O direito à estética
As cirurgias plásticas oferecidas pelo SUS e seu papel nas políticas sexuais
No Brasil, o Serviço Único de Saúde (SUS) passou por um histórico de transformações. Apesar de criticado por alguns, sabe-se que seus pilares buscam reunir ideias a favor da saúde para todos de forma gratuita e eficiente. Embora exista essa preocupação, pouco se sabe sobre a universalidade do programa. Entre as diversas especialidades que ele abrange, a cirurgia plástica é uma delas. Chamadas de reparadoras por alguns – para distinguir da cirurgia estética, que diria respeito a procedimentos feitos em nome de um padrão de beleza –, são oferecidas pelo SUS desde 2011 para pessoas que sofreram acidentes, possuem deformidades desde o nascimento ou apresentam problemas de saúde por motivos estéticos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, as cirurgias oferecidas gratuitamente são: reconstrução mamária após remoção do seio com câncer, cirurgias para crianças com lábio leporino ou fenda palatina – uma abertura no lábio ou no palato, podendo ser completa, lábio e palato (céu da boca), que resulta de formação incompleta dessa região facial -, plástica para queimaduras que levaram a deformações, abdominoplastia para remoção de excesso de pele após cirurgia do estômago e plásticas para deficiência ou deformidades no rosto.
Segundo o professor de cirurgia plástica da UNESP, Aristides Augusto, em alguns casos os estudantes de medicina da faculdade realizam essas cirurgias estéticas gratuitamente durante o período de residência, mas essas exceções geram filas de pacientes que podem esperar por anos até conseguirem a realização da cirurgia e respondem a critérios específicos para serem realizadas.
Isso também acontece com quem procura realizar cirurgias plásticas pelo SUS, em especial aqueles que tentam o Processo Transexualizador, termo criado pelo Ministério da Saúde de acordo com a portaria GM nº 1.707 de 18 de agosto de 2008, para nomear a gama de cirurgias e procedimentos que envolvem a transformação dos caracteres sexuais dos transgêneros.
Redesignação
Por muito tempo o binarismo dentro das expressões de corpo e sexualidade dominou a medicina. Ainda hoje se espera que um corpo saudável e normal seja aquilo que foi definido ao nascimento e não o que diz desejo/sentimento da pessoa. Entre outros tratamentos, os indivíduos que sentem essa incompatibilidade com o sexo biológico buscam entrar em conformidade com ele através de cirurgias plásticas. No caso dos transexuais e transgêneros, a essa cirurgia é dado o nome de redesignação sexual.
Para essa cirurgia ser realizada através do SUS é necessário que se passe pelo Processo Transexualizador, que envolve diversas etapas. Antes de tudo, há uma triagem com um assistente social para que se possam começar os encontros com psicólogos e psiquiatras. A idade mínima para o tratamento é 18 anos e para a cirurgia, 21 anos. Depois dessa primeira fase, há consultas com endocrinologistas, que irão tratar a parte hormonal para homens e mulheres transexuais.
A última fase é a cirurgia de transgenitalização, ou seja, a mudança dos órgãos sexuais e genitália. No caso das mulheres trans, utiliza-se o nome de neovaginoplastia, pois envolve a conversão dos órgãos genitais masculinos em órgãos femininos. Já para os homens transexuais existe a cirurgia de neofaloplastia, que “engloba a construção do saco escrotal e, posteriormente, a construção do falo (pênis)”, como descrito pelo professor Daniel Camargo, que realizou uma mamoplastia masculinizadora – ou construção do peitoral masculino – através de uma equipe médica contratada fora do SUS. A neofaloplastia deixou de ser considerada “experimental” pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 2002, mas ainda é pouco realizada nos hospitais que cuidam do Processo Transexualizador. A cirurgia também pode envolver a retirada dos órgãos reprodutivos femininos, chamada de histerectomia total.
Burocracia
Engana-se quem pensa que a gratuidade dos serviços oferecidos pelo SUS garante a rapidez dos serviços. No caso do Processo Transexualizador, podem passar anos até que o paciente consiga realizar a cirurgia. Entre os procedimentos que acompanham a realização da cirurgia estão o acompanhamento com psiquiatras e o tratamento hormonal.
Para Priscila Fróes, que começou o processo em março de 2014, “a autorização pela cirurgia não deveria caber aos médicos, psicólogos ou assistentes sociais, embora, ao mesmo tempo, acho que frequentar os grupos por um determinado período seja importante, pois ali dentro trocamos experiências, tanto com quem já realizou a cirurgia quanto com quem ainda a aguarda”. Apesar de achar importante a troca com outros pacientes, Priscila também ressalta que a demora do processo acaba mexendo com a auto estima de quem espera há anos uma cirurgia para poder se sentir melhor com seu corpo ou até para que possa conseguir um emprego sem enfrentar os preconceitos que muitas vezes a pessoa transgênera passa por não ser considerada “adequada” aos padrões corporais e estéticos.
O Processo realizado pelo SUS também não envolve alguns procedimentos estéticos importantes para as mulheres transexuais. Sobre isso, Priscila argumenta: “- eu acho que a colocação de prótese mamaria deveria fazer parte do tratamento, como forma da mulher transexual não injetar nada ilegal dentro de seu corpo e, mais para frente, cirurgias feminizadoras para que ela elimine traços masculinos que por ventura ela não queira e se sinta mal, como o laser para eliminar a barba”.
Outra crítica feita ao processo SUS é a falta de transparência. Segundo Daniel, “não sabemos quem está para ser operado, quantas cirurgias o SUS realizou deste tipo, como também, os recursos destinados para este fim”. Esse problema também envolve a falta de divulgação dos procedimentos e como eles são feitos, o que, de certa forma, resolveria algumas dúvidas da comunidade trans interessada.
Direitos sexuais e a Saúde Pública
A política que institui a gratuidade do Processo Transexualizador faz parte de uma série de medidas referentes ao programa Brasil sem Homofobia – por mais que a referência do preconceito esteja equivocada – e traz mais uma medida alusiva ao grupo dos transexuais e transgêneros, minoria que hoje enfrenta as mais diversas opressões. O Brasil lidera a lista de países com mais assassinatos de travestis e transexuais, segundo pesquisa da ONG internacional Transgender Europe. Contando apenas o período entre os anos de 2008 e 2013, foram 486 mortes. O país também coleciona casos de agressões feitas a pessoas transexuais. Além disso, é conhecido o grande número de mulheres transexuais que, por não conseguirem empregos formais, acabam recorrendo à prostituição – de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% das travestis e transexuais brasileiras se prostituem – e sendo vítimas de violências.
A professora de Antropologia da UNESP e pesquisadora de gênero, Larissa Pelúcio, comentou o tema e a importância do processo para a comunidade transexual.
Entendendo a natureza histórica da violência que a comunidade trans sofre, é necessário pensar nas medidas que possam promover a mudança do status social do grupo. Promover a equidade, neste caso, se relaciona não só a oportunidades iguais e à educação para que não haja preconceito ou agressões, a atenção à saúde também se coloca como fator para trazer visibilidade a esta comunidade que sofre com o tratamento negado pelo poder público e pela própria medicina, que só há pouco começou a realizar as cirurgias de redesignação de sexo.
Hoje a transexualidade ainda é tratada como patologia, descrita no manual publicado pela Associação Americana de Psiquiatria como “distúrbio de identidade de gênero”. Há quem veja a questão com bons olhos. A definição como patologia é o que parece assegurar políticas públicas na área de saúde para os transgêneros. Em outro aspecto, a realização do processo pelo SUS passa pela discussão do que a saúde pública envolve de fato. Fora as questões relativas à doenças, psicológicas ou fisiológicas, o sistema também deve garantir o bem estar dos transexuais.
O Processo Transexualizador, nesse sentido, age também como medida preventiva para diversos casos de depressões, crises de ansiedade e pânico e ainda suicídios dentro da comunidade trans, além de evitar que cirurgias clandestinas sejam feitas. Priscila comenta que “as meninas acabam por tomar medidas drásticas para as mudanças corporais também, acarretando em danos à sua saúde física: o uso inadequado de hormônio pode vir a causar câncer; o silicone industrial, necrose e perda de membros”. Dessa forma, no país que possui o maior sistema de saúde pública do mundo, pensar a saúde dos transexuais e transgêneros é garantir os direitos humanos e lutar por todas as desigualdades sociais que envolvem a comunidade.
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Reportagem: Giovanna Diniz
Produção Multimídia: Vinícius Cabrera e Vitor Almeida
Edição: Adriana Kimura