Fora da moda dos Direitos Humanos
O universo da moda e a indústria têxtil escondem em seus bastidores casos de exploração de mão-de-obra e trabalho degradante
Não é apenas a ausência de liberdade, mas principalmente de dignidade que faz o trabalho de uma pessoa ser considerado análogo ao de um escravo. Esse conceito, presente na legislação brasileira, tem sido a base para garantir a milhares de pessoas o direito de serem livres e levarem uma vida digna. O trabalho forçado (manter a pessoa no serviço por meio de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e a servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele) há muito não são mais os únicos elementos que configuram essa forma de exploração. Quem procura grilhões dificilmente vai encontrar, o mundo evoluiu, e as maneiras de encobrir o aviltamento do ser humano também.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, condições degradantes de trabalho — caracterizadas pela violação de direitos fundamentais que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador — também configuram trabalho análogo à escravidão. Não é a distância entre camas, a espessura de colchões, a falta de copos plásticos ou de marmita aquecida e sim situações que, em conjunto, são incompatíveis com a dignidade humana. Tudo isso está normatizado e pode ser encontrado em manual divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Victor Sousa, advogado especializado em direito trabalhista, acredita que a legislação brasileira é branda quando o assunto é a fiscalização do trabalho escravo. Ele aponta como o Código Penal prevê pena de 4 a 8 anos de prisão mais o pagamento de multa para quem roubar um objeto, enquanto quem submete outro ser humano ao trabalho escravo tem uma pena que varia de 2 a 8 anos, além do pagamento de multa. Outro exemplo é sobre as empresas que não se adequam à legislação ambiental brasileira e correm inclusive o risco de fechar. A empresa que for pega promovendo trabalho escravo precisa apenas pagar uma multa e se submeter a um termo de conduta para continuar ativa.
Segundo o Mapeamento sobre Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo no Estado de São Paulo, feito pela Secretaria de Gestão Pública em parceria com a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania (SJDC), a maior parte dos casos de vítimas do trabalho análogo à escravidão em São Paulo ocorre no setor têxtil, na agropecuária e na construção civil. O levantamento analisou 257 processos relacionados ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo, sendo 171 ações do Ministério Público Federal (MPF) e 86 procedimentos do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Os dados correspondem a agosto e setembro de 2014. Em relação aos processos do MPF, o ramo têxtil registrou 179 pessoas exploradas pelo empregador no período analisado. Os dados são estimativas, pois os processos não têm uniformidade de informações, o que dificulta a possibilidade de traçar um perfil dos casos de trabalho escravo no estado de São Paulo. Mariana Gomes, advogada especializada no direito trabalhista, acredita que a legislação brasileira é boa no que compete a regular as relações trabalhistas. Para ela, o problema é a fiscalização. “O Ministério Público deveria aumentar a fiscalização nessas manufatureiras. Há uma maior legislação nas multinacionais. Como essas manufatureiras são de pequeno e médio porte, há uma dificuldade no controle”, comenta a advogada.
Mariana expõe que um dos principais grupos a sofrer tais pressões no Brasil são os imigrantes: “o trabalho escravo é muito notório no nosso país, infelizmente. Apesar do novo Estatuto do Estrangeiro tentar aproximar a legislação ao Estatuto Internacional dos Direitos Humanos, a fiscalização não é eficiente. Muitos latinoamericanos trabalham nas manufatureiras”. Estima-se que no setor têxtil, 43% das vítimas vieram de outros países, sendo a maior parte da Bolívia, e 36% das vítimas sejam do sexo feminino.
Os casos referentes à exploração laboral no setor têxtil localiza-se, majoritariamente, na Região Metropolitana de São Paulo e os bairros paulistanos com maior recorrência de casos estão na região central, com ênfase para o Bom Retiro, que é reconhecido pelo grande número de pequenas oficinas de costura que, muitas vezes, apresentam condições degradantes de trabalho.
Os bolivianos no Brasil
O início da imigração boliviana para São Paulo remonta à década de 1950, quando, em função de um programa de intercâmbio cultural entre Brasil e Bolívia, alguns estudantes vieram ao país em busca de qualificação acadêmica não disponível na Bolívia, muitos dos quais permaneceram na capital paulistana. A partir da década de 1970, passa a mudar o perfil do imigrante boliviano na cidade. Nesse período, começaram a chegar pessoas de baixa qualificação profissional para trabalhar nas oficinas de costura da cidade a pequenos salários.
Atualmente, as estimativas sobre o real tamanho da comunidade boliviana em São Paulo apresentam uma enorme variação: o Consulado da Bolívia calcula 50 mil indocumentados, o Ministério do Trabalho e Emprego tem uma estimativa que varia entre 10 e 30 mil indocumentados, o Ministério Público fala em 200 mil bolivianos ao todo (regulares e irregulares) e o Sindicato das Costureiras fala em 80 mil trabalhadores irregulares (o que inclui famílias brasileiras e bolivianas). No entanto, apesar do número expressivo, os bolivianos são um grupo praticamente ausente nas estatísticas públicas.
Renato Cymbalista, arquiteto e urbanista, mestre e doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e Iara Rolnik Xavier, socióloga formada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma Universidade são autores da pesquisa “A comunidade boliviana em São Paulo: padrões de territorialidade”. Em sua pesquisa, Renato e Iara traçam um interessante perfil dos bolivianos que trabalham no ramo da costura, no universo da indústria do vestuário. “Os imigrantes que chegam da Bolívia (em sua maioria jovens) têm, em geral, um perfil de baixa qualificação profissional, de escolaridade média e variação de gênero equilibrada entre o sexo masculino e feminino”, analisam.
Na Bolívia, jornais publicam anúncios de emprego no Brasil no ramo da costura, incluindo moradia e alimentação (sem custos) e boas condições de trabalho. “É bastante presente a imagem de que tais promessas seriam falsas e os imigrantes, enganados”, completam os pesquisadores.
O grande mercado do vestuário em São Paulo, que absorve tamanha quantidade de mão-de-obra ancora-se em práticas ilegais para manter-se competitivo. Apesar de muitos brasileiros aceitarem as condições de trabalho e remuneração oferecidas pelas oficinas de costura, os bolivianos são as principais vítimas da exploração, pois são os mais adequados para cumprir a função de mão-de-obra irregular: possuem as qualificações (baixas) e a disciplina (alta) para o trabalho e não representam ameaça de processos trabalhistas, pois muitos não possuem permissão de trabalho ou sequer conhecimentos básicos sobre direitos trabalhistas.
Victor Sousa conta como os empresários do ramo “se aproveitam da condição simples e desconhecimento da lei desses imigrantes para conseguir fraudá-los, ficar com o RG para que não possam sair do local de trabalho, intimidar, entre outras práticas combatidas pelo Ministério Público do Trabalho”. Victor apresenta como a legislação teoricamente protege esse trabalhador, mas o fato de eles chegarem ao Brasil de forma ilegal dificulta a sua proteção. De acordo com o artigo 359 da legislação brasileira, “nenhuma empresa poderá admitir a seu serviço empregado estrangeiro sem que este exiba a carteira de identidade de estrangeiro devidamente anotada. (…) A empresa é obrigada a assentar no registro de empregados os dados referentes à nacionalidade de qualquer empregado estrangeiro e o número da respectiva carteira de identidade.”
Segundo os pesquisadores, é bastante interessante investigarmos também os empregadores das oficinas de costura. “Até meados dos anos 1990, os imigrantes coreanos eram os principais empregadores de trabalhadores bolivianos, mas a partir de então estes vêm se concentrando nas atividades mais lucrativas da cadeia, e vendendo as oficinas para seus funcionários bolivianos”, afirmam na pesquisa.
Além disso, muitos imigrantes trabalham em pequenas oficinas familiares, que não distinguem empregador e empregado da forma clássica. As condições são sempre precárias: mais de oito horas de trabalho por dia, de segunda a sábado, e poucas horas de descanso. As oficinas normalmente operam cheias, com pouca luz, pouca ventilação, em casas que também servem de moradia para as famílias trabalhadoras. Durante as entrevistas feitas com os imigrantes bolivianos, os pesquisadores descobriram que muitos são pagos por peça produzida, sem que haja qualquer contrato estabelecido, e o preço das peças costuma ser extremamente baixo (de 0,15 a 0,30 centavos).
Ainda segundo a pesquisa “A comunidade boliviana em São Paulo: padrões de territorialidade”, por parte da comunidade, o rótulo de trabalho escravo é foco de sentimentos ambíguos. “Lideranças de maior visibilidade frequentemente afirmam que a imagem clássica do trabalhador boliviano escravizado em oficina de costura mancha a imagem da comunidade e reforça a discriminação que sofrem pela sociedade. Por outro lado, muitos dos entrevistados concordam que existe esse tipo de prática de exploração entre a comunidade boliviana empregada no ramo da costura”, afirma o pesquisador Renato.
Numa cidade com uma população de 10 milhões de pessoas com imensas demandas sociais, os estimados 100 mil invisíveis imigrantes bolivianos, trabalhando em condições precárias e não habilitados a votar, não são percebidos pelo poder local como uma grande questão a ser enfrentada. No entanto, à medida que o assunto vai ganhando maior visibilidade na mídia, na academia, nas instâncias municipais e – principalmente – na sociedade consumidora, a situação pode estar ganhando novos contornos.
Um caminho para esse enfrentamento é a nova legislação dedicada ao imigrante. Mariana Gomes lembra o dia 21 de maio de 2015, quando “a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional aprovou o projeto de lei que busca estabelecer uma nova legislação para o imigrante no país”. Segundo ela, a “lei anterior fora criada no regime militar e por isso não se encaixava na realidade brasileira atual, de um aprofundamento do capitalismo, da globalização e de um período democrático”. Um dos exemplos dessa mudança de olhar é a troca do termo “estrangeiro” – para Mariana muitas vezes colocado de modo pejorativo – para a palavra “imigrante”, no tratamento das pessoas que moram no Brasil, mas nasceram em outro país.
E a moda com isso?
Muitas são as grandes empresas que foram denunciadas recentemente sobre a exploração do trabalho. Victor Sousa cita a Zara e a Collins como exemplos. Ele atribui essa função de fiscalizar as grandes empresas ao Ministério Público. “O poder público possui particular responsabilidade na investigação e punição dos agentes que se utilizam do trabalho humano de forma abusiva e divulgação das ‘marcas’ que lucram com isso. O Ministério Público do Trabalho é o órgão que atua neste âmbito, visando a aplicação das leis já existentes”, explica.
Mariana Gomes faz uma ressalva e lembra como as grandes empresas já são vigiadas pela sociedade e pelo ministério público. Para ela, uma saída interessante seria aumentar o tamanho das equipes de fiscalização do Ministério Público para que essas pequenas manufaturas possam ser acompanhadas.
Enquanto isso não acontece, Victor aponta uma solução interessante e consciente de consumo. “Existe até um aplicativo, que permite saber se a marca de roupa se utilizou de trabalho escravo em algum momento da sua cadeia produtiva (Moda Livre)”. Ele aponta sobre a necessidade de se “pensar em novas formas produtivas, que promovam maior igualdade nas relações de trabalho, mas neste ponto a legislação ainda é silente.”.
As campanhas de publicidade já apresentam jovens conscientes das dimensões sociais do mundo, do desafio ecológico e mesmo do respeito à diversidade. Mas suas cadeias de produção nem sempre são visíveis ao consumidor, como é o caso da exploração da mão de obra barata e das condições deterioradas de fábricas. Agora, essas situações começam a ganhar contornos políticos e diversas iniciativas vêm surgindo para transformar a relação de consumo das pessoas.
“A velocidade estonteante das engrenagens da moda faz com que muitos pensem que é preciso ter sempre o novo. Mas, às vezes, nos esquecemos daquilo que somos e o que queremos construir”, afirma Flávia Vanelli, designer e sócia da empresa Ratoroi. A proposta da Ratoroi é ser um estúdio de design que trabalha com pesquisa técnica e desenvolvimento de novos produtos. Além disso, presta consultoria em moda e design, buscando promover a valorização do trabalho manual e o uso de elementos naturais e residuais, com foco na inovação e sustentabilidade.
“Acreditamos que quem produz com as mãos entende outra lógica do tempo, um tempo mais dedicado, feito com cuidado e qualidade. Procuramos essas pessoas e, a partir daí, tentamos construir uma relação de trabalho baseada na confiança e na vontade de fazer acontecer, gerar renda, melhorar o entorno, fazer parte de algo. E na outra ponta trabalhamos com a indústria, onde nos dedicamos a explicar e oferecer novas possibilidades e materiais aos nossos clientes”, completa Flávia.
O trabalho, que começou há 6 anos, buscava estudar as possibilidades estéticas do plástico pós-consumo e de excessos industriais, e a primeira aplicação foi na moda. Depois de aquecido e transformado em uma nova superfície, o plástico, recolhido pela Associação de Recicladores do Vale do Itapocu (SC), é trabalhado graficamente e ganha espaço na estamparia das coleções da Ratoroi. Em busca de novos substratos onde a superfície plástica possa ser aplicada, a marca encontra lugar no design, em acessórios, no mobiliário, e na arquitetura. “Somos em dois no estúdio, eu e o André, que é historiador e designer, mas nosso espaço abriga muito mais pessoas de acordo com os projetos que estamos inseridos, trabalhamos em rede e com muitos outros atores”, comenta Flávia.
E é justamente o envolvimento com muitas pessoas que traz a necessidade do debate sobre o consumo consciente. “Precisamos consumir menos e com mais consciência! Agindo em conjunto com a criatividade e cuidado, estaremos sendo mais despertos e mais humanos”, afirma Flávia.
Reportagem: Laura Fontana e Pedro Borges
Produção multimídia: Caroline Braga
Edição: Carolina Baldin Meira