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As horas pesam sobre os ombros

E por trás dos ponteiros do relógio há um grande fardo que se equilibra nas veias da invisibilidade

Lucimara, 16. Alessandra, 15. Sirlene, 14. Maria de Fátima, 13.

Os bons observadores ririam pelas idades formarem uma escadinha e essa tinha, sim, tudo para ser uma história feliz sobre quatro garotas adolescentes, mas o tempo corre e agora com, respectivamente, 43, 40, 38 e 50 anos, as quatro mulheres encaram uma jornada de trabalho cansativa e desgastante como diaristas e que lhes rende, em média, pouco mais que 3 salários mínimos por mês e não muitos elogios ou simpatias, nem garantias para uma estabilidade futura.

Com se não bastasse, Sirlene e Lucimara, desde os sete e oito anos, trabalhavam na roça com suas famílias, enchendo sacos e mais sacos que nos alimentavam todos os dias. Crianças que, teoricamente, poderiam estar fazendo qualquer outra coisa que não fosse colher laranja, amendoim e algodão. Mas elas não podiam, e ainda ajudavam a nos alimentar.

Por vezes, a realidade nos acorda com um copo d’água fria na cara. Ou nos pés, nas mãos e em baldes e mais baldes com desinfetantes das mais variadas marcas possíveis.

O chão não limpa sozinho – murmurou em tom irônico Renata, tomando um delicioso copo de refrigerante trazido há pouco pela empregada doméstica. O “muito obrigada” também não foi soado pelo esplendoroso rebolar de lábios que a patroa proferia, em meio a palavras manchadas com a cor vermelha do batom.

E essa era a relação: empregada versus Renata. Empregada não tinha nome, muito menos família ou vida social. Afinal, empregada estava apenas cumprindo seu papel de manter o brilho do chão impecável e o tilintar dos copos em perfeita sintonia.

Tira o chinelo, limpa o pé. Bebe água, água pode beber. O relógio bate 8 horas.

Vassoura na mão, poeira sumindo do chão. Almoço em prontidão, roupa passada, senão…

“Toda a manhã era assim e a tarde também”, desabafa Alessandra. “Mas era bom porque trazia estabilidade para mim e para os meus filhos. Hoje, eu ganho um dinheirinho a mais como diarista, mas não tenho a garantia da aposentadoria quando ficar velha porque parei de pagar”, conta. “Como diarista é melhor porque a gente consegue não criar tanto laço com a pessoa, porque aí ela vai e te trata como qualquer um que parece que nem existe e isso da tristeza na gente, né?! A gente se esforça para deixar tudo limpinho e é igual vocês estão falando aí nessa revista: os patrões parece que passam e nem veem que a gente é gente também”. Seus olhos embotados de cimento e lágrima.

As horas pesam sobre os ombros. Assim como na ida, na volta uma hora e meia de estrada. E buracos e mais buracos.

Até que enfim Alessandra chegou em casa: descansar. Ou não.

Mais casa para limpar, mais roupa para passar. Passeio com os amigos, Alessandra, “só Deus dirá. A gente chega em casa e quer poder descansar quando tem um tempinho a noite. De final de semana eu até que saio com o meu marido, com os meus filhos e as minhas amigas do bairro, mas que dá vontade de ficar em casa dormindo, isso dá”.

Sirlene também acredita ser vista com o mesmo filtro de olhos da sociedade, que talvez a enxergue como translúcida, turva ou agente de um famoso fenômeno sobrenatural: os copos sujos aparecem lavados no escorredor. Mas essas mãos de quem os lava são, muitas vezes, ignoradas e invisibilizadas. “Eu acho sim, eu acho. Acho que a nossa profissão é muito desvalorizada. E por quê? Porque as pessoas veem a gente, parece que não como um profissional. Eu até hoje não entendo o porquê disso, mas eu acho que é desvalorizada, sim!”, discursa inflamada.

Sirlene não entende o porquê de as pessoas não a verem como uma profissional e desvalorizarem seu trabalho, mas o que a Sirlene não sabe é que essa atitude social tem uma explicação e é simples: o trabalho de empregada doméstica foi criado na época da escravidão. Era considerada uma atividade desonrosa, feita por escravas totalmente exploradas, à margem da sociedade, recebendo muito pouco pelo esforço exercido, que estavam apenas cumprindo seus papeis de manterem o brilho do chão impecável e o tilintar dos copos em perfeita sintonia. (Opa, acho que já escrevi essa frase antes).

“Uma vez a pessoa chegou para mim e falou que os 100 reais que ela me dava estava muito bem pago para trabalhar de diarista. Aí eu só falei para ela assim: Então a senhora pega 100 reais e vai no mercado. Vê o que a senhora traz com 100 reais”, conta a diarista, que diz não deixar barato porque ela “também é gente”.

 Foi então que, animada pela sua pausa para almoçar, armou uma pratada de comida bem quentinha que acabara de preparar e sentou-se à mesa, feliz da vida por partilhar daquele móvel que, muitas vezes, a encarava como um espelho, quando própria, se via refletida nos vidros que tanto limpou.

Mas ali era diferente. Ali era diferente porque sentada naquela mesa, reclamava sobre tantas outras vezes em que teve que almoçar “em pé, na área de serviço ou sentada no quartinho da empregada” em outras casas.

Sirlene não parou de falar. Animada por alguém se importar com a existência de sua profissão, embalou uma prosa boa e feliz, contando que tinha trabalhado como empregada doméstica registrada em “casa de família” – assemelhando-se à história de Alessandra – mas que, pelos seus três filhos, optou por ser diarista e garantir um dinheirinho a mais no final do mês. “Foi muito bom como empregada doméstica, eu tinha os benefícios, mas hoje eu gosto mais de trabalhar como diarista pelo lado financeiro mesmo. Não tem os descontos do vínculo do emprego, mas eu sei que isso, futuramente, vai me causar problema para a aposentadoria”.

Conversa vai e conversa vem e o prato de Sirlene se esvaziou. Apressada, se despediu e partiu para a segunda jornada do dia, depois de receber seus 110 reais “da faxina”.

Tira o chinelo, limpa o pé. Bebe água, água pode beber. O relógio bate 14 horas.

Vassoura na mão, poeira sumindo do chão. Janta em prontidão, roupa passada, senão…

As horas pesam sobre os ombros. Assim como na ida, na volta uma hora e meia de estrada.

Seus olhos embotados de cimento e tráfego.

“Aí eu pego minhas duas conduções de novo, uma hora e meia e chego em casa. Vou fazer todo o meu serviço de lá, aí depois de todo o meu serviço, eu vou descansar um pouquinho porque eu mereço, para no outro dia eu começar toda a rotina de novo. É muito cansativo”, desabafa, suspirando em tom de pesar.

“Um dia, acabou a água quente lá na casa que eu trabalhava. Até hoje a patroa não deve saber que fui eu quem extravasei toda aquela água. Foi sem querer, mas quem disse que ela ia entender? Ela mandava a gente trabalhar até de uniforme: tudo branco. Um dia encafifou que minha bunda era grande e que eu ficava dando em cima dos moços da família dela quando eles iam lá. Me pôs para trabalhar com a parte de baixo azul”, ri Lucimara – mais conhecida como Déia – tentando se conformar com uma situação revoltante.

“Mas então, a água quente acabou lá em cima e o único lugar em que sobrou foi no banheiro que a gente usava. Você acredita que o genro da minha patroa se recusou a tomar banho lá porque era o banheiro das empregadas?”.

– Infelizmente eu acredito, Déia – respondi constrangida por ver em minha frente alguém que já foi muito julgada, menosprezada e humilhada. E Déia às vezes sorria, às vezes fechava a cara. Carregava em seus aconchegantes braços sua filha de um ano e cinco meses, chamada Lara, que cuidava com tanto afeto.

  “Ele foi na casa da cunhada da minha patroa se lavar. Eu achei uma situação tão ridícula: você se privar de tomar banho só porque o chuveiro está no banheiro das empregadas. Toma banho na água fria então! Como se a gente fosse passar alguma coisa, foi essa a sensação que eu tive. Eu e as outras. A gente sentiu como se fôssemos leprosos, quando antigamente tinha lepra e ninguém podia tomar banho”.

Com o coração apertado, meus olhos se encheram d’água.

Todo dia o Sol raiava e Déia se preparava para encarar mais uma jornada cansativa e que, provavelmente, lhe reservava momentos de tristeza.

Tira o chinelo, limpa o pé. Bebe água, água pode beber. O relógio bate 8 horas.

Vassoura na mão, poeira sumindo do chão. Almoço em prontidão, roupa passada, senão…

As horas pesam sobre os ombros. Só que, dessa vez, o caminho não era de uma hora e meia. Déia mora numa cidade pequena que, em 20 minutos, se atravessa de carro. A distância não era longa, mas o bairro, periférico.

E as histórias se repetem como um ciclo que, muito dificilmente, é rompido e extravasa suas bordas geométricas.

Fátima, como gosta de ser conhecida, talvez, com seus mais de 30 anos de trabalho, seja mais positiva por estar em contato com estudantes que não a “tratam mal” depois de tudo o que já viveu, mesmo que trabalhando todos os dias, manhã e tarde e, assim como na ida, na volta uma hora e meia de estrada.

Fátima mora em Agudos e as horas pesam sobre os seus ombros.

Já leu até aqui? Que tal apertar o play do vídeo abaixo e conhecer um pouquinho mais sobre a vida e a rotina da Fátima, mulher inspiradora que trabalha em repúblicas e, provavelmente, mata um leão por dia?

Reportagem: Flávia Gândara Simão

Produção multimídia: Maria Esther Castedo

Edição: Catherine Paixão

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