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A liberdade das ruas ou o conforto dos abrigos?

Mesmo nas noites frias de inverno, os abrigos não são unanimidade entre as pessoas em situação de rua no Brasil

Os albergues e as casas de passagem são alternativas para os moradores de rua escaparem do frio que se intensifica nos meses de inverno. No entanto, parte da população de rua ainda prefere dormir em praças e calçadas, com seus cobertores, camas forjadas com papelão e até mesmo ao relento. Ainda que expostos à umidade das noites, alguns dos moradores de rua trocam as camas quentes dos albergues por aquilo que lhes é indispensável: a liberdade.

Ainda não há um registro oficial e exato da quantidade de moradores de rua no Brasil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) se prepara pra incluir a população em situação de rua no próximo Censo Demográfico, que está previsto para 2020. No Brasil, a Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua, realizada entre 2007 e 2008, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e pela UNESCO é o principal estudo de amplitude nacional na área. A pesquisa incluiu 71 municípios brasileiros com pelo menos 300 mil habitantes e concluiu que 82% dos moradores de rua são do sexo masculino, 53% têm idade entre 25 e 44 anos, e 67% são negros. Entre as mais de 31 mil pessoas em situação de rua entrevistadas, 69,6% costumam dormir na rua e apenas 22,1% dormem em albergues ou outras abrigos.

Em 2009, foi instituída pela Presidência da República a Política Nacional para a População em Situação de Rua, com o objetivo de entender as necessidades dessa parcela da população e desenvolver políticas públicas na área. Entre 2009 e 2013, foram criados, em parceria entre Governo Federal e Prefeituras Municipais, 2.469 unidades do Centro de Referência de Assistência Social (CREAS), totalizando 7.968 unidades em todo o Brasil. No mesmo período foram instituídas 175 unidades do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), distribuídos em 154 municípios.

Em maio de 2015, a Prefeitura Municipal de São Paulo anunciou a criação do Comitê Permanente de Gestão de Situações de Baixas Temperaturas, para reduzir os danos causados pelo inverno à população de rua. Também foi divulgado em maio o resultado do Censo da População em Situação de Rua da Cidade de São Paulo, pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), nos primeiros meses deste ano. O estudo revelou que há 15.905 moradores de rua na cidade, o que significa um crescimento 2,56% em relação ao último Censo, de 2011. Do contingente total, 8.570 (53%) pessoas são acolhidas por albergues, enquanto que 7.335 (47%) rejeitam o serviço de acolhimento da Prefeitura e preferem dormir nas ruas.

Os moradores de rua e o abrigo em São Carlos

Em São Carlos, cidade do interior de São Paulo, há entre 45 e 50 pessoas em situação de rua, segundo informações do CREAS municipal que, em conjunto com o Centro POP, oferece aos moradores de rua cursos de alfabetização e profissionalizantes, além do acompanhamento socioassistencial. Para escapar das noites de inverno, os moradores de rua podem dormir no albergue municipal, que é sustentado pela prefeitura e recebe doações de roupas, alimentos, colchões, etc.

O albergue são-carlense, no entanto, não é unanimidade entre a população de rua. O cenário em São Carlos não é diferente do que foi apontado pelas pesquisas em São Paulo e em outros municípios brasileiros. Parte dos moradores de rua de São Carlos prefere encarar o frio a dormir no albergue. Vanderlei, de 27 anos, já mora nas ruas de São Carlos há 10 anos e, apesar de já ter frequentado o albergue, dorme em frente a uma banca de revistas na principal avenida da cidade. Ele explica que dificilmente passa frio, já que ganhou agasalhos e um cobertor. Quando perguntado sobre a razão pela qual não dorme no albergue, mesmo com a possibilidade de banho quente e refeições gratuitas, Vanderlei diz que não gosta das regras da casa de acolhimento. Para ele, acordar às seis horas da manhã e a impossibilidade do consumo de álcool são as piores restrições. Neno, outro morador de rua, frequentou o albergue durante bastante tempo, mas foi expulso devido a uma briga com sua esposa no local. Segundo Neno, o tratamento que ele recebeu dos funcionários foi injusto e agora ele prefere dormir atrás de uma construção abandonada, com sua companheira.

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Vanderlei prefere dormir em uma avenida movimentada a dormir no abrigo. Segundo ele, no abrigo há regras demais (Foto: Vitor Almeida)

Durante uma visita noturna e não agendada ao albergue de São Carlos, os funcionários Silvia Bienzobás e Élton Pacheco recepcionam a equipe de reportagem e apresentam a estrutura da casa. Élton justifica que a restrição às drogas é em nome da ordem: “por causa do álcool, alguns perturbam o ambiente”, e em seguida, reconhece que alguns preferem as ruas por esse motivo. Os moradores de rua são recebidos no albergue todos os dias no fim tarde: “a gente recebe o pessoal entre as 18 horas e às 22 horas e, logo que entram, a gente fornece toalha e sabonete e eles já vão tomar banho. Às 19 horas temos a primeira janta e às 21 horas o ‘repeteco’. Logo em seguida, eles já podem deitar e dormir”, explica Élton. Os acolhidos que não querem dormir cedo, podem ver TV em uma área de convivência. Élton conta que o albergue dispõe de colchões, travesseiros e lenções para 60 pessoas. Para amenizar o frio, são, pelo menos, duas cobertas para cada um. No dia seguinte, todos são liberados até às 7 horas, após o café da manhã.

Lacraia frequenta o albergue há sete anos, elogia a organização da casa, mas avisa “na rua, a gente não passa frio e não passa fome. Tem comida e coberta pra todo mundo”. Outros frequentadores que estavam no albergue corroboram a opinião de Lacraia e relevam que alternam noites nas ruas e no abrigo.

“É uma ação em conjunto, entre o albergue, o CREAS e o Centro POP. Todos trabalhamos para o bem estar e a recuperação dos acolhidos”. Élton afirma que muitos dos moradores de rua que dormem no albergue também frequentam o Centro de Referência de Assistência Social e o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua durante o dia. No entanto, outras pessoas optam por passar as manhãs e tardes nas ruas. Todos os dias, durante a saída do albergue, uma assistente social contratada pela prefeitura visita a casa,  conta Élton Pacheco: “ela analisa todos que estão aqui, caso a caso, um por um”.

Élton revela que todos os quatro plantonistas do albergue já foram toxicômanos e hoje moram em uma comunidade terapêutica com tratamento para dependentes químicos, chamada Saber Amar. Segundo ele, essa experiência auxilia na convivência com os frequentadores do albergue: “todos nós, funcionários, já passamos por uma situação semelhante à situação de muitos aqui do albergue”.

Confira relatos de moradores de rua que frequentam o albergue de São Carlos:

Inácio, 17 anos de albergue

Inácio

(Foto: Vitor Almeida)

“Aqui no albergue, a gente é bem atendido, bem recolhido, todos podem vir. Aqui tem até mais alimentos do que em certas casas. No CREAS tem café da manhã, almoço e café da tarde. Aqui tem janta, ‘repeteco’, às vezes tem pipoca, e tem pão na hora de ir embora. Muitas famílias não comem como a gente come aqui. A gente é muito bem tratado.”

Lacraia, 7 anos de albergue

Lacraia

(Foto: Vitor Almeida)

“Na rua, a gente não passa frio e não passa fome. Tem comida e coberta pra todo mundo. Só passa fome e frio quem quer. O povo passa e dá comida. Pessoas evangélicas e estudantes dão agasalhos e cobertas.”

“Nós somos todos dependentes, cada um tem sua dependência. Tem alguns que gostam de crack, outros de pinga, maconha, cigarro… E aqui dentro do albergue não pode. Então, muitas pessoas preferem ficar na rua do que aqui dentro. Eu saio daqui às 6 horas, vou pro bar da Dona Sônia e volto à noite pra dormir. Às vezes eu apareço no CREAS durante o dia.”

“Esse governo novo está muito ruim. Hoje, a gente nem pode ficar nas praças direito e já vem a Polícia e a Guarda Municipal atrás da gente. As praças são públicas, a gente tem esse direito.”

Marcos Roberto, 45 dias de albergue

Marcos

(Foto: Vitor Almeida)

“Eu estou aqui no albergue há 45 dias. Fico na rua durante o dia, sou dependente do álcool e não preciso mentir. Bebo pinga na rua e se precisar dormir lá, eu durmo, sem problemas. Mas agora eu estou dormindo aqui, o pessoal me acolheu e me deu uma força. Estou procurando uma clínica para me internar.”

Ricardo, 7 anos de albergue

Ricardo

(Foto: Vitor Almeida)

“Estou na rua há sete anos. Eu uso tudo, principalmente o crack. Estou no crack há mais de 20 anos. Agora eu estou mais sossegado, frequento o CREAS, mas às vezes dou uma ‘estralada’ e vou pra rua. Dormir na rua é tranquilo também, a gente conhece todo mundo e ainda temos os cachorros, que são nossos amigos.”

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Reportagem: Vitor Almeida

Produção Multimídia: Amanda Fonseca

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