Em busca de uma comunicação mais compassiva e solidária

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Psicólogo Iury Florindo discute a Comunicação Não-Violenta e os caminhos para uma sociedade pacífica

Para Florindo, “A habilidade de saber se comunicar é essencial para um ambiente sadio” (Foto: Danieli Souza)

Fundada pelo doutor em psicologia clínica, Marshall Bertram Rosenberg (1934 – 2015), a Comunicação Não-Violenta (CNV) é uma prática baseada em habilidades de comunicação que viabilizam a ação compassiva e solidária entre as pessoas. De acordo com essa abordagem, as pessoas aprenderam culturalmente a se comunicar de uma maneira agressiva, permeada por julgamentos, processos de culpa e formas de opressão que nem sempre são explícitos, mas que são, em sua essência, apenas modos trágicos de revelar necessidades que não foram atendidas.

A Comunicação Não-Violenta propõe que não exista a disputa para se constatar quem está certo e quem está errado em qualquer tipo de relação, mas sim que haja o reconhecimento das próprias necessidades por trás de cada expressão, bem como das necessidades do outro com quem lidamos. A partir de uma comunicação empática, respeitosa e sem julgamentos que exponha essas necessidades, é possível estabelecer estratégias que as atendam mutuamente, evitando-se assim a geração de conflitos.

O psicólogo e mestre em análise do comportamento pela Universidade Estadual de Londrina, Iury Florindo, aborda nesta entrevista esse processo interpessoal elaborado por Rosenberg, discutindo suas possíveis formas de aplicação. Outras questões como a relação da CNV com os meios de comunicação e seu potencial de retorno em cursos profissionalizantes também são abordadas.

Repórter Unesp: Como surgiu o conceito de Comunicação Não-Violenta?

Iury Florindo: A história da criação desta abordagem é muito pessoal para Marshall. Ele nasceu em Detroit, uma cidade conhecida pelos altos índices de violência (até hoje). Marshall começou a desenvolver a CNV durante a década de 60, através do pressuposto de que a grande maioria dos conflitos poderia ser evitada, ou solucionada através da comunicação.

A CNV leva em conta a harmonia entre as necessidades pessoais com as necessidades do outro. O conceito básico é dividido em 4 categorias: a) observação; b) sentimento; c) necessidades; d) pedido. Devemos ser atentos sem julgamentos quando observamos uma situação, ser sinceros com nossos sentimentos e necessidades e executar os pedidos, demandas, quando ocorrem, de maneira assertiva e empática. A outra parte é receber o mesmo processo do outro. O essencial é o fluxo de informações, a troca de experiências.

R.U.: Você acredita que a Comunicação Não-Violenta se figura como uma forma para combater as correntes de ódio hoje tão presentes na sociedade?

I.F.: As ações de ódio estão cada vez mais naturalizadas, principalmente na internet. O grupo ou pessoa que se comunica de maneira violenta na internet sente que seu comportamento não traz consequências “reais”, e quando um indivíduo questiona o comportamento violento, acaba sendo diminuído por mais ofensas ou sua ação perde legitimidade por conta de um “humor” agressivo. Marshall utilizou a CNV em diversas mediações em programas de paz na Nigéria, Ruanda, Malásia, Indonésia, entre outros.

No entanto, acredito que o âmbito virtual cresce diariamente, e cada vez de forma mais desordenada. A relação entre CNV e internet é nova. Parece que o usuário não tem a mesma sensibilidade no ambiente online, que teria em um ambiente físico. Com efeito, não há espaço para a troca. A troca de experiências, opiniões e demandas tornou-se motivo para discordância agressiva, e não empatia. Além disso, a internet tornou-se um lugar para comparações e idealizações, o que em certa medida, pode se tornar afeto negativo. Aprender e divulgar a CNV pode ser uma maneira de minimizarmos estas condições.

R.U.: Por que você acha que esse conceito ainda é tão pouco conhecido pelas pessoas? O que você sugeriria para mudar isso?

I.F.: Acredito que temos cada vez mais uma visão menos empática e mais individualista na sociedade. Isso se deve em grande parte à fragilidade das relações atuais. A CNV é ensinada em escolas em diversos países do mundo, como em Israel.

No Brasil, o Ministério de Justiça determinou a criação de Círculos Restaurativos, com a aplicação da Comunicação Não-Violenta para projetos de Justiça Restaurativa e de capacitação de agentes de mudança social em oito estados. Em Londrina, felizmente, temos a oportunidade de ver a Justiça Restaurativa e a Comunicação Não-Violenta em ação e ganhando cada vez mais espaço institucional.

R.U.: Você poderia por favor citar algumas situações do dia a dia em que essa abordagem poderia ser utilizada? Se possível, exemplifique com situações de conflito reais ou fictícias, como o indivíduo deveria se posicionar seguindo os princípios da Comunicação Não-Violenta.

I.F.: Bom, a CNV pode ser utilizada em diversos contextos, profissionais e pessoais. Ela pode ser usada aprofundar nossos relacionamentos mais íntimos ou em uma reunião semestral de uma empresa. Em qualquer contexto é possível utilizar a CNV para aprofundarmos a comunicação.

Vamos tomar por exemplo, um pai inicia uma comunicação com seu filho: o pai deve se restringir à descrição de comportamento, isenta de julgamentos: “São duas da manhã e a música do seu rádio está tocando”; logo após o sentimento: “Isso está prejudicando meu sono”; em seguida, a necessidade: “Vejo que você gosta bastante dessa banda, e eu preciso realmente dormir”; seguida do pedido; “Que tal usar os fones de ouvido, ou então abaixar um pouco? Assim você pode continuar ouvindo seu som”.

R.U.: A CNV seria apenas um tipo de comunicação que se abstém da agressividade? Por exemplo, parar de falar palavrão, passar a falar em tom suave e estabelecer diálogos passivos… Ou há uma estratégia por trás dela que independe da agradabilidade da fala?

I.F.: A CNV não está relacionada com passividade. Muito pelo contrário. É uma postura ativa, corajosa e sincera. A observação sincera, desprovida de avaliação é o primeiro passo, e talvez o mais difícil. É nela que deixamos nosso senso de julgamento de lado e podemos enxergar o outro. Não é necessário um diálogo passivo e monótono. No entanto, o respeito é parte integrante do processo. Na medida em que uso palavrões, julgo o outro e minha observação torna-se enviesada e agressiva.

R.U.: Você vê algum potencial de aplicação dessa metodologia nos meios de comunicação? Se sim, como você acha que isso poderia ser feito e quais seriam, na sua opinião, os reflexos dessa iniciativa no contexto social?

I.F.: Acredito que sim, principalmente nas redes sociais. A permanência do usuário comum nas redes cresce todos os dias. Dificilmente nos imaginamos fora das mídias sociais. É nelas, também, que vemos os mais variados discursos de ódio e preconceito disfarçados de humor. Infelizmente, estes discursos crescem dia após dia.

O processo de troca está prejudicado, na medida em que as relações são rápidas, evanescentes. Não há espaço. As pessoas aprenderam, infelizmente, a julgar o outro (muitas vezes, sem o mínimo de contato ou consciência da situação) e continuam descendo o feed de notícias ou postagens. Os danos causados às pessoas expostas são severos. Inúmeros são os casos de pessoas que desenvolveram transtornos psicológicos e até mesmo cometeram suicídio, como produto de uma excessiva comunicação violenta online.

É como se o indivíduo ou grupo exposto sentissem que o mundo todo os julga e os inferioriza. Além disso, o caráter “permanente” dos conteúdos online é outro fator que faz com que as pessoas expostas tenham dificuldades de seguir em frente. No entanto, o processo contrário também é possível. Podemos desenvolver outros tipos de comunicação verbal e visual que atendam aos requisitos da CNV, e nos relacionar de outra maneira. O resultado virá com o tempo.

R.U.: Você, que é psicólogo e mestre em análise do comportamento por uma universidade pública e conceituada que é a UEL, teve acesso em sua formação às informações sobre a CNV? Quais benefícios poderiam advir da inclusão desse assunto na grade de cursos profissionalizantes?

I.F.: Não tive acesso à CNV durante minha graduação. Os psicólogos desempenham um papel muito sensível, pois lidam diretamente com o sofrimento humano. Acredito que dentro da psicologia, um teórico importante que se comporta de maneira muito parecida com a CNV é Carl Rogers. Rogers desenvolveu a Abordagem Centrada na Pessoa baseada na relação de congruência, aceitação incondicional e empatia.

Rogers defendia que a comunicação deve ser total e aberta, e foi uma revolução na maneira de fazer psicoterapia. Acredito que não só os psicólogos, mas qualquer profissional tem muito a ganhar com a introdução da CNV já nos primeiros anos dos currículos das graduações. Estamos falando de relações humanas. Seja um professor, um psicólogo clínico, um engenheiro ou veterinário. A habilidade de saber se comunicar é essencial para um ambiente sadio.

R.U.: Como aprender esse tipo de comunicação? Existem cursos sobre o assunto acessíveis a toda a população? É necessário o intermédio de um profissional que domine essa prática?

I.F.: Existem escolas de oratória, como a Megafone em Londrina, que oferecem cursos introdutórios sobre o assunto, e escolas de mediação. A CNV também faz parte de alguns currículos dos cursos de graduação de Relações Públicas, Jornalismo e em especializações Lato Sensu espalhadas pelo Brasil. O intermédio de um profissional pode, em muito, ajudar no aprendizado da abordagem CNV.

Os cursos de especialização fornecem um preparo mais adequado e prático, principalmente para aqueles que realmente desejam uma sólida formação. No entanto, com internet de fácil acesso, podemos aprender praticamente qualquer coisa. Porém, acredito que o desejo genuíno da comunicação empática e assertiva é condição fundamental para a aplicação e aprendizado da CNV.

 

Reportagem: Clara Tadayozzi

Produção Multimídia: Lívia Reginato

Edição: Sofia Hermoso

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