Acessibilidade nos games digitais enfrenta uma série de desafios

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Depois de alguns minutos selecionando características, meu personagem enfim está pronto para entrar no mundo de Valianor. Seu nome é Glianor, humano, mede 1,86m, pesa 90kg e pertence a região de Bri. O primeiro passo consiste em ler o pergaminho na Sala de Observação. O texto cinza, em letras miúdas, descreve o ambiente em volta e sugere comandos para prosseguir na aventura.

“Você está numa sala ampla e bem iluminada. O chão é de mármore, e as paredes são pintadas de branco. A iluminação vem das amplas janelas colocadas nas paredes leste e norte, e de tochas colocadas nos quatro cantos da sala. Bem no centro da sala, sobre um pedestal, está um estranho pergaminho. Você sente vontade de observá-lo com mais atenção; sente inclusive que seria uma boa idéia fazer isso.” diz o texto.

Outra mensagem, agora em verde, surpreende anunciando: “Gritos ecoam pelo ar. Será uma nova aventura?”. Decido ler o pergaminho. Ao digitar Look Pergaminho, seguido do Enter, tenho acesso ao conteúdo da escritura com instruções sobre o game. O computador indica a saída na direção oeste. Utilizando o comando W, sigo para a próxima sala.

Mud Valianor oferece a opção “Modo Aural” que facilita a utilização de tecnologias assistivas para cegos.

A experiência descrita acima corresponde ao game MUD (Multi-User Dungeon Game) Valianor. O RPG, inspirado na saga Senhor dos Anéis, de J. R Tolkien, representa um exemplo de jogo acessível para deficientes visuais e auditivos.

Com mais de 15 anos de existência, Valianor é um jogo multi-player inteiramente textual. Sua principal característica consiste na descrição profunda de cenários, ações e diálogos. Essas qualidades são essenciais para o player se contextualizar no jogo.

Com a ajuda de tecnologias assistivas (TA’s) é possível converter os elementos textuais em áudios. Assim, o jogador deficiente visual consegue entender os elementos dos cenários do game. Já o uso de legendas ocultas, que caracterizam diálogos, como “falou suavemente” e “gritou com raiva”, oferecem ao deficiente auditivo noção acerca das emoções dos personagens do jogo.

Embora MUD Valianor configure apenas uma iniciativa de games pensados a partir da acessibilidade, a inclusão de pessoas com deficiências e limitações nos jogos digitais enfrenta uma série de desafios.

Ofertas limitadas para cegos

Leonardo Duarte, 27, é deficiente visual e exerce a profissão de massoterapeuta. Ele gosta de ocupar suas horas vagas jogando games digitais. O player diz já ter investido algumas horas em Valianor, mas hoje concentra seu tempo para jogar Swamp, um audiogame em primeira pessoa sobre apocalipse zumbi.

Os audiogames são jogos estruturados a partir de áudio 3D, que transmitem ao jogador a sensação de profundidade e movimento. Assim como jogos textuais, representam produtos acessíveis para cegos, embora não sejam jogáveis para deficientes auditivos.

Abaixo, uma amostra do audiogame Pigeon Panic, disponível em Audiogames Brasil.

Leonardo afirma, no entanto, ser difícil encontrar variedade de jogos acessíveis a deficientes visuais. Segundo ele, grandes títulos da indústria não oferecem acessibilidade e quase não existem opções de jogos para consoles como Playstation e XBOX. O resultado é a limitação do jogador a games produzidos especificamente para pessoas com deficiência. Leonardo ressalta que, dessa forma, “os jogos tornam-se isolados e cegos jogam somente com outros cegos”.

Para o pesquisador em acessibilidade nos games digitais, Jean Cheiran, garantir formas de interações alternativas para deficientes visuais jogarem títulos populares representa uma das principais dificuldades de produzir jogos mais acessíveis. Isso acontece porque a maior parte do feedback para o jogador provém dos gráficos do jogo. Consequentemente, games produzidos especificamente para cegos acabam não agradando videntes e deficientes auditivos.

Cheiran ressalta que atualmente os cegos são o público mais excluído dos games digitais. De acordo com o pesquisador, embora grandes empresas desenvolvedoras de games como Valve, Blizzard e Riot tenham investido em recursos de acessibilidade para outros grupos de pessoas com deficiência nos últimos anos, a inclusão de deficientes visuais ainda é tímida.

Diferentes Demandas

Essa dificuldade na elaboração de games inclusivos para deficientes visuais revela outro desafio: o desenvolvimento de jogos que atendam diferentes necessidades de diversos grupos de pessoas.

O guia Able Gamers Includification, publicado em 2012 pela The Able Gamers Fundation, estabelece mais de 40 recomendações de acessibilidade nos games. O documento aponta necessidades motoras, visuais, auditivas e cognitivas de jogadores e apresenta desde soluções simples, até ferramentas complexas para inclusão de pessoas com limitações desses tipos.

Para serem mais inclusivos, os jogos precisam possuir determinadas características. (Infográfico: Nathalie Portela)

A opção de alterar o comando de cada botão ou tecla do suporte do game representa uma medida simples que possibilita pessoas com dificuldades motoras se adequarem melhor ao jogo. O relatório destaca que a acessibilidade deve contemplar os diferentes graus e espécies de limitação. Por exemplo, a especificação escrita de cores para daltônicos e a customização das fontes do texto para pessoas com visão prejudicada. Ambas medidas estão ligadas a limitações visuais, mas atendem a necessidades distintas.

Segundo Mário Lapin, diretor de Impacto Social dos Games da Associação Brasileira de Games, garantir a acessibilidade universal nos jogos digitais é uma tarefa muito complexa e ainda configura uma realidade distante. Ele argumenta que, para desenvolver produtos desse tipo, seriam necessários designs muito específicos e dificilmente esses designs seriam compatíveis com todas as espécies de games existentes no mercado. No entanto, o empresário e desenvolvedor acredita que a indústria deve se esforçar para garantir ao menos recursos básicos de acessibilidade em seus produtos.

O problema multiplayer

A inclusão de pessoas com deficiência esbarra em ainda mais obstáculos quando o assunto é games online multiplayer. Além das dificuldades de adequar as diferentes necessidades dos jogadores ao design do game, é necessário garantir a competitividade entre player com diferentes graus e tipos de deficiência.

Danilo Balzaque, desenvolvedor de games na empresa Big Green Pillow, é deficiente físico e joga games apenas com a mão esquerda. Ele diz que existem fortes discussões no universo dos jogos digitais a respeito do uso de tecnologias assistivas em multi-players.

Mario Kart 8 oferece opções para customizar teclas/botões de acordo com a preferência do jogador. (Foto: Divulgação/Nintendo)

Balzaque cita por exemplo o uso da direção automática na franquia Mario Kart. Segundo o desenvolvedor, a opção está disponível para todos os players, inclusive àqueles que não sofrem de nenhuma limitação motora. Assim, apesar do recurso garantir condições de jogo para pessoas com deficiência, existe a discussão acerca da utilização de ferramentas acessibilidade para ganhar vantagem sobre outros jogadores.

Por outro lado, Balzaque cita que, pelo menos no Mario Kart, tecnologias assistivas não são suficientes para garantir um bom desempenho do jogador. “Esse auxílio que dá para o jogador, não é tão eficiente assim. Se você jogar e souber o que está fazendo, muito provavelmente, será mais eficiente do que apenas deixar o jogo dirigir o carro para você”. completa.

Diretrizes x Design

Atualmente, ainda não existem guias oficiais de recomendações para acessibilidade em games digitais no Brasil. A pesquisadora da Universidade Federal do Fluminense, Gleice Ramos, no entanto, defende a necessidade de criar diretrizes nacionais inspiradas no Able Gamers Includification. Ela afirma que “a medida ampliaria o conhecimento das empresas nacionais sobre a questão, facilitando a criação de jogos mais acessíveis”. Gleice também cita como exemplo o Modelo de Acessibilidade em Governo Eletrônico (eMAG), que dispõe sobre regras de acessibilidade para sites de conteúdos digitais.

“Não basta as empresas conhecerem essas diretrizes. Elas precisam pensar em maneiras para aplicá-las no design de seus jogos e isso significa custos adicionais e mais esforço de design” MARIO LAPIN

Lapin, por sua vez, reconhece a importância e apoia a iniciativa de estabelecer diretrizes de acessibilidade. Porém, ele ressalta a existência de obstáculos econômicos e tecnológicos. Segundo o representante da Abragames, seria muito difícil economicamente para estúdios brasileiros que trabalham com orçamentos pequenos cumprirem integralmente as recomendações mínimas de acessibilidade. Portanto, não seria viável obrigar desenvolvedoras a seguirem estritamente essas diretrizes.

Por outro lado, ele também destaca a necessidade das empresas pensarem em como adaptar as recomendações em seus projetos. Afinal, desenvolver games representa uma arte e, ao contrário do caso de sites de conteúdo digital, é complicado impor receitas pré-estabelecidas para tornar os jogos totalmente acessíveis. “Não basta as empresas conhecerem essas diretrizes. Elas precisam pensar em maneiras para aplicá-las no design de seus jogos e isso significa custos adicionais e mais esforço de design” completa Lapin.

Em frente

Apesar do crescimento gradual do cenário de jogos digitais brasileiro e a falta de esforços visíveis de apoio à criação de games acessíveis, para Jean Cheiran, “o trabalho de desenvolvedores independentes de jogos e de grupos de pesquisa em universidades contribuem bastante na melhora desse cenário.”

O pesquisador aponta que a saída para melhorar acessibilidade nos jogos digitais está no estudo e desenvolvimento de produtos e, também, no debate sobre o tema. Ele defende a criação de editais específicos para a produção de jogos acessíveis. Segundo o estudioso, medidas como essa “incentivam o desenvolvimento da área, permitindo a criação de novas técnicas e tecnologias para enfrentar os desafios de acessibilidade”. Nesse sentido, ele destaca a atuação de grupos de pesquisa da UNIPAMPA na divulgação de informações sobre o tema.

Outro passo importante, destacado por Cheiran, consiste em incluir tópicos sobre acessibilidade em games nos cursos técnicos e superiores de jogos digitais no país. Ele argumenta que isso poderia contribuir para a conscientização e capacitação dos profissionais da área.

Já Gleice Ramos enfatiza a necessidade do investimento na pesquisa científica sobre acessibilidade. “Com mais pesquisas o conhecimento sobre como melhorar a acessibilidade dos jogos seria ampliado, facilitando assim o desenvolvimento de jogos acessíveis” afirma.

Repórter: Victor Pinheiro

Produtora Multimídia: Nathalie Portela

Editor: Yuri Ferreira

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