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Pele a pele: da cicatriz à tatuagem, um recomeço

Tatuagens são uma alternativa para cobrir cicatrizes e contar novas histórias sobre o passado

“Cicatrizes são historias, é importante a gente ver e lembrar disso”, afirma Valessa Lopes. Valessa, de 21 anos e mineira de Belo Horizonte, nasceu com luxação congênita no quadril e aos sete meses passou por sua primeira cirurgia reparadora. A doença trata-se de uma má formação nas estruturas ósseas do fêmur e do quadril, no qual não há correspondência entre o formato dos ossos, impossibilitando seu encaixe simétrico. Nesses casos, cirurgias reparadoras são capazes de corrigir, mas podem deixar cicatrizes para a vida toda. Aos 17 anos, no entanto, Valessa decidiu cobrir a cicatriz com uma tatuagem, recurso pouco recomendado pela dermatologista Mônica Fanini, mas muito praticado no país.

A pele, maior órgão do corpo humano, é dividida em três camadas: epiderme, derme e hipoderme, explica a Dra. Fanini. Ao sofrer uma lesão, o processo de cicatrização pode demorar entre uma e três semanas, dependendo da gravidade da lesão, isto é, em qual camada da pele aconteceu a lesão e as condições do corte ou queimadura. Esse tempo é necessário para que o corpo produza novas células e seja capaz de reconhecê-las, a fim de reconstituir o tecido lesionado. Segundo a médica, não há contraindicações para realizar tatuagens sobre cicatrizes comuns, no entanto, há casos especiais e em que a cobertura não é recomendada. Em casos onde a cicatrização é imperfeita formam-se queloides, que são amontoados de células de regeneração que não pararam de se reproduzir, e sem o devido cuidado, a queloide pode coçar, incomodar e até crescer (para saber mais detalhes, acesse aqui e aqui). “Para combater esse processo, precisamos aplicar injeções de corticóides, que é uma forma de prevenir o crescimento dessas células e cicatrizar corretamente e a tatuagem não é recomendada nesses casos, sob o risco de gerar uma nova queloide. Ao invés de resolver um problema, o paciente pode acabar com dois problemas diferentes”, afirma a médica.

Marcelo Paro, tatuador de Bauru, realiza coberturas e correções de tatuagens em diversas clientes e revela que não há cuidados especiais com uma tatuagem feita sobre uma cicatriz. No entanto, alguns tatuadores tem certo receio em fazer coberturas nesse tipo de pele, já que pode haver regiões hiper sensíveis que surgiram no processo de cicatrização, como no caso de Valessa. A estudante conta que por quatro vezes teve que desmarcar sessão com um tatuador conhecido de sua cidade, já que ele se recusava a fazer o desenho e riscá-lo sobre seu quadril. “Em alguns pontos, meio que pinça e a pele repuxa. Em outros pontos, a pele é fina e em alguns outros, é grossa. Tem lugar que não há sensibilidade e tem lugar que é hiper sensível”, conta Valessa. Assim, a cobertura se torna mais delicada, o que pode atrapalhar o tatuador e até assustá-lo por conta da complexidade do trabalho.

Cobertura feita no quadril de Valessa Lopes.

Cobertura feita no quadril de Valessa Lopes.

Tatuagens: um recomeço

Antes de tatuar, Marcelo Paro procura fazer algumas avaliações com os clientes. Um dos principais critérios é a coloração da cicatriz. O recomendado é que a cicatriz tenha mais de 12 meses e seja clara, pois quanto mais clara, mais antiga é a lesão e mais fácil é para tatuar. Além disso, Marcelo avalia o estado emocional dos clientes que decidem fazer coverups (coberturas) de cicatrizes. “Nos casos que as pessoas querem só se livrar da cicatriz, eu costumo ‘protelar’ mais, questionar se a pessoa quer realmente entrar para a cultura da tattoo, explico a responsabilidade dessa decisão. É uma cultura que existe há muitos anos e foi criada por vários povos”, para o tatuador, a tatuagem é uma arte grandiosa que precisa ser respeitada e tratada como tal, não apenas como uma ferramenta estética para “se livrar de uma cicatriz”, segundo ele.

Neste sentido, a Dra. Mônica Fanini concorda com o tatuador. “Se a pessoa quer fazer uma tatuagem para cobrir uma cicatriz, pode fazer, mas existem outros procedimentos para isso, como injeções, lasers, corticóides”, afirma a dermatologista. Marcelo conta que há casos de clientes que passaram 10, 15 anos sem ir à praia ou andar de shorts por conta de cicatrizes. Nesses casos, Marcelo conversa e orienta os clientes, “se eu perceber que a tatuagem vai realmente agregar com positividade a essa pessoa, que ela vai entender tal significado e se sentir bem em ser tatuada, faço a tatuagem com maior prazer”, afirma.

A decisão de fazer uma cobertura também fez parte do cotidiano de Faedra Lopes em 2015. A carioca e designer de jóias passou por um longo processo de combate ao câncer de mama e entre 2013 e 2014, fez mastectomia parcial e total nos seios. Após exames de rotina em 2011, os médicos de Faedra detectaram um pequeno cisto benigno na mama esquerda. No final daquele mesmo ano, após novos exames, Faedra descobriu que possuía um carcinoma intraductal. A doença mobilizou a família de Faedra, incluindo uma pequena sobrinha portadora de osteogênese imperfecta e o pai. Ao falar do episódio Faedra se emociona, pois o câncer que possuía era bastante agressivo e a obrigou a passar por radioterapia, além de abrir mão de outros sonhos, como o de ser mãe novamente.

Apesar disso, a designer conta que recebeu relativamente bem a notícia da retirada da mama, em 2013, já que o médico garantiu que, junto ao procedimento cirúrgico, haveria uma cirurgia de reconstrução da mama. “Não é que eu não seja vaidosa, mas não fiquei tão preocupada com a questão estética no primeiro momento. Eu queria me ver livre da doença”, afirma.

O apoio da família de Faedra foi fundamental para que o processo de recuperação e reconstrução fosse tranquilo. A carioca contou com o apoio do marido, filho, irmã e familiares próximos. Faedra acredita que é preciso ser forte para resistir ao tratamento e decidir fazer algo para mudar.  “Acho que você deve ser o termômetro de si mesma. Se eu tô bem, eu consigo manter bem as pessoas que estão ao meu redor, se me desequilibrar, as pessoas que estão ao meu redor também vão ficar aflitas”, conta. Faedra retirou 80% da mama direita e fez mastectomia total na mama direita e logo após esse procedimento, decidiu colocar próteses de silicone. Após complicações cirúrgicas e estéticas com as próteses, Faedra decidiu tatuar os seios, alternativa proposta inclusive pela cirurgiã plástica que a atendia. Outra opção seria reconstruir com tecidos vaginais e da pálpebra o mamilo e a aureola do seio por meio de cirurgias, opção descartada após quase um ano e meio de desgastes cirúrgicos. Por indicação de uma amiga, Faedra conheceu uma tatuadora que se dedicava a coberturas de mastectomias.

Moderna e ligada à arte, Faedra já possuia cinco tatuagens antes de dar início à cobertura dos seios. “Com o tempo, os seios iam ficar diferentes, já que um é só prótese e o outro ainda tem 20% de tecido. Ia ficar esquisito [reconstituir o mamilo] e não ia ser verdadeiro, ia ficar parecido, nunca mais ia ser realidade. Então, ao invés de ficar com uma coisa parecida, que me faça lembrar da doença, eu abortei a ideia de fazer cirurgia e decidi tatuar”, conta.

Marcelo já atendeu casos como o de Faedra e acredita que as mulheres muitas vezes chegam muito fragilizadas, então é preciso conversar muito e trazer um apelo estético para o trabalho. “Procuro dar alternativas de desenhos, mesmo que saia da região reconstruída. Esse tipo de tatuagem tem uma carga emocional fortíssima, precisa tomar muito cuidado e fazer o melhor possível”, afirma.

Tatuagem final em aquarela - Faedra Lopes. Imagem: Arquivo Pessoal

Tatuagem final em aquarela – Faedra Lopes. Imagem: Arquivo Pessoal

Diferente do que se pode imaginar, as pessoas que recorrem à tatuagem para cobrir cicatriz, buscam reconstruir sua autoestima e principalmente, recontar a própria história. “A tatuagem não quer dizer necessariamente que você tem vergonha daquilo, é uma forma de dar um toque seu, uma marca sua”, afirma Valessa. Faedra fala com tranquilidade de sua doença e encontrou na tatuagem uma outra perspectiva para o que tinha vivido. Depois de cinco horas, as borboletas de aquarela finalmente ficaram prontas em seus seios, livres como a carioca. “Hoje eu olho para o meu corpo e não vejo nenhum vestígio de doença, eu vejo uma obra de arte, me sinto uma tela”, revela.

Reportagem: Keytyane Medeiros

Produção Multimídia: Vinícius Cabrera e Vitor Almeida

Edição: Adriana Kimura

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