquilado. A pressa e a eficiência na busca pelo reajuste da ordem são capitais, como também a busca pelo culpado. É possível que tudo aconteça quase sempre a despeito da razoabilidade.
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A verdade humana é bem diferente da verdade material. Água é uma experiência mineral bem condizente à sobrevivência física e, por isso, muito apreciada por quase todos ou todos os humanos. Uma ideia de bem e justiça social são expressões humanas de forma tal que as suas formas culturais (específicas) são menos partilhadas por todas as culturas como, por exemplo, a necessidade pela água. Assim, verdades naturais são distintas de verdades culturais e sociais.
Charlie Hebdo
Os acontecimentos de Paris foram e são discutidos com a pressa de quem vai a um duelo aos modos dos duelos no velho oeste estadunidense. Aos termos de Habermas, em sua análise sobre os atentados de 11 de setembro, todos querem sacar de suas canetas e teclados as primeiras armas capazes de solucionar ou esclarecer o problema do mal-estar francês e, nas últimas horas, o nigeriano. Mas, como em todo grande acidente, não cabe aqui um culpado ou culpados, mas sim uma caducidade de ordenação social vigente. O que acontece é uma necessidade de se pensar a democracia e seus desafios para além do etnocentrismo, eurocentrismo, relativismo, autoreferencialismo judaico, eclesiocentrismo cristão ou do universalismo islão.
A laicidade do Estado e a constituição de seu ordenamento social pelos mecanismos jurídicos democráticos têm ao menos 600 anos de dinâmica entre problemas e soluções. As questões sobre religião, autoritarismo e a infringência do direito à vida e à liberdade estão na pauta das teorias e práticas políticas deste os tempos clássicos e também da nossa modernidade. Contudo, o reordenamento intelectual e social para favorecer liberdade, justiça e fraternidade, precisam constantemente serem afinados para que ganhem pertinência de presença, de cotidianidade e deem clareza à inclusão e extensão social de uma justiça progressiva e radicalmente equânime.
A liberdade é tão legítima quanto a igualdade e a fraternidade. Estes motes do republicanismo iluminista francês são pertinentes quando eles caminham de mãos dadas. O jornal Charlie Hebdo é um órgão de imprensa, submetido a um ordenamento jurídico constitucional e, mais ainda, de um estado constitucional multicultural. Mesmo que todos os cidadãos da França sejam obrigados democraticamente (uma contradição necessária aos Estados Democráticos ordenados juridicamente) a se comportarem secularmente, contudo, ninguém tem a obrigação de seguir os passos do desencantamento das imagens de mundo. É este o contexto social de uma democracia solidária, multicultural e fraterna. Qualquer jornalque se autoproclame instrumento de liberdade não podem ter motivos anárquicos e outros não-constitucionais. A liberdade não pode prescindir da responsabilidade jurídica, do respeito à fraternidade republicana e nem mesmo da igualdade cidadã.
Multiculturalismo
Hoje, a Europa também é região que acolhe cidadãos de vários cantos do mundo de forma fraterna, financeira, intelectual, etc. Nela, a França é um país profundamente cosmopolita e, nestas circunstâncias, os dissensos de valores são contínuos e factuais – como em qualquer sociedade pluricultural. A democracia francesa é multicultural e, em sua base, busca-se uma reconciliação entre as diferenças, a efetivação de uma fraternidade republicana. Ela é a abertura à fraternidade republicana, do respeito solidário a da liberdade conjugada. O jornal Charlie Hebdo tem o direito de brincar ironicamente com os sagrados, as etnias, os problemas de saúde congênitos, as tensões históricas entre o nazismo e o judaísmo? A princípio não, pois toda manifestação social tem responsabilidades constitucionais no fortalecimento da liberdade, igualdade e fraternidade. As caricaturas do Charlie Hebdo mostraram a fissura de uma democracia multicultural em que a sociedade estaria mais adaptada aos respeitos de um sistema de valor majoritário na ordenação social do que, propriamente, do respeito igual a todos, inclusive, aos não-europeus –as minorias. As caricaturas expostas não ameaçavam a idoneidade do ocidente, mas dos mais excluídos, daqueles que já não são bem vistos na Europa e EUA.
Qual é a fragilidade entre os cosmopolitismos, entre o Ocidente autoproclamado capitalista secular e as sociedades produtoras de petróleo na África e na Ásia? A Otan colhe vários equívocos históricos na condução de políticas internacionais. BokuHaran, Al-Qaeda’s, Estado Islâmico, Talibã, o sunita Saddam Hussein etc., são fenômenos que tiveram diversas causas para as suas respectivas formações políticas, dos seus fortalecimentos militares, econômico, geográfico etc. Mas, entre muitos, destacaria dois: primeiro, o processo de ocupação e de ordenação do mundo produtor de minerais (petróleo, diamante, ouro etc.) por parte da Europa e Estados Unidos – a despeito das culturas e ordenações sociais dos diversos mundos humanos locais –, e, segundo, a luta ideológica pelo comando do Oriente Médio entre Otan e Rússia (URSS, Putnin, KGB) que se estende até os nossos dias.
Midiaticamente, se difunde que o bem é o eixo da Otan e o mal são os islâmicos, árabes, persas etc. Este é um pavor que vem desde os tempos do Califado de Damasco no século VII. Em meio a estas tensões, lembro da famosa expressão de Sartre: o diabo é o outro. Diversos grupos árabes foram fortalecidos pela Otan, CIA, KGB/FSB/SVR (Serviço Federal de Segurança da Federação Russa e o Serviço de Informação Estrangeira) numa disputa pelo controle da extração mineral. Países como Líbano, Iraque, Síria, Líbia, Egito, Nigéria, Argélia, Ninger, foram estrangulados na luta pelo poder econômico e geográfico. Estas regiões não ocupam a maioria dos crentes islâmicos. Mas são regiões onde a luta pela afirmação de uma população religiosa massacrada fisicamente, economicamente e ideologicamente (sobretudo, pela mídia ocidental), ainda não é revelada em sua totalidade pelos mecanismos de publicação intelectual ou jornalístico. A micro história de pessoas massacradas física e ideologicamente, além daquelas que se revoltam por terem as suas tradições ou sua ancestralidade chamuscada pelo ridículo em forma de bulling, não são noticiadas pela impressa. E, essas micro histórias marcam bastante a historicidade dos conflitos religiosos de nosso tempo.
Conflitos geopolíticos
Pode-se ainda penetrar muito a micro história dos conflitos e o inconsciente das lutas atuais. Muitos grupos foram armados por países extratores de petróleo para guerrearem entre si. E o que acontece hoje? Muitos destes grupos passaram a atacar seus treinadores.O Estado Islâmico desfila uma rebeldia impar na ordem mundial. A propaganda de sua expansão política, religiosa e territorial é bastante tenebrosa.Os símbolos de sua expressão e de sua confissão conjugam um modelo de política que retrocede em muito, considerando as conquistas pela luta a favor da liberdade, igualdade, fraternidade e da guarda dos direitos fundamentais. Contudo, o uso de máquinas e armamentos japoneses, americanos, europeus, e a inserção às escuras na economia de mercado de hidrocarbonetos e derivados, revelam que as demonizações ao ocidente só se afirmam parcialmente. Assim, no inconsciente da luta sangrenta pela afirmação geográfica de si, o Estado Islâmico instaura uma explosão absurda de rebeldia contra quem um dia fez uso de suas forças por promessas e favores não cumpridos. Porém, a sua luta é pela inversão do atual modelo de senhoril e escravidão.
Movimentos fundamentalistas ainda são consequências de políticas militares internacionais malfadadas e nocivas do ponto de vista humanitário. Talvez o Tribunal de Haia e a ONU ainda sejam órgão da Otan e não da humanidade. E preciso julgar a violência da própria Otan, dos EUA e da Rússia. A pseudo-inocência dos criadores dos Frankenstein’s armados (Prometeu, Golem) é um problema que Mary Shelley apresenta em seu romance. Entremeio a esta dialética da violência instaurada no Oriente Médio, precisamos de lisura jurídica e de diálogos interpretativos para entender bem o que está acontecendo. Afinal, a culpa pode nos revelar também como protagonistas dos conflitos – pois nós brasileiros, somos exploradores ferrenhos e desumanos dos hidrocarbonetos da Bolívia.
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Mas, as irracionalidades na luta do petróleo e das guerras étnicas justificam a brutalidade do assassinato? Não. A religião não pode ser o depositário justificativo das inconformidades. As vítimas são podem ser mortas muito menos sem o direito da fala, da defesa. A violência instrumental de um fuzil AK 47 nunca está a mando de uma religião histórica. Nem Abraão, Moisés, Maomé, Buda e Jesus precisam ser vingados, vigiados ou difamados. Os seres humanos precisam entender suas autonomias no papel social de ordenamento de suas vivências. Nem Otan e nem religiosos fundamentalistas podem sagrar ou fazer caducar os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Todo massacre é criminoso. Nenhum massacre justifica outro. A vingança é a perpetualização da violência, da prática irracional da justiça e da nulidade política. À religião cabe a espiritualidade. À esfera pública cabe a responsabilidade multicultural, a liberdade recíproca e a fraternidade inclusiva ao outro.