A vida e o(s) amor(es) fora da monogamia
Ele está nas músicas, na literatura, no cinema, na televisão, na conversa de boteco e no imaginário coletivo.
O estimado amor romântico é uma das propagandas mais populares na história da humanidade, principalmente a partir do século XX. O ideal difundido é o de que precisamos “encontrar um grande amor” ou “a pessoa certa”, caso contrário nossas vidas estariam incompletas e menos felizes. No artigo “O custo do amor romântico”, a psicóloga Regina Navarro Lins aponta que o amor é uma construção social baseada na idealização: “Não é construído na relação com a pessoa real, que está do lado, e sim com a que se inventa de acordo com as próprias necessidades”. Para a psicóloga, este amor seria “todo um conjunto psicológico – uma combinação de ideais, crenças, atitudes e expectativas”.
Outro senso comum do amor idealizado seria acreditar que, quando se ama de verdade, o interesse afetivo e físico por outras pessoas deixa de existir em prol de um sentimento maior – um dos fundamentos de relações monogâmicas. A monogamia é uma instituição social que coloca como normativo o casamento entre duas pessoas, mas nem sempre foi assim: ao longo da história, inúmeros povos tiveram como regra uniões poligâmicas (entre dois ou mais indivíduos).
Clique na imagem abaixo para ver em quais países a poligamia é legalizada:
Apesar da predominância da monogamia na cultura ocidental, relacionamentos não-monogâmicos existem e tentam romper com alguns tabus até hoje. As chamadas relações livres são exemplos de relacionamentos que “respeitam a liberdade afetiva e sexual das pessoas, priorizando a autonomia e emancipação dos indivíduos”, de acordo com a Rede Relações Livres. Podem se configurar de diferentes maneiras – grupos que se relacionam, casais “abertos” com ou sem envolvimento afetivo por outras pessoas, “triângulos amorosos”, entre outras.
Pela pluralidade do amor
“Poliamor é seguir seu coração se ele quiser mais de uma pessoa”. Cristal*, de 19 anos, é da cidade de São Paulo, faz cursinho pré-vestibular e vive atualmente sua primeira relação livre com um rapaz. “Começamos a nos envolver e o que eu sentia por ele só aumentava. Me vi apaixonada por ele, porém sentia que seria um certo egoísmo de minha parte impedir ele de ser feliz com outras pessoas”, explica.
A gaúcha Mariana Vogt, de 21 anos, cursa Psicologia e teve três experiências com o amor livre até hoje. A primeira foi com um homem seis anos mais velho. “Começamos a namorar e meses depois ele me traiu. Continuamos juntos e decidimos abrir a relação. Na época comecei a pesquisar o assunto e achei tudo muito lindo e legal, só que eu estava em um relacionamento abusivo – e não sabia. Ele perguntava frequentemente se eu tinha ficado com alguém, me ligava depois de festas, brigava por ciúmes… Nem parecia um relacionamento livre”, relata. O segundo relacionamento de Mariana, à distância, foi com uma mulher. “Nos víamos bastante durante as férias, em festas ficávamos com outras pessoas, às vezes juntas e às vezes separadas, mas sempre acabávamos voltando pra casa juntas. Rolava sentimento, mas ela começou com cobranças que não são de acordo com o que penso sobre um relacionamento e acabamos nos afastando”, relembra.
A terceira experiência (e atual) é com um homem, mas ainda não há uma definição da relação: “No momento, o principal é que haja diálogo e que eu faça o que me deixe feliz e fique com quem me deixa feliz”. Sobre regras dentro das relações, Mariana explica que, por ser uma forma de relacionamento que a maioria das pessoas não está acostumada, as regras são flexíveis para que todos possam se adaptar.
Ramiro Rodrigues, estudante de Ciências Sociais, tem 22 anos e também teve experiências não-monogâmicas. “A minha trajetória com o poliamor foi muito conturbada, e a sombra dessa trajetória sempre foi o machismo. Eu tinha uma relação central com uma pessoa que durou 4 anos e, no começo dessa relação, por eu ser muito novo, eu acabei tendo um papel hegemônico, que é justificado pelo meu gênero socialmente”, conta.
Assim como em outros arranjos sociais, as relações livres também sofrem o peso do machismo. “O homem pode ser visto como um cara muito evoluído por ter um relacionamento livre, enquanto a mulher será vista como puta ou idiota por deixar isso acontecer”, opina Mariana. Segundo a estudante, “o empoderamento da mulher é bastante importante para que ela não se torne submissa, para que possa mostrar pro homem seus comportamentos machistas (melhor ainda se ele perceber – e mudar – sozinho) e se não for possível esse diálogo, que não continue em um relacionamento prejudicial”.
Descobridores dos sete mares
Para Cristal, parte da sociedade ainda não aceita as relações livres: “Ter que ouvir coisas do tipo ‘Quando vão se assumir?’, ‘E casar?’, ‘Mas por que você trai?’. Esse é o preço de querer ser livre nesse sentido”, afirma a estudante. Sobre os aprendizados, Cristal acredita que “com o amor livre você aprende a se doar. Aprende a respeitar seus desejos, a lidar com diversas pessoas”. E um dos alicerces do amor romântico, o ciúmes? Onde entra na história? “Questões como o ciúmes devem ser problematizadas. Não que uma pessoa em uma relação livre não sente ciúmes, mas é importante pensar porque sentimos isso e o que vamos fazer com isso”, diz Mariana.
A possessividade é um ponto importante para Ramiro: “A posse socialmente é um poder, é a legitimação de um cerceamento. Mas dentro das pessoas, acho que a posse é aquele momento em que você ficou com medo e transferiu isso para alguma coisa material: seja uma vivência, uma ideia, uma expectativa, uma coisa ou uma pessoa. E você tem um vínculo com aquela coisa que é muito profundo, porque aquela coisa esconde o seu medo”, comenta.
O estudante acredita que tudo seja um processo de construção e descontrução contínuo, em que o amor é moldado da maneira que se achar mais significativa. “São desbravadores, no fim, os que procuram relações livres. A sociedade existe, as relações de poder existem, o materialismo, o capitalismo, (…) mas existe também a vivência das pessoas. E um momento só de liberdade pode mudar tudo: eu acredito no poder da pessoa humana, ainda mais nessa potência que é o amor”.
*Nome alterado para preservar a identidade da entrevistada.
Reportagem: Carolina Baldin Meira
Produção Multimídia: Gabriela Baraldi Passy
Edição: Jonas Lírio