Das páginas aos consoles: a arte de contar histórias

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Não é de agora que a literatura vem influenciando o mundo dos games. Desde a década de 1980, algumas obras literárias têm saído do papel para ganhar espaço nos consoles. A exemplo disso é possível citar clássicos como O Guia do Mochileiro das Galáxias (1984), O Médico e Monstro (1988), Duna (1992) e A Divina Comédia (Dante’s Inferno, 2010). No entanto, há variações no modo como essas histórias foram adaptadas. No caso do Guia do Mochileiro das Galáxias, produzido pela empresa Infocom, o game tinha fortes relações com a obra, já que o seu autor, Douglas Adams, participou do desenvolvimento da história, tornando-a bem parecida com a do livro.

O mesmo não pode ser dito sobre a adaptação de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, umas das obras favoritas da Doutoranda em Mídias e Tecnologia, Janaina Azevedo. O livro deu origem ao game Dante’s Inferno, mas isso não significa que foi totalmente fiel. “Há muitas alterações feitas, inclusive estéticas. O imagético encontrado no game é mais agressivo que o do livro. Não é algo tão clássico”, comenta.

Outro rumo das adaptações são as telas de cinema. Nos últimos anos, jogos como Terror em Silent Hill, Príncipe da Pérsia, Warcraft, Assassin’s Creed e Resident Evil foram alguns dos games que viraram filmes. No caso da série de games de terror Resident Evil, lançada em 1996, o roteiro cinematográfico não seguiu por completo o dos jogos, entretanto foram produzidos no total seis filmes dessa franquia entre 2002 e 2016.

Graduado em Tecnologia em Jogos Digitais, Victor Sancassani conta que não é apenas a literatura que influencia a produção narrativa dos games, o inverso também é verdadeiro. “Além de jogos baseados em livros, como The Witcher, baseado nos contos do polonês Andrezj Sapkowski, temos os livros originados a partir de jogos, como God of War, Halo e StarCraft, tanto para explicar acontecimentos e preencher lacunas dos próprios jogos quanto para contar novas narrativas que se desdobram a partir do universo do game”.

O marco inicial do elemento narrativo no games vem a partir da criação de Donkey Kong, pela Nintendo em 1981. O jogo faz uma referência ao filme King Kong, no qual um gorila ameaça a vida da “mocinha” (Pauline) enquanto o herói (Jumpman) tenta salvá-la. O responsável pelo game, Shigeru Miyamoto, desenvolveu uma história simples para justificar o objetivo do jogo. Em Donkey Kong notava-se a elaboração de personagens, cujas características os aproximavam mais dos humanos. A aparência e personalidade se tornam marcantes.

A narrativa é o ponto fundamental no desenvolvimento de games, de acordo com o professor de Letras, Wagner Santos Araújo. “A questão é que para muitos desenvolvedores e até mesmo estudantes dessa área, o que sempre prevaleceu como importante foi a composição gráfica, a sonoplastia e a própria experiência construída pelo gameplay. Todavia, para os aficionados por histórias, personagens complexos, só isso não basta”. O componente narrativo tanto é importante que há uma categoria para ele no The Game Awards. A cerimônia de premiação ocorre desde 2014 e reconhece os melhores jogos de videogame e computador. Já foram premiados na categoria “Melhor Narrativa” os games: Valiant Hearts: The Great War (2014), Her Story (2015) e Uncharted 4: A Thief’s End (2016).

O roteiro – enquanto narrativa consistente e atrelada a composição de personagens e cenário – passou a ganhar mais atenção. Não basta apenas adaptar um texto literário ou uma obra cinematográfica para o universo dos games, é preciso também compreender como esse tipo de linguagem se encaixa nos jogos, possibilitando além de releitura uma imersão. “Um jogo que privilegia apenas o gráfico e não conta uma história para o jogador é fadado ao esquecimento. Hoje o jogador quer mais que jogabilidade, ele quer participar se envolvendo com as personagens”, explica Araújo.

Além da narrativa, games possuem outros elementos fundamentais. No livro The Art of Game Design, do autor Jesse Schell, uma referência sobre o assunto, é definida a tétrade elementar dos jogos. Ela é composta pela mecânica (os procedimentos e regras do game), estética (a aparência, os gráficos, sons), tecnologia (os materiais usados) e, por fim, a narrativa (a história e personagens do game). Apesar da preferência que cada jogador possa ter, Schell lembra em seu livro que não há um elemento que se sobreponha aos outros, ou seja, todos devem ser levados em consideração.

As quatro características dentro da Tétrade são necessárias para que qualquer tipo de game faça sentido. (Infográfico: Patrícia Konda)


O papel de um roteiro

Os elementos mais importantes na composição de um roteiro para games são: um bom argumento, personagens que transcendam, noção de estereótipos, personagens bem construídas e clareza no gênero do game. “O roteiro deve privilegiar a arte, ater-se para a lógica da narrativa – começo, meio e fins – e como será a experiência do jogador”, conta Araújo. Para ele o gameplay precisa ser bem descrito no roteiro para evitar a aplicação de mecânicas de jogos discordantes ao gênero do jogo e personagens.

Se por acaso um roteiro é mal elaborado, ele pouco contribui para desenvolvimento pleno da experiência entre jogador-personagem e universo construído. Na concepção de Araújo, o que sai privilegiado com isso é a jogabilidade do game. Para ele “as personagens precisam ser redondas ou rasas. Elas devem agir como heróis ou não da aventura do jogo, ou então serem rasas, quando os aspectos mais profundos de sua composição não são tão importantes, mas ainda assim decisivos para o cumprir das missões”. Outro ponto levantado por Araújo é sobre a noção de tempo e espaço. É necessário coesão e coerência para justificar a razão da existência de cada elemento no universo do jogo.

A experiência do jogador também depende do roteiro, explica o editor-chefe do blog Fábrica de Jogos, Fabiano Naspolini de Oliveira. “ Um roteiro mal elaborado pode levar a alguns problemas. Ele transforma um jogador em espectador. Deve-se lembrar que a interação é o fator fundamental de um jogo. Temos jogos que exageram nas cinemáticas e textos, e assim acabam perdendo a experiência fundamental de um game que é interagir e ser agente construtor da narrativa”.

  A jornada do herói pode ser dividida entre 11 fases cíclicas. (Infográfico: Patrícia Konda)

Para o editor-chefe, roteiros são necessários para jogos que prezam por uma narrativa mais elaborada, principalmente aqueles com não linearidade nas histórias. Se a narrativa está ali apenas como uma temática, então ele não a vê como uma necessidade. Um exemplo é o caso de Space Invaders. No game alienígenas invadem a Terra e o jogador deve protegê-la com o seu exército apenas. Isso basta para ter entendimento e interação. “Agora, se você deseja gerar mais imersão narrativa, o roteiro será necessário”, complementa.

O debate sobre a importância das histórias nos jogos ainda divide jogadores e pesquisadores desse tema. Para alguns, a mecânica é mais importante que a narrativa, enquanto que para outros a narrativa merece mais destaque. Mestre em Linguística Aplicada, João Reynaldo Pires Junior acredita que nem todo jogo tem a narrativa como detalhe essencial. “Há jogos de videogame sem narrativa, ou cuja história é apenas um detalhe, uma espécie de pano de fundo para a experiência imersiva. Há formas de jogar também em que os jogadores decidem priorizar a ação e desprezam as personagens e os cenários”.

Quanto a imersão, deve-se levar em conta que nem sempre esta se dá pelo viés narrativo, como explica Sancassani. “Seria difícil dizer que uma pessoa que joga Candy Crush Saga está procurando uma imersão narrativa. Jogos com um enfoque narrativo devem ter muito cuidado na elaboração de um roteiro, principalmente no que diz respeito às narrativas não-lineares, como Life is Strange, The Walking Dead e Until Dawn”. Para ele, esses jogos, mesmo com uma maior capacidade imersiva, apresentam um número maior de lacunas a serem preenchidas pelo jogador.

Livros e games: experiências imersivas diferentes

Obras literárias apresentam personagens com os quais o leitor pode se identificar e até mesmo sentir empatia. É através das páginas dos livros que o leitor mergulha em um mundo diferente e acompanha a jornada de seus personagens. O mesmo é verificado no universo dos games. A questão é se a experiência vivida por leitor e jogador pode ser considerada a mesma. Seria maior a imersão em um game?

Para Victor Sancassani, games e livros não podem oferecer a mesma profundidade. “Existem elementos coincidentes, mas também elementos diferentes que são explorados. Embora um jogo, por exemplo, possa envolver música, efeitos sonoros, coordenação motora e reações a estímulos visuais e que um livro também possa conter uma diversidade de estímulos, a forma com que esses estímulos são recebidos é diferente”, explica. Victor acredita numa mútua influência e o que se presencia hoje é na verdade a criação de jogos com mais elementos literários, que, no final, ainda seriam experiências diferentes em espaços distintos.

Já Fabiano acredita que os games podem oferecer mais profundidade e por um motivo: ausência de passividade. “Você é o agente que gera a transformação no game, faz as ações, vibra quando vence, sente-se triste ou irritado quando derrotado. O envolvimento é muito maior. E quando se trata de jogos com narrativas não lineares, que eu decido o caminho que quero seguir e não sei o que me espera depois, isso dá mais profundidade ainda”, argumenta.

Não foram apenas os games que se transformaram, seja no uso de narrativas, seja nas tecnologias. A postura dos jogadores também mudou, como comenta o professor Araújo. “Hoje ele se comporta de maneira mais crítica, não querendo apenas compreender a narrativa”. Ao mesmo tempo é necessário observar que há uma grande mobilização na indústria de games para produzir histórias tão expressivas como a que as pessoas estão acostumadas nos livros e filmes, completa o linguista João Pires.

O universo dos games é uma arte assim como a literatura na visão de Araújo. “Não podemos dizer que fazem parte do mesmo processo de criação e que evidenciam a mesma experiência. Literatura e games dialogam entre si, pois podemos realizar a leitura de um romance e viver a experiência de estar presente naquele universo descrito, da mesma forma que ao jogarmos interagimos de forma imersiva e performática”. A literatura tem a capacidade de proporcionar afeição por um personagem da mesma forma que um jogo, segundo o professor. Para ele, games ainda não são vistos como uma nova literatura, mas ninguém pode negar que “os games estão muito próximos disso, já que lidam com sensações, narrativa, vida, morte, amor, lealdade e outros temas universais”.

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Repórter: Luana Brigo

Produtora Multimídia: Patrícia Konda

Editor: Jhony Borges

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