Vida na gaiola: a objetificação do animal
Mais do que simples pets, peixes e aves silvestres passam por situações diversas, de itens de decoração à vítimas de violência e descaso
Uma das particularidades de um país de proporções continentais como o Brasil é justamente a diversidade de biomas que atravessa nosso território. Entre climas tropicais, sub-tropicais e cerrado, a fauna e a flora se ajustam ao ambiente, proporcionando ao país aproximadamente 4 mil espécies de peixes de ambiente marinho e água doce, além de 1900 espécies de aves, segundo dados do IBAMA e do Comitê Brasileiro de Registro Ornitológico de 2014.
Além da psicultura, isto é, da criação e reprodução de peixes para fins comerciais, é comum encontrar no Brasil outras duas atividades, o aquarismo e o aquapaisagismo. O aquarismo é a criação de peixes em aquários ou tanques com finalidades ornamentais ou de estudo. A criação de peixes para consumo humano começou, muito provavelmente, com os sumérios em 3.000 a.C, às margens dos rio Tigre e Eufrates e se estendeu pelos egípios e gregos na pré-História. No entanto, o aquarismo só adquire formato de hobby na China, durante a Dinastia Ming, no século VI da era moderna. Em 1596, surge o primeiro livro sobre aquarismo no mundo, o Chi Shayu Pu, “O livro do peixe vermelho”, escrito por Chang Chi’en Te. O livro reunia técnicas de criação, dicas de manutenção dos reservatórios e cuidados com diversas espécies, algo bastante parecido com os atuais fóruns e portais online de discussão sobre aquarismo.
No Brasil, o Aqua3 é um destes portais e com mais de 20 mil curtidas no Facebook, é uma referência no assunto. O portal surgiu em 2010, quando André Albuquerque e outros dois amigos participaram de um encontro de aquarismo em Alagoas. Diante da falta de informações consistentes sobre o hobby naquela região, os três montaram o site, que contém entrevistas, notícias, artigos, dicas de manutenção de aquários e uma seção de equipamentos que podem ser feitos em casa. Tudo isso é necessário quando o praticante decide manter um aquário vivo, criativo e ornamental. Giuliano Barani, estudante de Design e praticante do aquapaisagismo há quatro anos acredita que o peixe é mais ornamental e por isso, o tratamento é diferente com relação aos outros animais de estimação. “O peixe não é um pet, que você pode brincar e cuidar como se fosse um animalzinho. Ele é estético, visual. É um hobby que você gasta tempo cuidando do aquário, fazendo ele florescer”. Influenciado pela família e especialmente por um tio orquidófilo, que tinha uma grande estufa de orquídeas, Giuliano compara a criação de peixes com a criação de plantas. “É um hobby bastante visual, com vazão criativa”.
O aquarismo, segundo André Albuquerque, pode ser dividido entre dulcícola (peixes de água doce) e marinho (peixes de água salgada). Para ele, para compreender o aquarismo é preciso “só enxergar o aquarismo como uma tentativa de simular os ambientes aquáticos ao redor do planeta. Se você toma como exemplo os marinhos, a grande maioria de aquários simula os recifes de coral espalhados por nossas costas e os dulcícolas geralmente o leito dos rios ou sistemas aquáticos específicos como as águas cristalinas e cheias de plantas aquáticas de Bonito – MT”, explica.
Outra vertente possível é o aquapaisagismo, praticado por Giuliano. Esse hobby tem início com Takashi Amano, que introduziu técnicas japoneses de wabi-sabi e pedras zen nos aquários de água doce que possuía. Com essas técnicas de ornamentação, os aquários de Takashi possuiam arranjos intrincados, assimátricos e com troncos, formando um ambiente aquático estável para os peixes e esteticamente equilibrado para os seres humanos. Além da preocupação estética, Giuliano destaca que é preciso também ter algum conhecimento em ciências biológicas como domínio dos ciclos de nitrogênio e pH da água, para poder controlar populações de algas e plantas daninhas ao ecossistema do aquário. Nessa técnica, a ideia é criar de fato, um jardim debaixo do aquário. “É preciso organizar as plantas e os peixes para que o seu olho siga um fluxo de informações dentro do aquário. Particularmente, gosto muito mais da parte biológica e natural do aquário. É muito bacana o fato de ser um bioma totalmente fechado, fazer ele florescer e estar em equilíbrio”, afirma.
Tráfico de animais silvestres – um problema estrutural
“A reprodução de determinados peixes no Brasil é algo um pouco nebulosa, há muito poucas informações sobre isso”, afirma Giuliano Barani. Nesse sentido um exemplo possível desta situação é o peixe Neon Tetra-Cardinal e Neon Verdadeiro. Originário da região amazônica, de organização em cardumes e de difícil reprodução em cativeiro, o comércio ornamental do peixe Neon foi parcialmente proibido no país pelo IBAMA em 2012 para que os períodos de coleta respeitem o período de reprodução na natureza, que acontece normalmente nos períodos de cheia da região norte, isto é, durante o verão. O problema diz respeito justamente à oferta deste peixe no mercado aquático mesmo durante os períodos de reprodução naturais, já que o Neon dificilmente se reproduz em cativeiro.
Situação ainda mais agravante é a dos pássaros no Brasil. Com aproximadamente 1900 espécies de aves catalogadas, 992 apenas na região da Mata Atlântica, o país já conta com o 83 espécies em extinção, segundo o IBAMA. Uma das principais razões que coloca em risco a continuidade dessas espécies na natureza é o tráfico internacional de animais silvestres. Transportados em garrafas PET, em tornozeleiras e mochilas por aeroportos do país. Um dado é ainda mais assustador, quanto mais raro for o espécime, mais caro ele será no mercado ilegal. Segundo relatório da RENCTAS, organização sem fins lucrativos de preservação dos animais silvestres, publicado em 2007, a rede de tráfico internacional é formada basicamente por três camadas sociais: os fornecedores, intermediários e consumidores finais. Entre os fornecedores e os consumidores finais há uma grande discrepância sócio-econômica. Enquanto os fornecedores normalmente são pessoas desprovidas de recursos financeiros e veem na caça de animais fonte de renda complementar, os consumidores finais chegam a pagar R$ 3 mil reais por um exemplar de ave tropical. Segundo o relatório, o processo é sofisticado e inclui subornos, fraudes e falsificação de documentos para transportar animais em aeroportos e portos internacionais pelo país. Entre 1999 e 2005, apenas 3600 pessoas foram autoadas por tráfico de animais silvestres na região da Serra do Mar. Segundo o IBAMA, em 2005 foram apreendidos 6.193 canários e 8.921 Sporophila, espécies em risco de extinção. Acredita-se que o mercado irregular de animais silvestres movimente de 10 a 20 milhões de dólares por ano no mundo inteiro, sendo o Brasil responsável por 10% deste valor.
O crime ambiental de tráfico de animais silvestres no Brasil está regulamentado em duas leis e um decreto, no entanto há incongruência nas leis, além de estar desatualizadas. A principal delas, a lei Lei 9.605/98, por exemplo, estabelece que apenas animais vertebrados nascidos em habitat natural podem ser enquadrados como vítimas de tráfico de animais silvestres, prevendo detenção de 6 meses a um ano e multa. Crustáceos, algas e insetos, por exemplo, não se encaixam na lei, e no entanto, também são traficados internacionalmente, o que demonstra uma brecha na lei. Apesar da superlotação, em 2005, 70% das apreensões do IBAMA eram encaminhadas para criadouros locais.
Além disso, a Unidade de Conservação Internacional, um braço ambiental da Organização das Nações Unidas (ONU) atesta que em 2006, havia 41 espécies de aves da mata atlântica que só existem em cativeiros, além de outras 6 espécies de peixes nessa mesma condição. Uma alternativa proposta pela Unidade de Conservação Internacional e apoiada pela RENCTAS Brasil é a criação e a manutenção de unidades de proteção florestal no país. Aproximadamente apenas 15% das 553 áreas-chaves para a biodiversidade da Mata Atlântica, são unidades de conservação ou áreas de proteção pública ou privada. Isso significa que os 85% restantes não tem qualquer proteção legal ou ambiental por parte do governo ou de políticas públicas de proteção à fauna e à flora brasileira.
Reportagem: Keytyane Medeiros
Produção Multimídia: Bibiana Garrido
Edição: Giovanna Diniz