Do Brasil colonial para o mundo: como a cachaça influencia o país

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Também conhecida como caninha, mé, branquinha, pinga ou cana, a cachaça é uma das bebidas alcoólicas mais conhecidas e consumidas no Brasil, tornando-se ainda mais famosa com a invenção da caipirinha. O produto teve origem no Brasil colonial e além de ter um grande potencial de mercado e uma enorme relevância econômica, tem uma conexão extremamente importante com a realidade brasileira.

A história da cachaça confunde-se com a do Brasil em vários níveis e talvez por isso seu consumo e tradição é motivo de estudo por diversas áreas do conhecimento. Isso porque seu estabelecimento durante o Brasil Colônia rende repercussões sociais até hoje e discussões que vão do debate político-econômico até as que pautam preconceito e marginalização da bebida tipicamente brasileira.

Quando cachaça e Brasil se confundem

Embora seja reconhecida como uma bebida de origem brasileira, há registros que apontam uma produção portuguesa nas ilhas do Atlântico onde a cana de açúcar já era cultivada, como na Ilha de Madeira. O que se tem certeza é que o Brasil foi o território em que o produto começou a ser produzido em escala e passou a ser parte importante dos processos econômicos e culturais.

Em uma das versões, a primeira produção no Brasil teria se dado em Pernambuco, quando após a fervura do caldo de cana, um escravo deixou armazenado um líquido denominado de “cagaço”. Outros estudos apontam para a versão de que o produto teve sua origem por volta de 1532 na cidade de São Vicente. Desse modo, o surgimento da cachaça teria ligação direta com o dos engenhos de açúcar no Brasil. Nessa última, a destilação da cachaça foi criação dos portugueses, que haviam aprendido o processo com os árabes e resolveram aplicá-lo nos engenhos de cana de açúcar.

Engenho de Açúcar, 1816 Crédito: Henry Koster (Wikimedia Commons)

No início, a cachaça era unicamente destinada aos escravos, já que era considerada uma bebida de pouca qualidade. Os senhores de engenho e os homens livres da época preferiam apreciar as de origem europeia, com destaque para a bagaceira e o vinho do porto. Mas com o passar do tempo e maior desenvolvimento da economia concentrada na produção e exportação de cana de açúcar, o produto começou a ser mais valorizado e até comercializado.

Passou a ser exportado para países da Europa e da África e até a ser utilizado como moeda de troca para a compra de escravos. Um dos episódios mais relevantes para a história da bebida, diz respeito ao momento em que o uso econômico da cachaça como moeda de troca e como produto de exportação tornou-se tão relevante que passou a representar uma ameaça para as táticas econômicas de Portugal.

Preocupados com a perda de mercado da bagaceira da uva, e com o enriquecimento de nações inimigas, como a Holanda, Portugal instituiu em um imposto especial sobre a produção da pinga, atitude que em 1660 conduziu ao episódio conhecido como Revolta da Cachaça, uma reação dos envolvidos com o produto contra as resoluções da Coroa.

O sommelier de cachaças e jornalista gastronômico, Elvis Campello de Almeida, explica que durante o período de independência do Brasil em relação a Portugal, a cachaça virou símbolo de resistência e “brasilidade”. “As missas durante a Revolução de Pernambuco, por exemplo, não eram celebradas com vinho, pois era um símbolo português, então, celebravam a missa católica com a bebida brasileira.”, conta.

Com o passar do tempo, o produto continuou sendo um dos símbolos nacionais mais reconhecidos mundialmente. Sendo importante até para movimentos artísticos como o Modernista, iniciado com a Semana de Arte Moderna em 1922. “Tarsila do Amaral promovia almoços na França onde servia feijoada e caipirinha, promovendo a cultura brasileira. A cachaça era embarcada identificada como produto de beleza para passar nos aeroportos.  Outro articulador do movimento, Mário de Andrade, adepto da bebida, lhe dedicou um estudo chamado ‘Os Eufemismos da Cachaça’.”, conta Almeida.

Movimentação da economia e os tipos de produção

Embora os processos de produção da cachaça mantêm alguns princípios semelhantes sob os quais foram descobertos, os processos tecnológicos influenciaram em diversos aspectos e modificaram a maneira como ela é feita. Nos tempos em que surgiu, o produto não contava com equipamentos de ponta para a destilação, por exemplo, o que hoje é comum na produção de qualquer bebida destilada. Além disso, o controle da qualidade da produção em todas as suas fases fez com que ficasse mais puro.

Confira abaixo um fluxograma das etapas do processo.

 

Segundo o Sebrae, após a Expocachaça de 2014, a cachaça é a segunda bebida alcoólica mais consumida no Brasil, ficando atrás apenas da cerveja. São cerca de 1,4 bilhões de litros de cachaça por ano produzidos no país. Destes, 70% são feitos de maneira industrial, enquanto os outros 30% são produzidos em alambiques, ou de modo artesanal. Sua produção gera em torno de 600 mil empregos diretos e indiretos.

Almeida conta que são cerca de 40 mil produtores, algo em torno de 4 mil marcas, sendo que as microempresas representam quase a totalidade deste campo de produção. Uma nota divulgada pelo site Alambique da Cachaça, relata que o consumo de bebidas no Brasil supera populações que possuem tradição no consumo de destilados, como os húngaros e os poloneses. Os brasileiros consomem cerca de 11 mil litros de cachaça por ano, contra algo entre 9 e 10 litros dos europeus.

Apesar dos altos números relativos à produção por meios industriais, o doutor em Ciência dos Alimentos, João Bosco Faria, afirma que as principais técnicas e receitas de produção da bebida ainda se baseiam em tradições familiares e culturais, o que pode comprometer a qualidade. 

Ele completa afirmando que “na maioria das vezes [ocorre a produção] sem um embasamento técnico-científico capaz de garantir um efetivo controle de qualidade, como também o estabelecimento de padrões de qualidade compatíveis com os observados nas bebidas destiladas, reconhecidas internacionalmente”. É nesse sentido que surge, numa das unidades da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Qualidade da Cachaça, onde Faria é coordenador.

O centro tem a finalidade de realizar pesquisas visando a melhoria das características físico-químicas e sensoriais da cachaça, seu controle de qualidade e a implantação de metodologias capazes de garantir os padrões desejados. Além de promover a interação das atividades de ensino e pesquisa desenvolvidas com o setor produtivo, envolvendo pequenos, médios e grandes produtores de cachaça com vistas a melhor qualificação dos produtores interessados

Almeida também menciona que o Brasil exporta hoje apenas 1% da sua produção, o que corresponde a uma movimentação de cerca de 15 milhões de dólares por ano. De acordo com catalogação do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, Minas Gerais e São Paulo são os estados que mais produzem cachaça no país, sendo que também figuram entre os cinco estados mais consumidores do produto.

E ainda conforme os dados do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), no ano de 2016 o produto foi exportado para mais de 54 países, sendo os principais destinos Alemanha, Estados Unidos, Paraguai, Uruguai e França. São mais de 60 empresas exportadoras que movimentaram um montante de mais de 13 milhões de dólares. Isso representa um crescimento de 4,62% em valor e quase 8% em volume do produto se compararmos com os resultados de 2015.

Os estigmas da cachaça e o reconhecimento internacional

Assim como confirma a história, a cachaça é um produto altamente consumido pela população brasileira, seja por sua mistura com demais ingredientes e formação de uma bebida tipicamente nacional como a caipirinha ou, seja pelos rápidos efeitos que o destilado pode causar, a população brasileira é, com certeza, a que mais entende da caninha.

Para o estudante de Relações Internacionais, Lucas Mazzo, 22, a cachaça representa uma tradição familiar, mais especificamente, um complemento do relacionamento entre ele, seu pai e seu avô.


O valor simbólico do produto é verificado em diversos níveis sociais e midiáticos, onde a pinga é tida como a bebida de maior consumo nos bares e botecos tão tradicionais nas cidades do país. A professora de piano Isabela Ventreschi, 22, explica que tomou gosto pela cachaça por conta das combinações. “Gosto de beber caipirinha e prefiro a bebida com pinga, pois acho que fica muito mais saborosa. Tem a opção de vodca, por exemplo, que não gosto. Já experimentei pingas do tipo ‘gourmet’ e gostei, mas não bebo em excesso devido ao teor alcoólico elevado”, explica.

A gourmetização da bebida também vem ganhando espaço nos últimos anos. Novas técnicas de envelhecimento, produções mais elaboradas e novas combinações têm atraído outros públicos para o consumo da cachaça. “Embora não sendo necessário o processo de envelhecimento, dadas suas características físico-químicas e sensoriais, a prática de envelhecer a cachaça tem-se revelado uma importante forma de melhorar sua qualidade, tornando-a compatível com as demais bebidas internacionalmente reconhecidas”, acrescenta Faria.

Essa gourmetização e desenvolvimento de novas técnicas auxiliou no enfrentamento de um certo preconceito que o produto sofre há algum tempo. De acordo com Almeida, tal fenômeno se dá principalmente pelas origens da cachaça e seus meios sociais de maior consumo. “Por se ter o preço acessível,  esse tipo de cachaça chega fácil ao público,  e os que têm uma tendência a consumir mais álcool (por hábito ou por dependência), encontraram nesse tipo, uma forma de saciedade”, conta o sommelier.

Apesar de ser amplamente consumida no país e ter um preço mais acessível do que bebidas destiladas internacionais, a cachaça ainda é associada a pessoas que vivem em bares e a dependentes alcoólicos. A contradição mora justamente no fato de o produto ser extremamente valorizado no exterior e ter ganhado prêmios em competições internacionais de bebidas como o Concurso Mundial de Bruxelas e o “New York World Wine and Spirits Competition 2016”.

Reportagem Especial e Produção Multimídia: Matteus Corti

Editor-Adjunto: Vitor Azevedo

Editora-Chefe: Patrícia Konda

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