Tendência ou apropriação cultural?
Historicamente a população negra foi marginalizada no Brasil devido ao sistema escravocrata e à posterior não-inclusão dessa população com o fim desse regime após a Lei Áurea (1888). Por esse motivo, a valorização de elementos culturais pela própria população negra é um exemplo de luta pela igualdade étnica no País. Assim, quando uma pessoa não-negra utiliza elementos da cultura negra, estaria ela esvaziando o significado da cultura ou fazendo um elogio a ela?
Turbantes viraram tendência. Dreadlocks são musts em rodinhas hippie-chics. Nas vozes de Iggy Azalea e Katy Perry, gírias e referências à cultura negra. Do twerking de Miley Cyrus aos cocares utilizados em festas à fantasia. A globalização permite o trânsito e a troca entre culturas e tradições. Mas qual o limite entre o elogio a uma cultura e a apropriação e esvaziamento de significado dela?
O sociólogo Stuart Hall, em seu livro “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade” falava sobre a fragmentação das identidades provocada pelo processo de globalização. Segundo Hall, “somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar”.
Torna-se complexo, então, definir o momento em que o uso de símbolos e costumes de um povo torna-se uma ofensa. O antropólogo João Batista de Jesus Felix, professor da Universidade Federal do Tocantins e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas da África e dos Afro-Brasileiros (Neaf/UFT) defende que não há uma imposição cultural de um povo em relação a outro, e sim uma troca entre povos. “Eu discordo de que você tenha uma cultura negra e uma cultura branca. O que existem são práticas culturais. No Brasil, nós temos o samba e a capoeira que, a princípio, podem ter sido iniciados por negros, mas que hoje estão aí para o uso de todos. Eu não sou adepto da ideia de que você tem uma cultura de um grupo”.
Nesse sentido, seria natural, por exemplo, ver negros de cabelos alisados e brancos exibindo black powers. Ou ter, como grandes expoentes do rap – nacional e internacional – pessoas brancas. Mas há outra linha de análise, esta política, sobre como as culturas dialogam e transitam. É partindo dessa análise que surge o conceito de apropriação cultural.
O viés político do conceito vem da ideia de que as culturas não dialogam de forma democrática e horizontal. Haveria, assim, uma relação desigual entre os símbolos de um povo dominante, que se colocariam como o padrão aceitável, e os símbolos de povos marginalizados, que são tomados pelo elemento dominante e esvaziados de significado. Há, então, uma relação de privilégio de uma cultura em relação à outra.
“Então, por mais livres que as pessoas sejam para usar o estilo de cabelo e de roupa que elas quiserem, usar os símbolos culturais de um povo para satisfazer uma vontade pessoal sem se expressar é um exercício de privilégio” – trecho de artigo “The Difference Between Cultural Exchange and Cultural Appropriation”, de Jarune Uwujaren, para o Everyday Feminism
Juarez Tadeu de Paula Xavier, coordenador executivo do Núcleo Negro Unesp para Pesquisa e Extensão (Nupe) e professor do Departamento de Comunicação da Unesp-Bauru, defende o viés político do conceito de apropriação cultural. Segundo Juarez, os símbolos culturais de um povo são espaços de resistência e politização. “Alguns espaços negros, sobretudo espaços organizados pela cultura negra, são também centros de resistência política. São espaços construídos a partir de temáticas de resistência, pautadas pela crítica à violência, ao racismo”.
Apropriar ou não apropriar-se: eis a questão
É tênue a linha entre aquilo que é de fato apropriação cultural e o simples uso de elementos culturais globalmente disseminados. É muito comum em grupos de discussão em torno de questões políticas ver, por exemplo, pessoas –sobretudo pessoas brancas – perguntando “usar [algum elemento de um povo não-branco] é apropriação cultural?”.
Isso significa, então, que não deve haver a troca ou o diálogo entre povos? De acordo com o Juarez, não. O professor defende a ideia de que o problema é o apagamento da questão política de um determinado símbolo. “Há espaço para que pessoas usem elementos da cultura negra, desde que de forma politizada. O problema é quando essa pessoa usa o discurso para negar a questão histórica do negro, é quando ela tem esses elementos simbólicos e passa a desconsiderar a população negra na preservação de seus significados”.
Em entrevista para o Hot 97, Monday, programa de rádio dos Estados Unidos, o rapper Macklemore, que já foi criticado pelo sucesso a partir da apropriação de elementos da cultura negra em suas músicas, reconheceu seu privilégio dentro da indústria musical, e falou de sua posição política diante disso:
“Você precisa reconhecer o seu lugar na cultura. Você está contribuindo ou você está apenas se aproveitando? Você está usando isso para o seu próprio privilégio ou você está contribuindo [para o debate]? Só porque há mais rappers brancos fazendo sucesso, você não pode desconsiderar de onde veio essa cultura e o seu lugar enquanto branco. […] Eu realmente acredito que eu preciso saber o meu lugar”. – trecho da entrevista de Macklemore
Reportagem: Nathália Rocha
Produção multimídia: Lígia Morais
Edição: Victor Rezende
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