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A Casa Grande vai ficar pequena

Por Keytyane Medeiros*

Ao entrar na universidade, assim como outras estudantes, coloquei em xeque várias questões, entre elas o meu próprio gênero, minha cor de pele e minha condição sócio-econômica. Notei, logo nos primeiros meses, uma ausência assustadora de docentes do sexo feminino na UNESP Bauru – e até hoje, nenhuma professora negra pisou na minha sala de aula.

Essa falta de representatividade política e simbólica – que tanto me assusta como mulher parda de militância negra – impressiona ainda mais quando analisamos os quadros das universidades brasileiras. Em 2006, o pesquisador José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília, fez um levantamento do número de docentes em universidades públicas do Brasil, incluindo os principais pólos de pesquisa do país (como USP, UFRJ, Unicamp, UFSCAR, UnB e UFMG). Entitulada “O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro”, o estudo faz importantes revelações sobre a estrutura da universidade no Brasil. Do total de 18.400 docentes apurados, 18.330 acadêmicos são brancos enquanto apenas 70 pesquisadores são negros. Ainda que a pesquisa já tenha quase dez anos, ela é sintomática e preocupante: num país onde 51% da população se autodeclara negra, 99,6% da produção de conhecimento do país está restrita a mãos brancas e cabelos lisos.

Outro importante pesquisador das desigualdades raciais no Brasil é Kabengele Munanga. Natural do Zaire, o professor de Antropologia da Universidade de São Paulo defende que ser negro no Brasil nada mais é do que um ato político. “Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade do negro é um processo doloroso”, afirma.

Esse processo doloroso de identificação racial também se dá na construção da identidade da mulher negra, como conta Carolina Santos Pinho, doutoranda em Educação na T.U Braunschweig, na Alemanha. “Como mulher negra, eu sou legal se eu não me identificar como mulher negra. Em todo momento, você é incentivada a abandonar sua identidade.  Ou seja, passei por momentos em que meu cabelo, os tipos de música que gosto, as roupas que visto e meus comportamentos foram tratados como uma ‘fantasia’, algo ‘exótico’ ou ‘excêntrico’”, afirma.

Apesar da Universidade – do latim universitas, isto é, “universalidade e o todo das coisas” – em tese, ser um espaço aberto ao debate e à pluralidade, na vida real, as coisas são bem diferentes. Carolina afirma que quando entrou na universidade, não tinha se dado conta de que vivia constantemente sob o véu do racismo. “A gente procura se convencer que são coisas que todo mundo passa, ou que são fruto da sua cabeça. E a universidade e a sociedade querem que você acredite nisso. Assim, ninguém precisa lidar com o racismo. Só a vítima. Quando tratamos o racismo como fruto da cabeça de quem o sofre, ele deixa de ser um problema social e passa a ser um problema individual: ‘você que se resolva com seus problemas de auto-estima’. E o formato da universidade, além da ausência de negros e negras ajuda a reforçar a ideia de que estou ocupando o lugar errado e a pressão para que eu abra mão da minha identidade aumenta. O Estado tem responsabilidade nisso”, defende.

Quase 15 anos após a aprovação da Lei 10.639 de 2003, que obriga o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no ensino fundamental e médio, muita coisa ainda precisa mudar ao olhar para o futuro e as mudanças devem vir primeiramente do ensino superior. Não é aceitável que professores licenciados em qualquer área do conhecimento propagem piadas racistas, machistas ou homofóbicos e mais uma vez, o Estado tem responsabilidade nisso. Neste sentido, é preciso tomar essas discussões raciais e de gênero como políticas públicas e institucionalizar o debate – para que se perpertue pelas entranhas da Universidade –  além de tomar medidas efetivas de curto e médio prazo.

Luana Tolentino, professora de história da Rede Estadual e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, acredita que após a institucionalização da lei,  houve aumento significativo no interesse de estudantes e professores com relação a temática racial. “Nesse período aumentaram também o número de grupos e núcleos de pesquisas destinados a estudar e discutir a importância do negro na formação do Brasil. Ainda assim é inegável que esse assunto ainda  não é visto com bons olhos nas universidades e nas escolas públicas e particulares”. Da mesma maneira, Carolina Pinho não vê avanços estruturais em boa parte das escolas no que diz respeito à aplicação da lei. Ela conta que no caso da Educação Física, “não há uma preocupação em desconstruir ou mesmo questionar o estereótipo de negro forte, de ‘mulata’ que gosta de rebolar, da negra que tem mais resistência a dor. Fazem parte do pensamento racista e a escola, infelizmente, ajuda a perpetuar”.

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Para reverter esse quadro, é preciso que mais e mais professores, pesquisadores e profissionais negros estejam habilitados a falar por causa própria e a contar sua experiência de consciência e emancipação dos ideários “branquealizadores”. Mais uma vez, as políticas públicas de incentivo ao ensino superior parecem ser a saída – nada mais justo aliás, dado que foi o próprio Estado que custeou 300 anos de escravidão e sofrimento aos nossos ancestrais africanos e que mesmo após a abolição da escravatura nada mais fez do que lavar as mãos de sua responsabilidade política, cultural e ideológica deste feito. “Amanhecemos República”, disse Machado de Assis quase na virada do século, ao se referir à insossa proclamação da República em 1889. Suas duras palavras apregoavam que nada mudara do Brasil imperial para o Brasil republicano, tudo permanecia igualmente insosso e dolorido. Em 1888, algum escravo deve ter dito por aí: “amanhecemos livres” a caminho da lavoura de café a troco de panos sujos, feijão mal cozido e um punhado de farinha, sob o olhar sanguinário do vígia.

Tais políticas públicas parecem estar dando resultado. No final de 2014, o Ministério da Educação divulgou dados relativos ao PROUNI e ao FIES, políticas públicas de incentivo ao ensino superior para a população de baixa renda no Brasil. Segundo o órgão, somente em 2013, 62,2% dos beneficiários de bolsas PROUNI era formado por mulheres negras e 48% dos beneficiários do FIES era de estudantes da pele preta. Em dez anos de programa, mais de 1 milhão e 600 mil alunos foram beneficiados com bolsas de estudo – à parte das críticas ao sucateamento do ensino público e da mercantilização do ensino por meio de universidades de teor acadêmico duvidoso e critérios de seleção irrisórios – é inegável que o número representa uma verdadeira avalanche de pessoas pobres e pretas nas universidades brasileiras. O feito é histórico e obriga a estrutura burocratizada e elitizada das universidades a pensar um reposicionamento político com as classes subalternas. Mais uma vez, o pesquisador Milton Santos foi certeiro ao afirmar que o silenciamento e a negação do racismo em terras tupiniquis é, na verdade, seu mais poderoso sustentáculo na sociedade brasileira. A negação da cultura afro reverbera pelo país e respinga em discursos de ódio e em atitudes que dificultam o acesso dos negros à melhores condições de trabalho, ensino e vida, e a reprodução destes atos se dá inclusive em espaços aparentemente democráticos como são as universidades.

É importante ressaltar ainda que a identidade de gênero é uma construção social e cultural, que ocorre em oposição simbólica a outras identidades. Neste sentido, para ser mulher não é necessário apenas se identificar como mulher em oposição aos homens, mas também se diferenciar de outras mulheres e se ver nelas. Tamires Gomes, estudante de Direito da Universidade Mackenzie, vice-presidente da UNE e beneficiária do PROUNI, conta que em seu campus apenas uma professora do corpo docente é negra. “Se temos um professor negro, temos mais empatia e acaba fazendo mais sentido ocupar esse espaço da universidade, no sentido de ter uma referência positiva”, afirma.

A professora Luana relata ainda que teve sua capacidade intelectual colocada à prova muitas vezes durante a sua graduação, chegando ao ponto de sugerirem que deixasse o curso de História e fosse dançar na Europa, onde poderia ganhar mais dinheiro. Além de racista, a afirmação machista coloca a mulher negra como um ser desprovido de intelecto, sentimentos, sonhos e expectativas e reduz sua existência ao seu corpo. Luana, depois de muito trabalho como doméstica e babá é a prova de que a revolução das empregadas domésticas não pode parar. Como professora e pesquisadora, Luana não foge ao debate interseccional entre machismo e racismo dentro da Universidade e das escolas. “O meu pertencimento racial, as minhas posições políticas e o meu ativismo são questões pontuais nas minhas aulas e no meu trabalho como pesquisadora. E meus alunos sabem disso. A minha experiência de vida e tudo que eu aprendi até aqui não permitem que eu faça do meu trabalho um espaço de preconceito e opressão”, conta.

A universidade enquanto espaço de produção de conhecimento é também um espaço de disputa política e simbólica, tanto do ponto de vista racial quanto de gênero e é preciso usar e abusar de estratégias de diferenciação para permanecer nesse meio, da graduação à pós, da rua para a sala de aula. Para as mulheres negras, a disputa é dupla e diária. Para Carolina Pinho  a invisibilidade e silenciamento são os principais problemas de ser uma mulher negra na universidade. A ausência de pessoas negras na universidade, a carência ainda maior de professoras negras e ver mulheres negras limpando o chão da faculdade é algo que assusta Tamires Gomes todos os dias. Humilhações, trabalho pesado em dois turnos e noites mal-dormidas acompanharam Luana Tolentino das casas de família branca até a graduação. Mas todas estas mulheres negras foram além, muito além do que a sociedade brasileira esperava para elas. Todas elas tem dores guardadas no peito e um brilho imenso no olhar para continuar brigando por espaço dentro da Universidade – uma estrutura tão rígida e demente quanto a própria Casa Grande de séculos atrás. Só que agora a briga é dentro de casa – e não vamos parar.

 

*Keytyane Medeiros é estudante de jornalismo da UNESP Bauru, militante do movimento Hip Hop da cidade e membro da Frente Feminina de Hip Hop de Bauru.

Edição: Michael Barbosa

Produção Multimídia: Rodrigo Berni

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