A luta feminina por igualdade entre os gêneros ocupa cada vez mais os campos de uma sociedade misógina, que tende sempre a deixar as mulheres em segundo plano. Não é diferente na indústria cinematográfica, que tem os homens como maioria de seus funcionários, ganhando salários mais altos tanto em frente às câmeras quanto nos cargos de produtores, roteiristas, diretores e outras funções que são parte do fazer do cinema. A luta das mulheres no cinema persiste firme e forte por resistência e destaque.
O público feminino consome metade dos ingressos vendidos para o cinema, mas ainda assim a desigualdade entre homens e mulheres nas fases de produção de um filme , e na sua representação diante das telas traz consequências que podem ser observadas com clareza – o machismo no cinema coloca os papéis femininos como personagens submissas, passivas e muitas vezes mero objeto de desejo, sexualizando-as, sem voz e em segundo plano.
Não à toa, filmes como o recente sucesso de bilheteria e crítica Mulher Maravilha (2017) e os trabalhos do Studio Ghibli, que têm mulheres fortes como a principal fonte dos acontecimentos, são vistos como atos revolucionários somente por fugir do padrão masculino nos papéis mais importantes. Estas personagens são essenciais para a construção de uma consciência coletiva, que demonstre a figura da mulher com importância e veracidade.
Pequenas meninas começam a ter contatos com visões além daquela que coloca a mulher como uma mera princesa, alguém frágil e que precisa ser resgatada – como na maior parte das histórias -, visualizando a história de heroínas como Katniss (Jogos Vorazes), Moana e Merida (Valente), que ocupam o cargo de quem “salva o dia”, posição que antes era somente dos homens.
A representação feminina pode ter ganhado espaço nos últimos anos, mas o quadro da mulher na indústria cinematográfica ainda é alarmante. Em uma análise – produzida pela New York Film Academy – feita entre os 500 filmes mais vistos entre 2007 e 2012, a pesquisa mostra que somente 30,8% dos personagens com falas são mulheres e que apenas cerca de 10% dos longas possuem em seu elenco um número balanceado entre os dois sexos.
A pesquisa ainda revela que estes números variam de acordo com quem trabalha atrás das câmeras durante os trabalhos: o número de personagens mulheres cresce 10,6% quando uma mulher dirige o filme e 8,7% quando se tem uma mulher como roteirista – um quadro que pode ser raro de ser observado, uma vez que o número de homens trabalhando na indústria cinematográfica é cinco vezes maior que de pessoas do sexo feminino.
Concorrência desleal no meio cinematográfico: mulheres impedidas de errar
É claro que os índices hollywoodianos de baixo número de mulheres no cinema em altos cargos podem parecer distantes da nossa realidade, mas casos em que as mulheres são colocadas em segundo plano em produções audiovisuais – cinematográficas ou não – representam muito mais que casos isolados no meio midiático e, infelizmente, oprimem as mulheres que ocupam esse espaço, tanto em frente às câmeras como também nos bastidores.
Nossa equipe conversou com Marina Formaglio, que é uma das idealizadoras do blog Garotas Geeks, um blog que produz conteúdo voltado para o público geek e que conta com uma equipe 100% feminina. O blog produz diversos conteúdos multimídia, como vídeos e podcasts, além de contar com uma seção exclusiva sobre cinema.
Marina participa da edição e produção do conteúdo audiovisual do blog, manuseando câmeras e também escrevendo para a seção de cinema do Garotas Geeks. Para ela, apesar da função de uma diretora ser completamente diferente da função de uma atriz em um filme, por exemplo, é crucial que haja mais participação das mulheres nesse meio, na intenção de promover visibilidade feminina nas obras e de pressionar grandes produtoras à inclusão das mulheres nesse cenário.
“Filmes, séries, livros, HQs, enfim, qualquer produto de ficção (mesmo que baseado em fatos) tem uma relação cíclica com a vida real. É a história da arte imitando a vida, e a vida imitando a arte”, conta Marina.
Ou seja, reforçar nas obras de ficção que as mulheres podem estar à frente de situações majoritariamente delegadas a homens, tanto na produção como na atuação cinematográfica, pode abrir os olhos da sociedade para o fato de que as mulheres também são pessoas igualmente capacitadas.
Afinal, de acordo com Formaglio, a mulher é frequentemente retratada por diretores do sexo masculino como a “mocinha” a ser salva em frente às câmeras, ou é usada para construir a identidade do personagem principal de uma trama (que geralmente é homem), o que perpetua a imagem da personagem feminina como um segundo plano da narrativa, um mero detalhe, dificilmente sendo colocada no mesmo patamar dos personagens masculinos.
A questão acerca do segundo plano que a mulher ocupa em produções cinematográficas pode passar despercebida, mas os dados são bastante reveladores. No início deste ano, o site Papel Pop publicou uma matéria que evidencia um aumento na taxa de participação das mulheres como protagonistas em produções hollywoodianas, usando como comparativo os dados de 2016 (29%) em relação a 2015 (22%).
Formaglio acentua a importância de existirem mulheres produzindo conteúdo por trás das câmeras no meio audiovisual – o qual conta com a presença predominante masculina-, para que a figura da mulher seja devidamente representada até mesmo através dos roteiros cinematográficos.
A tarefa de estar em produções cinematográficas não é nada fácil para as mulheres. A pressão ainda é muito grande em relação a essa participação e as elas passam por situações cruéis, nas quais são constantemente vigiadas, cobradas e tendo sua competência questionada: “Os homens são a grande maioria ainda na produção de filmes […]A mulher, para ser relevante, não pode ser boa; ela tem que ser ótima, quase perfeita. Qualquer erro feito por uma mulher é muito mais evidenciado, porque as pessoas estão procurando por erros. A maioria espera que a mulher falhe para falar ‘tá vendo, ela não tem a competência necessária'”, afirma a entrevistada.
Questionar a falta de protagonismo feminino no cinema pode pressionar grandes produtoras para que haja uma quebra de padrões. Por isso, é primordial que se promova uma ampla abordagem sobre essa problemática, para que as pessoas se conscientizem cada vez mais sobre o contexto no qual as mulheres são submetidas no meio de produção audiovisual.
Conversamos também com Esther Hamburger, professora do departamento de cinema da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), sobre o papel da mulher ao entrar no cinema e também a sua construção na televisão, confira o audiocast:
Conquistar espaço é preciso!
As mulheres, além de enfrentarem uma constante diminuição das suas capacidades, também precisam lidar com outra questão bastante complicada, especialmente nos meios midiáticos e audiovisuais: a sexualização e erotização da mulher.
Para saber um pouco mais sobre isso, conversamos com a Professora Mestra Adriana Cardoso Nogueira, docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Para Adriana, apesar da perversa realidade que as mulheres enfrentam no meio cinematográfico, essa tendência parece estar mudando e dando espaço para o protagonismo feminino no cinema. Confira um trecho do nosso bate-papo no vídeo abaixo:
Conversamos também com o Professor Doutor Denis Porto Renó, documentarista e especializado em jornalismo transmídia. No vídeo abaixo, ele pontua sobre assuntos como: o protagonismo da mulher no cinema, o machismo e a desigualdade de gênero no meio audiovisual e, assim como a professora Adriana, fala a respeito da mudança progressiva neste cenário.
Mulheres no cinema e no comando
Ao se falar da representação feminina no cinema, é comum que atrizes em papéis principais venham em mente antes de qualquer outro cargo. Porém, conforme a docente Adriana mostra em sua entrevista, há diversas mulheres trabalhando nas produções em variadas funções. Veja abaixo alguns filmes e documentários feitos por mulheres:
Vozes não ouvidas
Ao analisar uma produção com uma personagem feminina, é preciso levar em conta alguns aspectos que vão além do roteiro. Neste ponto, o teste de Bechdel pode ser utilizado justamente para ajudar o telespectador a visualizar melhor qual foi o papel feminino na produção e qual a importância das mulheres no cinema, diante das obras analisadas.
O teste foi criado por Alison Bechdel, cartunista norte-americana. Em uma de suas histórias, as personagens conversam rapidamente sobre os três critérios que, mais tarde, seriam utilizados para definirem o teste: é preciso haver ao menos duas personagens femininas, e elas devem conversar entre si. Além disso, é preciso que o assunto não envolva homens.
Apesar de os critérios parecerem vagos e simples de serem atingidos, o número de produções cinematográficas que são reprovadas é grande. Isso significa que filmes de grandes franquias estão sujeitos a tratarem suas personagens femininas como objetos ou acessórios para outros personagens – como acontece em Star Wars: O Retorno do Jedi (1983), com a Princesa Leia sendo oferecida apenas em suas roupas íntimas. O mesmo ocorreu em Thor: Ragnarok (2017), lançamento recente da empresa Marvel. No filme, há apenas duas personagens femininas. Quando elas conversam, é com personagens masculinos, e não uma com a outra.
Um estudo realizado pela Escola Annenberg de Comunicação e Jornalismo, da Universidade do Sul da Califórnia, revelou um cenário ainda mais pessimista: 40% dos 700 filmes analisados seriam reprovados no teste. Por outro lado, também há grande número de produções audiovisuais que possuem personagens femininas fortes e desenvolvidas, que são aprovados no teste de Bechdel. Confira abaixo algumas delas:
Texto: Daniel Sakimoto, Danielle Cassita e Victória Linard
Produção multimídia: Camila Gabrielle
Edição: Fernanda Cotez Redivo
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