Ação do MPF contra a Rede Record por incitação a violência em programa policial corre na justiça há mais de um ano
Há dois anos, o programa Cidade Alerta, da Rede Record, transmitia ao vivo uma perseguição policial que terminou com a execução dos suspeitos por um agente da Polícia Militar. Dada a postura do apresentador Marcelo Rezende na exibição das imagens, o Intervozes – organização que trabalha na promoção do direito à comunicação no Brasil – acionou o Ministério Público Federal (MPF) alegando desrespeito ao princípio de presunção de inocência, violação dos direitos humanos e apologia à violência na exibição das imagens e no discurso de Rezende .
Durante a transmissão, Marcelo Rezende, apresentador do Cidade Alerta, usou diversas vezes os termos “bandidos” e “ladrões” para se referir aos envolvidos, chegando a pedir para o policial atirar no suspeito: “Atira, meu camarada, é bandido!”, afirmou o apresentador ao vivo.
O MPF, então, entrou com uma ação civil pública contra a Rede Record – que ainda corre na justiça – por incitar a violência, exigindo da emissora uma retratação, por dois dias úteis, no mesmo horário do programa. O caso de descumprimento levaria a Record a pagar 97 mil reais por dia. Em sua defesa, a emissora alegou que a transmissão ao vivo impediu a previsão do desfecho da ação e que a falta de nitidez das imagens impediu a verificação dos presentes na ação.
No entanto, esse caso não é uma exceção. Uma pesquisa de 2015 coordenada por Suzana Varjão, jornalista e gerente do Núcleo de Qualificação e Monitoramento de Mídia da ANDI – Comunicação e Direitos Humanos – para o guia “Violações de direitos na mídia brasileiras”, mostra que violações de direitos humanos como esta são frequentes.
A pesquisa é fruto de monitoração de um período de 30 dias, com 19 programas de TV e 9 de rádio, de 10 cidades brasileiras. No resultado, são identificadas violações de direitos e infrações ou desrespeito a leis e normas autorregulatórias em 1.928 narrativas veiculadas, categorizando 9 tipos de infrações. Dessas, 18,5% foram cometidas justamente pelo Cidade Alerta de São Paulo, o percentual mais alto entre os veículos analisados.
Veja no infográfico abaixo quais desrespeitos foram cometidos e passe o mouse sobre a imagem para saber mais sobre cada tipo de violação:
Alexandre Campello, jornalista e professor universitário, explica que essas violações estão presentes desde o início de programas deste gênero. O pesquisador atuou como repórter policial no Cidade Alerta de Belo Horizonte em 2003 e teve os telejornais policiais como objeto de estudo no mestrado. “Nos primeiros anos, logo após o surgimento desses telejornais policiais, não havia muita preocupação com os Direitos Humanos e tampouco com a presunção de inocência. Os ‘criminosos’ alvos das reportagens eram obrigados pelos policiais a mostrar o rosto e, muitas vezes, também colocados numa situação que não tinham como escapar das perguntas dos jornalistas”, afirma.
Campello aponta a existência de uma estrutura voltada a espetacularização e dramatização da violência. Ao ser questionado se esses programas adotam algum cuidado para não estimular comportamentos semelhantes no público, afirma considerar essa preocupação muito pequena. “Esses telejornais sobrevivem do sensacionalismo e de um certo grau de banalização da violência”, diz.
Parte do público do programa, entrevistada no centro da cidade de Bauru, está preocupado no modo como os assuntos são abordados e como a violência é retratada. “Apresentadores e repórteres como formadores de opinião estão influenciando de forma negativa a sociedade, principalmente a grande massa que assiste esses programas e não tem um conhecimento cultural preparado para filtrar todas as informações”, afirma o microempresário Airton Teodoro.
“Não é que as pessoas gostam de assistir aquilo lá, é que é chocante ver a tragédia todos os dias perto de casa”. Luís Simões, 66 anos, técnico agropecuário
“Não é uma coisa para passar na televisão. É totalmente sensacionalista, é para fisgar o telespectador”. Dafne Crespi, 24 anos, designer
“Eles têm um programa, eles ganham para isso, no Brasil tudo é voltado ao dinheiro. Tudo é voltado ao IBOPE, a televisão brasileira sobrevive disso”. Nilva Batista de Carvalho, 53 anos, funcionária pública.
O artista de rua Israel Williams, 19, concorda: “os programas tentam combater o crime, mas ao combater e ao estar mostrando e retratando na televisão, eles estão incentivando também a ser igual ou parecido, a ser criminoso, a praticar delitos”, afirma.
Para o músico independente Gerson Santos, 24, o problema é o horário em que esses programas sãos transmitidos, pois muitas crianças podem estar assistindo. Já para Davi Israel Felipe, 60, o horário dos programas é apropriado, pois “quanto mais depressa der a notícia, melhor”, diz. Ele acredita que os assuntos são bem explicados e, ao tomar conhecimento do caso de junho de 2015, mencionado no início desta reportagem, afirma que o controle sobre o conteúdo que vai ao ar é feito corretamente, porque, segundo ele, “bandido bom é bandido morto”.
O radialista Bruce Delluca de 26 anos, que assiste a esses programas quase todos os dias, vê que programas fazem a retratação do dia-a-dia de forma bastante transparente. Ainda assim, admite: “pelo horário, são transparentes até demais. Justamente pelo fato de ser um horário em que tem crianças assistindo”. A pesquisa de Varjão confirma o que o radialista falou: 61% das narrativas dos veículos policiais televisivos ocorrem no período da tarde, entre 14h e 17h59.
Classificação indicativa na televisão brasileira
A atribuição de classificação indicativa de obras audiovisuais é uma competência da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), vinculada ao Ministério da Justiça. Essa categorização é regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, que visa proteger essa parte da população da exposição a conteúdos potencialmente prejudiciais.
O Guia possui seis diferentes classificações, conforme mostra a tabela a seguir – passe o mouse na imagem para interagir:
Para Campello, programas policiais consideravam, sim, a classificação etária e o horário de veiculação, principalmente para não serem incomodados pelo Ministério da Justiça na hora da produção das reportagens. Isso, porém, não basta para se ter certeza da existência de uma programação livre de conteúdos prejudiciais para determinadas faixas de idade.
“Não é nenhuma garantia de que não teremos cenas fortes, casos pessoais e crimes passionais violentos nas edições desses telejornais”, afirma. “Até porque são esses elementos que atraem a atenção dos telespectadores desse tipo de produto telejornalístico”, complementa o jornalista. Ele ressalta ainda a subjetividade da classificação indicativa e baixo grau de fiscalização por parte dos órgãos governamentais.
Em agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou como inconstitucional uma regra que obrigava as emissoras de rádio e televisão a transmitir os programas em determinados horários baseados na classificação indicativa, entendendo-a como uma forma de censura prévia à programação.
As emissoras continuam obrigadas a exibir o selo de classificação, indicando a recomendação etária do conteúdo, mas apenas como medida informativa. Podem agora transmitir qualquer programa nos horários que desejarem.
Reportagem: Nathane Agostini
Produtor multimídia: Victor Dantas
Editor: Matheus Ferreira