Perfil: No divã de Dona Eurides
A costureira bauruense atende há mais de 25 anos e ressalta o amor pela profissão e os laços de amizade que cria com suas clientes.
“Para trabalhar como costureira, o importante é gostar do que faz.” Esse é o requisito principal que Eurides Aparecida Guimarães Leite aponta, de trás de sua máquina de costura antiga, ao lado da amiga e ajudante Lourdes e com um sorriso que dificilmente tira do rosto. Nas batidas da máquina, no sorriso de Eurides e nas peças exibidas dentro da oficina conjugada à casa dela, o orgulho de uma vida de trabalho são evidentes.
O interesse pela costura surgiu quando os dois filhos eram crianças e ela começou a fazer roupas para eles. A sogra, que era costureira e ensinava o ofício, foi um incentivo a mais, porém, Eurides deixa claro que aprendeu sua profissão principalmente sozinha. “Tenho que agradecer a Deus, porque foi Deus quem me ensinou.” Desde então, incentivo não faltou. A costureira lembra que foi trabalhar em lojas de roupa e, depois, em um escritório, onde “as meninas do escritório incentivavam a levar a costura mais a sério”.
Assim, dona Eurides utilizou o espaço nos fundos da casa e passou a costurar para fora. Pouco tempo depois, já não precisava de cartão de visitas ou anúncio algum, em um bairro familiar e com clientes fidelizados, a melhor propaganda é o “boca a boca”. “Tem pessoas para quem eu costuro há muitos anos, o guarda roupa da pessoa é feito praticamente por mim.” Hoje em dia, a procura é tanta que ela precisa dizer “não” muitas vezes, mesmo com o reforço da auxiliar que contratou há cerca de dez anos. Com a alta demanda, ela pode optar por pegar mais alta costura do que consertos, por exemplo. Sobretudo, a principal regra é: cliente antiga e cliente amiga têm prioridade.
Na oficina de dona Eurides, ninguém é apenas cliente. O clima de descontração, a música do rádio ao fundo, a poltrona confortável e a conversa que corre solta deixam claro que, ali, cliente também é amigo, sim senhor. A costureira conta que ela nunca quis um tratamento automático entre as clientes e seu negócio, isso as lojas oferecem. Qualquer um que chega entra, toma uma água e conversa pelo menos um pouco. Eurides observa que muita gente vê o horário da costureira como um hobbie. “Para muita gente, essa cadeira é um divã. As pessoas saem muito mais alegres do que chegaram”, completa a auxiliar Maria de Lourdes Paixão, ou só Lourdes.
É dessa forma que se formaram algumas das amizades de longa data da vida da costureira. Na agenda corrida, estão marcados o casamento do filho de uma cliente, a formatura da filha de outra…
Para provar a fala de dona Eurides, não demorou muito para a campainha tocar com a chegada de duas freguesas: mãe e filha, clientes desde quando a adolescente ainda engatinhava. Elas destacam a exclusividade do trabalho de uma costureira, o prazer de ter uma peça única, feita sob medida. Para Eurides, conhecer o cliente é parte do trabalho. “Primeiro eu procuro conhecer a pessoa, depois, costurar para ela; preciso saber do que ela gosta, o que ela quer da vida.”
Por isso é tão difícil encontrar alguém apropriado para o serviço com dona Eurides: não basta saber costurar, tem que se encaixar no perfil. Lourdes, por exemplo, aprendeu todo o serviço com ela, hoje já faz tudo. A falta de mão de obra é uma das barreiras que ela encontra quando pensa em ampliar o negócio. “O mais difícil é arrumar outra pessoa, alguém que trabalhe do seu jeito, que tenha paciência e saiba lidar com as pessoas.”
Sobre a escassez da mão de obra, dona Eurides comenta que “hoje as pessoas querem estudar, fazer ensino superior, aí acabam vendo a costura como um bico ou um hobbie, mas esquecem que também pode ser um ganha pão”. Apesar de não pensar em dar aulas, ela se orgulha de incentivar as pessoas a praticar a costura, a conhecer as possibilidades que a costura oferece e a visitar lojas de tecido, como ela mesma adora fazer.
Perfeccionista e dedicada, o descanso acaba prejudicado em sua vida. A promessa de desacelerar é antiga e ela sabe que um dia será uma necessidade inevitável, porém, a palavra aposentadoria a assusta mais do que se eu dissesse que sua loja de tecidos favorita vai fechar. Com o pé no chão e a cabeça consciente, ela desconstrói a ideia de que todo autônomo é seu próprio chefe. “As clientes são minhas chefes. Minha agenda é programada por elas. Eu não tenho horário de almoço, porque no horário normal de almoço é quando elas têm tempo para vir aqui.” Com tanto trabalho, ela conta nos dedos de uma mão as vezes em que tirou férias: foram duas e, se tudo der certo, ano que vem a conta aumenta.
Ainda na desconstrução de mitos sobre a profissão, ela diz que costura principalmente para mulheres jovens ou de meia idade. “Não é só plus size ou só para gente mais velha”. No currículo, dona Eurides ostenta peças que costurou para outros países, para agências de modelo e coleções para estudantes de Moda. Entre risos, ela lembra o comentário que já usou em vários momentos da carreira: “Eu costumo falar que o trabalho aqui é igual uma construção. Quem pensa a roupa é o arquiteto, eu sou o pedreiro”.
Independente da roupa que faz, Eurides nunca esquece da responsabilidade que tem nas mãos. Décadas de serviço a ensinaram que a roupa vai muito além de uma vestimenta. “Roupa é a identidade da pessoa. Quando uma pessoa chega, eu reconheço muito bem se ela é fashion, se ela está de bem com a vida”, comenta enquanto cada um na sala se pergunta “como pareço aos olhos atentos de dona Eurides?”.
Além da experiência e dos amigos, tantos anos de trabalho garantiram muitas histórias e algumas “encrencas”, como lembram Eurides e Lourdes. “A gente dá risada o dia todo só lembrando.” Por fim, as histórias boas parecem se superar e por uma ela tem um carinho especial. É a memória de um cliente que, há muitos anos, quando ainda não se usava internet ou DVD, apareceu em sua casa com uma fita cassete. Sentados à sala, ele mostrou a ela um clipe da banda Guns N’Roses em que o cantor utilizava “uma espécie de farda medieval” e confessou que queria se casar com um traje igual. Um pouco divertida, um pouco comovida, ela conta que o rapaz falava desde o começo do namoro que usaria aquele traje e, graças a ela, conseguiu realizar seu sonho. “Quando ele veio buscar a roupa, até chorou. Onde ele conseguiria a roupa daquele jeito?”
“Costurar é uma responsabilidade muito grande. O cliente quer usar aquela roupa e se sentir feliz, realizado. A gente trabalha com o emocional da pessoa.” Na memória da costureira, fica a frase que a noiva do rapaz falou para ela em agradecimento: “Eurides, você sabia que além de costureira, você também realiza sonhos?”.
Antes mesmo de ouvir essa lembrança, eu cheguei à mesma conclusão.
Reportagem: Amanda Moura
Produção multimídia: Marília Garcia
Edição: Victor Rezende
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