Pelo menos 2,5 milhões de brasileiros acompanham páginas que incitam violência em redes sociais como Facebook e Instagram
Uma recente apuração do jornal britânico The Guardian, publicada no dia 24 de maio deste ano, revelou informações inéditas acerca das regras internas do Facebook em relação a conteúdos violentos. Em linhas gerais, as fontes ligadas ao Facebook contadas pelo jornal disseram que, por mais que haja um empenho, acompanhar todos os conteúdos publicados é tarefa praticamente impossível. Os moderadores alegam trabalhar sobrecarregados, tendo cerca de 10 segundos para tomar suas decisões. Um dos documentos obtidos pela reportagem revela que os moderadores revisam mais de 6,5 milhões de relatórios por semana.
A rede social abriga comentários como: “Se lascou feio esse vagabundo. Agora foi pra fila do inferno. Parabéns, guerreiro!”. O post do qual foi extraída a frase mostra um vídeo de tentativa de assalto a um policial à paisana. Postado dia 7 de março deste ano, já foi visualizado mais de 500 mil vezes. Nele, um assaltante armado é surpreendido com um disparo do policial, caindo no chão ainda vivo. “Coisa linda de se ver”, escreve outro usuário no mesmo post da página “Portal Admiradores da Rocam”.
Conteúdos de violência têm público cativo nas redes sociais. Algumas páginas contabilizam centenas de milhares de curtidores, caso de “Operações Especiais” (837 mil) e “Faca na Caveira”. A segunda possuía duas páginas homônimas, uma com 414 mil, tirada do ar durante o processo de apuração desta reportagem, e outra com 458 mil likes. A mesma já chegou a ser uma única página “oficial” com quase 2 milhões de seguidores (número maior que o da página oficial do clube de futebol Fluminense, por exemplo). “A página foi excluída arbitrariamente pelo Facebook”, escrevem sem se identificarem os administradores em um comentário na nova página criada para suprir a queda da primeira. Alegam ainda terem acionado a justiça para reverter a situação.
A “Faca na Caveira” também está presente no Instagram. A conta já possui quase 22 mil seguidores. Os conteúdos são os mais variados possíveis: vão desde memes envolvendo temas políticos até vídeos com conteúdos perturbadores. Páginas menores, mas com conteúdo semelhante, se espalham pelo Facebook. Muitas se destinam a elogiar o trabalho das diferentes polícias, como a “Admiradores da Rota”. Contabilizando pouco mais de 97 mil seguidores, ela se dedica “àqueles que demonstram admiração para com o trabalho da ROTA” e afirma não ter nenhum vínculo com a instituição.
Nem todos os conteúdos violentos necessariamente violam os termos de uso da maior rede social do planeta, com quase 2 bilhões de usuários. Monika Bickert, chefe de gerenciamento de políticas globais do Facebook, disse ao The Guardian que é difícil chegar a um consenso sobre o quê se devia permitir ou proibir. “Nós temos uma comunidade global muito diversa e as pessoas vão ter idéias muito diferentes sobre o que se pode compartilhar. Sempre haverá algumas áreas cinzentas. Por exemplo, a linha entre sátira e humor e conteúdo impróprio às vezes é muito cinza. É muito difícil decidir se algumas coisas pertencem ao site ou não”.
Os “Padrões da Comunidade” do Facebook de fato preveem que conteúdos de violência poderão ser postados por alguns usuários já que, segundo o documento, “em muitas ocasiões, as pessoas compartilham esse tipo de conteúdo para condená-lo ou para conscientizar os outros”. Sendo assim, a moderação promete remover tais conteúdos quando julgar que foram compartilhados por “prazer sádico” ou para “celebrar ou glorificar a violência”.
Já na Declaração de Direitos e Responsabilidades, a palavra violência aparece apenas duas vezes. Dessa vez, de maneira mais enfática. No item que trata de Segurança, a moderação obriga o usuário a concordar que “não publicará conteúdos que contenham discurso de ódio, sejam ameaçadores ou pornográficos; incitem violência; ou contenham nudez ou violência gratuita ou gráfica”.
Há três anos, uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) por intermédio do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (LABIC) mapeou as páginas cujo interesse está ligado à ação das Polícias Militares espalhadas pelo país. O estudo foi dirigido por Fábio Malini, professor do Departamento de Comunicação Social da UFES e pesquisador sobre ciências de dados, redes sociais e comunicação política. Em entrevista à revista Carta Capital, Malini afirmou que a pesquisa possibilitou traçar um panorama do que considera uma “ecologia midiática da repressão”.
Ao acompanhar as mais diversas fanpages com essa temática, a pesquisa pôde concluir que a violência “é um hit” para muitos usuários do Facebook. “É interessante notar que muitas dessas páginas articulam um discurso de ‘Ode à Repressão’ com um outro pensamento: o religioso, cujo Deus perdoa os justiceiros”, disse Malini. “Isso se explica porque ambos são pensamentos em que o dogma, a obediência, constituem valores amplamente difundidos”, acrescentou o professor.
Além dos conteúdos propriamente ditos, chama a atenção os dizeres em comentários e em textos que acompanham vídeos e imagens postados nestas páginas. De maneira geral, as pessoas aparentam certo regozijo ao ver outras em situação degradante e gratidão ao trabalho dos policiais. Em entrevista à BBC, o psicanalista Contardo Calligaris, especialista em psicologia clínica e cuja coluna no jornal Folha de São Paulo trata de cultura e modernidade, refletiu sobre este tipo de comportamento nas redes sociais. “Na internet, é possível expressar o seu ódio, dar a ele uma dimensão pública, receber aplausos de seus amigos e seguidores e se sentir, de alguma forma, validado”.
Outro ponto a ser considerado é a sensação de anonimato admitida por muitos internautas, como alerta a advogada especialista em Direito Digital, Caroline Teófilo. “Acredito que isso ainda aconteça muito em razão da percepção que as pessoas têm de que não serão descobertas atrás de uma tela”, avalia. A especialista também comenta sobre a facilidade que pessoas com pensamentos comuns têm de se organizar pela internet. “É muito mais fácil hoje ter um grupo de pessoas que não odeiam algo. Quando as pessoas se sentem amparadas, elas se unem, mesmo que seja nesta vivência ruim”, comenta.
Caroline Teófilo sobre a sensação de anonimato na web |
Inquisição digital
Um dos casos mais emblemáticos de espetacularização da violência no Facebook aconteceu em 2014. Na ocasião, um post de uma página – que já não está mais no ar – chamada “Guarujá Informa” dizia que uma mulher estaria sequestrando crianças pela cidade para rituais de magia negra. Mais tarde, uma imagem de um suposto retrato falado da responsável pelos sequestros circulava entre os usuários. Totalmente desconectado dos supostos sequestros de crianças, o retrato falado, na verdade, tinha sido feito dois anos antes em função de uma investigação da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Até aquele momento, a Polícia Civil do Guarujá não havia registrado nenhuma queixa semelhante ao alerta da página “Guarujá Alerta”. No dia 3 de maio daquele ano, algumas pessoas associaram a dona de casa Fabiane Maria de Jesus à imagem da suposta sequestradora. Inocente, Fabiane, mãe de duas crianças, morreu após ser linchada por um grupo de moradores do seu bairro.
A tragédia evidenciou o poder de alcance das redes sociais. Além disso, revelou que o comportamento violento das pessoas pode sair do campo das palavras contidas em comentários para materializar-se na vida fora das redes. O assunto foi objeto de debate no VII Congresso Brasileiro de Direito da Sociedade da Informação, realizado em setembro de 2014.
O artigo intitulado “Violência Simbólica nas Redes Sociais: Incitação à Violência Coletiva (Linchamento)”, de autoria de Marco Aurélio Moura dos Santos e Renata Silva Cunha, revela que “a mídia digital possibilita um discurso de incitação à violência gerador de uma ideologia de destruição a grupos e formadora de estereótipos e estigmas, sendo ao mesmo tempo formadora, propagadora e objeto final da violência”.
Perguntada se a política de uso do Facebook é suficiente para evitar que tais conteúdos de violência estejam na rede social, Caroline Teófilo diz que não. Ela acredita ser necessário que provedores divulgassem materiais com orientações quanto a um uso ético e aceitável dos internautas nas redes sociais. Porém, as mídias sociais não devem se ausentar do debate. “É importante que os termos de uso revelem o que a rede social considera um comportamento aceitável e o que recriminam, pois é também com base nisso que se torna possível solicitar a remoção de páginas e conteúdos inadequados”, explica Teófilo.
Legislação das Redes
Outras duas redes sociais muito populares estão sob responsabilidade de Zuckerberg: Whatsapp e Instagram. Nos mais de 52 mil caracteres do Termos de Serviço do aplicativo de mensagens, a palavra violência não aparece. O único trecho que trata mais especificamente de conteúdos compartilhados entre seus usuários é nomeado de “Uso Lícito e Aceitável”. São listadas seis obrigações para usar o serviço. Destas, a mais correlata à temática da violência obriga o usuário a não utilizar o aplicativo “de forma ilícita, obscena, difamatória, ameaçadora, intimidadora, assediante, odiosa, ofensiva em termos raciais ou étnicos, ou que instigue ou encoraje condutas que sejam ilícitas ou inadequadas, inclusive a incitação a crimes violentos”.
A situação é semelhante no aplicativo de fotos e vídeos. Os Termos de Uso do Instagram apresentam a palavra violência uma única vez. “Você não pode publicar fotos ou outros tipos de conteúdo por meio do Serviço que sugiram violência, nudez, nudez parcial, discriminação, atos ilegais, transgressões, ódio, pornografia ou sexo”, diz uma das cláusulas.
Sob o guarda-chuva do Google, o YouTube é outra rede social com um número cada vez maior de usuários. No Brasil, o maior canal da rede de vídeos, do comediante Whindersson Nunes, ultrapassou neste ano a marca de 20 milhões de inscritos (número superior à população do estado do Rio de Janeiro), 7 milhões a mais que o segundo colocado, Porta dos Fundos. Ao contrário das redes anteriores, o YouTube possui uma preocupação maior quando o assunto é violência. Sua página de “Suporte” traz instruções objetivas a respeito do tema.
Tal como o Facebook, o YouTube reconhece que conteúdos com cenas violentas serão postadas invariavelmente. Por isso, determina como elas devem ser disponibilizadas. “Não é correto publicar conteúdos violentos ou sangrentos cujo objetivo principal esteja relacionado com choque, sensacionalismo ou falta de respeito. Se um vídeo for particularmente explícito ou perturbador, deverá ser equilibrado com contexto e informações adicionais” diz o texto da seção Conteúdo violento ou explícito.
O texto exemplifica tal situação. “Por exemplo, se um cidadão jornalista captar filmagens de manifestantes a serem espancados e carregar o vídeo com informações relevantes (data, local, contexto, etc.) é provável que seja permitido. Porém, publicar a mesma filmagem sem informação contextual ou educacional pode ser considerado violência gratuita e o vídeo poderá ser removido do site”, esclarece o YouTube.
Em última instância, cabe a todos os usuários de redes sociais o papel de fiscalizadores. Contudo, muitos abdicam dessa posição. A sensação de impunidade por parte dos divulgadores e a descrença por parte dos denunciantes de que suas queixas serão de fato solucionadas colaboram para a manutenção de áreas obscuras nas redes sociais. A pesquisadora Caroline Teófilo indicou de que forma conteúdos desse cunho podem ser denunciados:
Caroline Teófilo sobre denunciar conteúdo inapropriado |
Reportagem: João Pedro Pavanin
Produção multimídia: Victor Dantas
Edição: Matheus Ferreira