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A história sem fim ou a próxima Inglaterra é aqui

É cada vez mais caro ir ao estádio de futebol no Brasil; se em outros tempos as arquibancadas democratizavam as desigualdades, hoje as cadeiras numeradas escancaram as diferenças

“O Brasil é o país do futebol”, diria alguém em qualquer lugar do mundo e em qualquer ponto dos últimos… 45 ou 50 anos. A velha máxima parece cada vez mais questionável. De fato, o futebol se tornou uma das manifestações mais fortes e consistentes da brasilidade desde que Charles Miller realizou, em 1895, o primeiro jogo organizado de futebol em terras brasilis. De lá para cá, o Brasil ganhou cinco copas do mundo, pariu alguns dos mais fantásticos jogadores da história do esporte – e, possivelmente, o maior deles, Pelé -, virou sinônimo de futebol-arte, se tornando a pátria de algumas das maiores agremiações do mundo com várias das maiores massas de torcedores.

Mais, o estádio de futebol – e a própria cultura futebolística – pareceu ser por muito tempo – e já há muito tempo – um tipo de oásis pós-capitalista; adentrar a geral do Maracanã ou, como me é mais casto, a arquibancada do antigo Estádio Palestra Itália, era um tipo de viagem além do tal fim da história; naquelas duas horas de jogo não parecia existir luta de classes ou grandes desigualdades sociais. Estar ali, entre milhares de outros desconhecidos unidos por uma mesma causa e sentimento, era ao mesmo tempo de um coletivismo quase fascista – e com que facilidade se usa, num estádio, do machismo, da homofobia ou do bairrismo para atacar o outro – e extremamente democrático – torcendo pelo Palmeiras naquele cimento batido parecíamos todos genuinamente iguais.

Com o perdão pelo clichê tão em voga: o futebol moderno acabou com esse delírio do parágrafo acima. As arenas multiuso, a Copa do Mundo do ano passado, as áreas VIPs open bar e open food, o sócio-torcedor, o x-burger insosso a 12 reais e mais uma série de fatos, por vezes simbólicos e por vezes práticos, acabaram com a ilusão: o sonho morreu, estamos mais do que nunca dentro da única história possível: um Brasil desigual, classista e paradoxal, que ao passo que se tornou menos desigual na primeira década do século XXI se tornou, também, cada vez mais higienista, indisposto a dividir espaço com aqueles que deixaram o bonde passar e não ascenderam às maravilhas da classe média.

Uma crônica em verde branco

O Palmeiras inaugurou, no fim de 2014, a sua nova arena, o Allianz Parque, uma bela obra da arquitetura futebolística, de aspecto modernista, sem pontos cegos nos seus 43,7 mil lugares – para espectadores devidamente sentados. Após um 2014 catastrófico com direito a quase rebaixamento à série B do campeonato nacional, o time da Barra Funda iniciou 2015 com uma série infindável de contratações e conseguiu alavancar seu programa de sócio-torcedor, o Avanti, batendo a barreira dos 100 mil associados – pagando, cada um, de 10 a 600 reais mensais. Em maio, frente a esse sucesso, um aumento de até 50% nos valores dos planos. O valor médio do ingresso na nova e moderna arena palmeirense varia entre 70 e 100 reais, o ticket mais barato (não considerando meia-entrada) fica entre 60 e 80 reais. Frente a essa situação, a principal torcida organizada do time, a Mancha Verde – e a discussão sobre todas as mazelas e incontáveis defeitos das organizadas fica para outro dia -, fez o seu protesto em jogo contra o Atlético Mineiro; os torcedores da Mancha se negaram a cantar, assistiram ao jogo passivamente, sentados nas suas cadeiras, como uma plateia de teatro, ou melhor, como o restante do estádio. Com o placar adverso – o Palmeiras perdia por 2 a 1, mas acabaria empatando – parte desse restante da torcida, antítese dos marginais da Mancha e a quem o narrador do SporTV chamou de gente de bem, iniciou um coro: “ei, Mancha, vai tomar no cu”. Pausa.

A escalada do preço médio é clara, aqui divide-se a renda total pelo número de pagantes. Os dados são da Pluri Consultoria e a arte por Marina Moia

A escalada do preço médio é clara, aqui divide-se a renda total pelo número de pagantes. Os dados são da Pluri Consultoria e a arte por Marina Moia

Os torcedores não-organizados que assistem a maior parte do jogo repousados em seus assentos e sem grandes demonstrações de empolgação xingaram os torcedores da Mancha por fazerem… a mesma coisa. Sobre isso, nenhuma metáfora possível que saia da minha cabeça será melhor que aquela feita, à época, por Rodrigo Barneschi no seu Forza Palestra, então me permitirei a paráfrase: o torcedor que entoou suas ofensas contra a organizada, torcedor esse que pagou mais caro que os membros da Mancha (a Mancha Verde vem frequentando o setor mais barato do Allianz Parque) age como o sujeito que vai ao zoológico e se revolta por que o leão está escondido na sua toca e não rugindo ao público. Ou seja, esse cidadão de bem que brada a plenos pulmões palavrões contra parte da sua torcida pagou caro por um espetáculo, um pacote, que inclui – além de banheiros limpos, escadas rolantes para acesso a setores mais elevados do estádio, lanchinhos a 12 reais e ótima visão do campo – que a Mancha Verde faça a sua festa, gritando e pulando e apoiando o time pelos 90 minutos; é incrível, quase inacreditável, mas a parte mais popular da torcida foi xingada por se comportar igual àqueles que a xingavam.

Eu não acredito na organicidade dos fatos

O fenômeno de encarecimento do custo para se assistir um jogo de futebol é generalizado dentre os grandes e médios clubes brasileiros. De 2004 a 2013 o preço médio do ticket na primeira divisão do Campeonato Brasileiro – isto é, a divisão da renda total dos jogos pelo número de espectadores pagantes – aumentou 241%, desse aumento, 30% se deu entre 2012 e 2013, não coincidentemente período de inauguração de vários dos estádios que foram utilizados na Copa do Mundo.

Todavia, a Copa me parece, hoje, mais a desculpa do que a causa. O valor médio do ingresso mais barato para um jogo do Campeonato Brasileiro subiu entre dezembro de 2002 e dezembro de 2008 de 8,95 para 15,43 reais; no período seguinte, entre dezembro de 2008 e dezembro de 2013, subiu até 45,01 reais, ou seja, praticamente triplicou. A escalada dos preços se revela consistente e notória desde muito antes das novas e modernas arenas.

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A ascenção dos preços inicialmente acompanha o aumento no poder aquisitivo do brasileiro, mas ao passo que esse poder deixa de crescer a partir de 2008, os ingressos se encarecem em ritmo ainda maior. Arte por Marina Moia

De fato, o poder de compra do brasileiro teve grande avanço nesse mesmo período analisado, mas a crescente nos preços do ingresso agiu com grande independência dos índices econômicos. Podemos olhar, por exemplo, para o PIB per capita do brasileiro que, entre 2011 e 2013, caiu 10,8% sendo que nesse mesmo período, o preço médio do ticket mais barato subiu 49,3%. Em outras palavras, a crescente nos preços é relativamente coerente durante a ascensão econômica dos anos dourados do governo Lula, mas se deu de maneira acelerada durante o período de vacas magras do governo Dilma e dos efeitos da crise do capitalismo global, ao invés de desacelerar como era esperado.

O que se iniciou entre 2008 e 2009 é um processo sem volta de – enfim, a palavra mágica – elitização do futebol brasileiro (“o esporte do povo e das massas!”) e subsequente afastamento das camadas sociais mais pobres do hábito de ir ao estádio. Me nego a acreditar em coincidência ou na ordem natural das coisas, prefiro a ideia de algo orquestrado e em execução. Além do mais, estamos falando de uma situação com precedentes.

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Ainda que no valor absoluto o ingresso brasileiro seja mais barato que de outros centros mais ricos, ao olharmos para a relação entre preço e renda per capta, o brasileiro médio é o torcedor que mais precisa comprometer a renda para ir ao estádio. Dados são da Pluri Consultoria, Fundo Monetário Internacional e Banco Central do Brasil, reporduzidos no Globo Esporte; a arte é de Marina Moia

A década de 1980 marcou no futebol inglês, o ápice da brutalidade e o declínio dos hooligans – torcedores organizados, mas não uniformizados, oriundos das camadas mais empobrecidas da sociedade inglesa, em geral operários e outros trabalhadores urbanos -, tragédias como os episódios de Heysel e Hillsborough, fizeram com que a então primeira-ministra inglesa, Margareth Tatcher, tomasse a dianteira da questão. Um relatório de 1989 indicava a necessidade de modernizar os estádios na Terra da Rainha, reforçar a ação de serviços de inteligência para a identificação e repressão prévia dos hooligans e progressivamente subir os preços. Hoje, na Premier League, a primeira divisão do futebol inglês, o ingresso médio mais barato custa 116 reais, o mais alto do mundo. E a Inglaterra, guardada as devidas previsões, deve mesmo já ser o Brasil que nossos dirigentes querem para o futuro. Com os hooligans financeiramente inviabilizados de frequentarem os jogos de maneira assídua, a liga inglesa vive o paradoxo de ser a mais rica e possivelmente a mais bem jogada e também aquela com as torcidas mais passivas à experiência futebolística. Ainda são constantes os protestos contra os preços dos ingressos e José Mourinho, técnico do Chelsea, endinheirado clube londrino, chegou a reclamar publicamente da própria torcida. Os hooligans abandonaram, em larga escala, os estádios, e hoje se restringem a torcer nos bares de suas periferias de origem – por vezes os próprios bairros dos estádios; tão perto e tão longe. O Brasil já é o país com o ingresso mais caro do mundo se dividirmos o PIB per capita pelo preço médio do ingresso mais barato.

Leia Mais:

“Guerra de classes no Palmeiras”, Leandro Lamin, do blog Periquitão, no ESPN FC, comenta com maestria o caso das ofensas à Mancha Verde

Alguns dos dados apresentados aqui são comentados por Emerson Gonçalves no blog Olhar Crônico, do Globo Esporte

O Campeonato Brasileiro é apenas o 34º em ocupação dos estádios

Aqui você pode ler um muito elucidativo trecho do livro Febre de Bola, de Nick Hornby, que fala sobre a transformação de torcedores em clientes

One thought on “A história sem fim ou a próxima Inglaterra é aqui”

  1. Pingback: N° 21- 2015 | Esporte: Inclusão x Exclusão - Repórter Unesp
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