Preconceitos e Privilégios: a realidade de uma transexual universitária

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Após dois anos de acompanhamento psicológico, Clarice entendeu que não era gay e sim uma mulher transexual (Foto: Gabriella Soares)

Em um país em que 114 pessoas transexuais foram assassinadas no ano de 2016, segundo o  Relatório do Grupo Gay da Bahia, Clarice Passarelli Carneiro é uma mulher trans que foge de muitos dos estereótipos e estigmas enfrentados por esse grupo no Brasil. Universitária de 24 anos, de classe média e branca, Clarice reconhece o quanto é privilegiada e, ainda sim, sente a necessidade de se passar por uma mulher cisgênero, ou seja, que já nasceu com o gênero feminino, em certas situações para evitar preconceitos que pessoas transexuais enfrentam no dia-a-dia.Transexualidade é uma condição em que o gênero com o qual uma pessoa nasceu, que lhe foi designado pela sua genitália, não corresponde à sua identidade de gênero, seja feminino, masculino ou neutro. A falta de informação e conhecimento é um dos maiores fatores que levam ao preconceito, segundo Clarice. A jovem, que cresceu em uma pequena cidade do interior paulista, só teve contato com a questões de gênero aos 19 anos, quando entrou na universidade.

Três meses após começar a transição de gênero, a estudante de arquitetura da Unesp de Bauru contou a sua família sobre todo o processo que estava passando. Na entrevista abaixo, Clarice relata sua experiência como uma mulher transexual.

Repórter Unesp: Qual episódio de preconceito você sofreu que foi mais marcante?

Clarice Passarelli: Foi quando eu comecei a namorar, que fui conhecer a família do meu namorado. Ele é de uma cidade menor que a minha e isso se espalhou muito fácil. E os comentários de amigos que chegavam até a gente era que ele estava namorando uma travesti, um homem que se vestia de mulher. Não entendiam o que era uma transexual, então para eles era a figura masculina com roupas femininas. Foi o episódio de preconceito que mais me marcou; a questão do meu relacionamento com ele, como as pessoas receberam isso.R.U.: Você acha que o preconceito é mais comum em desconhecidos ou em pessoas mais próximas?

C.P.: As pessoas mais próximas. Porque elas são pessoas que teoricamente conviveram comigo antes da transição, então elas me conheciam como um garoto e agora, tipo ‘por que você está fazendo isso? Você não é uma mulher, nunca vai ser porque você nasceu em um corpo masculino.’ Os desconhecidos às vezes nem percebem, mas as pessoas que te conhecem têm sempre aquele olhar mais preconceituoso, de objetificação. Como ‘nossa, eu te pegaria agora’, isso é muito pesado.

 

R.U.: Quais são os motivos para esse preconceito das pessoas mais próximas?

C.P.: Acho que falta de conhecimento, de informação mesmo. Eu mesma só tive contato com a transexualidade com 19 anos, antes disso nunca tinha ouvido falar, principalmente na minha cidade que é muito pequena. Acho que essa falta de informação e entender o que é, é o maior problema. O desconhecido gera mais preconceito. Tudo que é desconhecido as pessoas tem um pouco de medo.

 

R.U.: Você disse, em uma conversa anterior, que você se considera privilegiada em relação a outras pessoas trans. Por quê?

C.P.: Inúmeros fatores. Um fator primordial é a classe social; eu sou de classe média, então tive oportunidades que outras pessoas não têm, como estudar, estar fazendo uma faculdade agora. Depois, a questão de ser branca, que eu acho que é um privilégio enorme. Sei que uma garota trans negra aqui sofreria mais preconceitos que eu, até porque já é difícil o acesso de pessoas trans ou negras às faculdades, então pessoas negras e trans é ainda mais difícil.

E também por estar dentro do campus de Bauru, da faculdade de arquitetura, eu acho que é mais tranquilo. Conheço outra garota da FC [Faculdade de Ciências] que teve problemas com a sala dela quanto a ser trans. Ela sofreu preconceitos muito pesados, tanto que até desistiu do curso.

 

R.U.: Como você encara a representação e a presença de pessoas transexuais na universidade?

C.P.: Essa pergunta implica em dois problemas. Um problema é a chegada de pessoas trans na faculdade. Se uma trans começa a transição muito nova, ela sofre tanto no ensino fundamental quanto no médio um preconceito muito grande, então ela acaba abandonando a escola. Ou ela não tem o apoio da família e acaba desistindo dos estudos para trabalhar e continuar a transição. A outra questão sobre a falta de representatividade é que eu acho que as pessoas trans, se elas puderem levar uma vida como cis, elas vão levar, porque o preconceito é muito grande.

 

R.U.: A sua escolha: você ficaria no anonimato?

C.P.: Eu acredito que sim. Inclusive, teve um dia que saí com meu namorado, a minha cunhada e o meu cunhado e a gente estava em um barzinho na cidade vizinha de casa, Ribeirão Preto, uma cidade teoricamente grande. E a gente estava lá, brincando, jogando, bebendo e eu passei extremamente despercebida, as pessoas… Eu era uma pessoa comum lá. Chegou uma moça trans, que era visivelmente trans, não sei se ela estava no começo da transição, e na hora que ela chegou todos os olhares se voltaram para ela. E naquele dia eu percebi que a passibilidade define a quantidade de preconceito que você vai sofrer ou não.

R.U.: Já houve momentos em que você passou por uma mulher cisgênero? Como isso ocorreu?

C.P.: Sim, várias vezes. Por exemplo, antes meu RG era com a foto antiga, então eu tinha muito medo de entrar em lugares que solicitavam documento. Agora com o novo, eu passo muito despercebida; eles não olham o nome que está escrito, então você sente a questão da passibilidade. Ou você tá na fila de um banheiro e ninguém te questiona por estar ali, já é ótimo. Porque a transexualidade é uma mutilação ao corpo constante, você toma remédio que trazem o que você quer, mas causam muitos danos ao corpo.

 

Reportagem:  Gabriella Soares

Produção Multimídia: Ana Laura Essi

Edição: Wesley Anjos

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