Crônica de uma crise anunciada
Falta água, gestão estratégica e planejamento público no estado de São Paulo
O ano de 2014 trouxe novamente à tona o debate sobre crise hídrica no estado de São Paulo. Não é para menos. Além dos reservatórios estarem em estado crítico desde o verão retrasado, essa é a maior crise que o estado sofreu nos últimos 80 anos. Neste contexto, muitos tópicos estão sendo discutidos: Por que reservatórios como a Cantareira secaram? Como chegamos a essa situação? De quem é a culpa? A equipe do Repórter Unesp procurou refletir sobre essas e outras questões.
Para compreender como chegamos na atual crise é preciso antes saber como funciona a gestão da água para o abastecimento das cidades e da população. A macrogestão de água no Brasil é feita pela Agência Nacional de Água (ANA), enquanto no estado de São Paulo o órgão responsável varia de acordo com cada cidade, algumas possuem empresas municipais e outras são atendidas pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo).
Existem dois tipos principais de captação de água: a subterrânea, através de poços no lençol freático, e a por mananciais de rios. O sistema Cantareira é composto por diversas represas nas bacias hidrográficas de rios como Piracicaba, Juqueri, Atibainha, Jacareí, Cachoeira e Jaguari. O Cantareira é considerado um dos maiores sistemas do mundo e abastece mais de 8 milhões de pessoas na região da Grande São Paulo. Com o período de baixa dos reservatórios, o índice de capacidade utilizável foi o pior desde a criação do sistema, e mais de 10 municípios tiveram o recebimento de água comprometido.
Para o professor doutor da Unesp Jorge Hamada, especialista em Engenharia Hidráulica e Saneamento, “a gestão da água especialmente para abastecimento público e saneamento é um trabalho de engenharia que envolve planejamento”. Hamada afirma que nesses casos é feito todo um processo de projeções em relação à futuras demandas (como o crescimento da população) e também de previsões de possíveis situações de falta d’água.
Um problema muito recorrente nesses casos e que pode ter sido um dos grandes fatores que acarretaram a atual crise é má gestão política. “As vezes você faz o planejamento mas ele não é implementado [pelo poder público]”, afirma Hamada. De acordo com o professor, isso ocorre com frequência, pois muitas vezes os órgãos púbicos preferem implantar apenas os projetos que são mais cômodos e baratos de serem executados. No caso específico da crise paulista o governo não implementou um projeto de gestão adequado, o que levou ao esgotamento dos reservatórios.
São Pedro não tem culpa
Não adianta brigar com o santo. A falta de chuvas no verão de 2014 influenciou na crise mas não é a principal responsável por ela. De acordo com o meteorologista do IPMet (Instituto de Pesquisas Meteorológicas) Thiago Guerreiro Ferreira, “o regime de chuvas já havia dado alguns sinais de que ia acontecer algo assim [período de escassez].” O problema, na visão de Thiago, é que o governo – seja por falta de interesse ou por não prestar atenção nesses sinais – não tinha nenhum plano B.
“Hoje já se pensa em racionar, em diminuir, tentar conter vazamentos[…], tem que acontecer algo bem drástico para que depois eles tomem uma providência.”, completa o meteorologista. A falta de chuvas foi apenas um dos fatores da crise e, ainda assim, era algo previsto pelos especialistas.
Apesar de ter sido prenunciada, os especialistas ainda estudam as causas dessa escassez. “Houve um bloqueio atmosférico que impediu que frente frias avançassem até o Sudeste e provocassem as chuvas na nossa região”, afirma Thiago. Mas não se sabe ainda o que causou esse bloqueio – um tipo de fenômeno natural, mas não nessa época do ano.
No verão de 2015 as chuvas voltaram e a situação se normalizou. Mas esse único verão não é o suficiente para recuperar os danos. Como os reservatórios ficaram praticamente vazios, o solo também se desidratou. De acordo com o professor Hamada, é preciso de muitas chuvas longas para que o solo absorva essa água e o subsolo dos reservatórios sejam reabastecidos. Só assim os reservatórios em si poderão ser preenchidos novamente.
Conta-gotas
Horário nobre da TV Globo, 30 de setembro de 2014, debate entre candidatos ao governo do estado. “Não falta água. Não vai faltar água em São Paulo”. A fala é de Geraldo Alckmin, reeleito governador pelo PSDB no primeiro turno das eleições. A postura é a de um poder público omisso, que negou a falta d’água em detrimento de informar a população e adotar um plano real de contingência.
“A partir do momento que a água não tem pressão e não chega na sua torneira, isso já é um racionamento”, pontua a professora doutora Ilza Machado Kaiser, mestra em Hidráulica, Saneamento e Engenheira Civil pela USP. Segundo a pesquisadora, o racionamento já existe há tempos em cidades como São Paulo, mas não é assumido e nem divulgado pelo poder público em função de questões políticas, como as eleições de 2014.
Somente em janeiro de 2015 o governo paulista admitiu a crise hídrica e o racionamento – seja com redução de pressão ou com o chamado “rodízio”, alternância entre dias com e sem abastecimento de água. Mas quem assume a culpa em um cenário de falta d’água? Segundo Kaiser, os principais responsáveis são nossos gestores, que sabem que a cidades e a população crescem em ritmo mais acelerado do que os investimento em infraestrutura.
Infraestrutura que por sinal é palavra-chave ao se pensar na contenção de gastos desde a raiz do problema. A especialista em recursos hídricos explica que nas redes de distribuição de água tratada existe o que se chama de perda por vazamentos, que costuma ser alta – da ordem de 30% a 40% em alguns lugares. “A manutenção e o monitoramento são caros porque é preciso localizar os vazamentos e substituir partes das redes”, explica Ilza. Mesmo assim, o planejamento a longo prazo é necessário para evitar desperdício de água tratada (e paga pela população, vale ressaltar).
Medidas de economia e aproveitamento cada vez mais ganham popularidade, entre elas as cisternas (para captação de água da chuva) e as instalações hidráulicas de torneiras com temporizador, válvulas sanitárias de dois fluxos, entre outros dispositivos. Além de iniciativas individuais, grandes empreendimentos já começam a se interessar por políticas de contenção até mesmo para não prejudicar seus negócios comerciais.
Outra alternativa sustentável e eficaz é a utilização de água de reuso, método simples mas que exige um projeto de distribuição diferente: são necessárias duas caixas d’água. Uma é destinada à água tratada (banhos, lavagem de louças, preparo de comida, etc.) e a outra armazena a água de reuso (descarga de vasos sanitários, lavagem de pisos, irrigação de jardins, etc).
Para Ilza Kaiser, apesar do uso doméstico não ser o maior consumidor de água nem o grande vilão da história – ele fica atrás da irrigação e do setor industrial -, toda mobilização é bem vinda para que a sociedade fique menos vulnerável à crise hídrica.
Reportagem: Carolina Baldin Meira e Lívia Lago
Produção multimídia: Tânia Rita Camargo