A procura por emprego relacionada com a conquista da liberdade: dois ex-presidiários contam suas trajetórias na busca pela ressocialização
Na sexta-feira (31), o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou uma pesquisa na qual informa que a taxa de desemprego no país subiu para 12,4% no primeiro trimestre de 2019. No total, se somarmos os 13,1 milhões de trabalhadores sem emprego com a população subutilizada – que reúne desocupados, pessoas que trabalham menos de 40 horas semanais e os disponíveis para trabalhar, mas que não conseguem procurar emprego – são 27,9 milhões de brasileiros sem carteira assinada. Em meio a essas estatísticas estão egressos que procuram se reinserir no mercado de trabalho.
Há, ainda, outro recorte: o de desalentados, aqueles que desistiram de procurar trabalho. Nos três primeiros meses do ano, 4,9 milhões de pessoas se encontravam nessa condição, quantidade que superou as obtidas pelas pesquisas sobre essa categoria nos últimos sete anos.
João Paulo* é músico e Pedro* é skatista, estiveram presos há alguns anos. João Paulo conta que desde que saiu da prisão, em 2017, entregou mais de 200 currículos por Bauru e até hoje não conseguiu emprego. “Se não tem [vaga] para pessoas que nunca foram presas, imagina para mim. A impressão que eu tenho é que não está ao meu alcance, aí eu fico tentando achar motivo. Mas se for buscar com a razão o motivo disso tudo, não é a gente que é culpado”, reflete.
O músico, que hoje faz parte da parcela de desalentados, afirma que o estigma social e institucional é a maior barreira enfrentada na procura por vaga no mercado de trabalho. “Muita gente depois que sabe que você é egresso muda de ideia. É o preconceito, né? O medo. Por a gente ser egresso, ser preto e ser pobre. Parece que ninguém pensa nisso: o que o cara vai fazer depois da cadeia? Nem o Estado nem a população. Por mais que você tente andar para frente as pessoas querem segurar você no passado”.
Pedro conseguiu trabalho registrado, como atendente em um hotel, apenas nove anos depois de sair do Centro de Detenção Provisória. Ele explica que conquistou a vaga por meio da indicação de um amigo. “Só arruma mesmo se for esse caso”, avalia. Assim como João Paulo, Pedro já tinha entregado currículos em várias empresas. “Minha ficha preenchia todos os requisitos, fazia entrevista e no final falavam que iam me ligar. Eles vão puxar seu RG, seu CPF e vão ver que você tem antecedente criminal. Tô esperando a ligação até hoje”.
Antes disso, Pedro diz que trabalhava autonomamente, com moto e venda, e afirma que a rotina não era fácil, mas agora o dia a dia está mais estável. “Você está em um trabalho registrado, você está garantido. Seu salário é aquilo mas você sabe que todo mês está ali”.
E o Estado com isso?
Os dois afirmaram que dentro das prisões em que estiveram não há políticas para auxiliá-los no mercado de trabalho depois de libertos. Não há nenhuma atividade profissionalizante ou preparatória.
João Paulo foi preso cinco vezes, em presídios diferentes do estado de São Paulo, e Pedro foi detido duas vezes, em ambas ficou no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Bauru.
Pedro faz parte da estatística levantada pelo Banco Nacional de Monitoramento de Presos e divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual revela que 65% de pessoas privadas de sua liberdade no Brasil não foram completamente julgadas. Segundo o skatista, as duas vezes em que foi detido por tráfico de drogas foi forjado pela polícia.
Tanto Pedro, ex-detido, quanto João Paulo, ex-preso, analisam a falta do que fazer como o maior perigo dentro das instituições carcerárias.
“A cadeia no Brasil serve mais para fazer ladrões do que para regenerá-los. A pessoa entra numa instituição para pagar pelo que fez e a intenção é que a pessoa se recupere, se reintegre na sociedade. Só que, convivendo dia a dia com extorsão, vivendo de forma desumana, sob opressão de monopólio, no meio da ladroagem, do mesmo jeito, ela não vê exemplos. Como que a pessoa vai se reinserir na sociedade, vai se regenerar sob exemplos desses? Não tem como. Então você acaba aprendendo mais malandragem do que você sabia, porque você vê como uma oportunidade de ocupar seu tempo de alguma forma”, comenta João Paulo. E completa, se referindo a si mesmo: “A pessoa vai sair, não tem um emprego, no meu caso eu não tenho nem família, não tenho para onde voltar, eu vou fazer o que? Eu pensei assim por muitos anos”. Afirma João Paulo.
Com trajetória diferente, Pedro conta que o apoio de sua mãe e sua família foram fundamentais para recuperar forças e se reintegrar, tanto na sociedade quanto no mercado de trabalho. Conta, ainda, que a maior parte dos detidos que viu saírem e se reinserirem o fizeram por meio de ajuda externa.
“Se não fosse minha mãe me ajudando nisso, ou eu já estaria lá de volta preso ou eu já estaria morto. As coisas mais pesadas que eu ouvi e senti foram lá, não foi na rua, por experiência própria. O sistema não recupera ninguém, essa é a verdade”, conclui.
Para Pedro, a questão do desemprego de egressos está diretamente relacionada com a crise do sistema carcerário – o qual ele diz alimentar um ciclo de violência. O skatista acredita que se aumentasse o investimento em saúde pública, a quantidade de presos diminuiria bastante.
Hoje Bauru tem, juntando os três Centros de Progressão Penitenciária e o Centro de Detenção Provisória, uma superlotação carcerária de, aproximadamente, 25,6% acima da capacidade, segundo dados coletados pela Secretaria da Administração Penitenciária do estado de São Paulo.
“Dos muitos que eu vi, bem poucos eram bandidos. A maioria é viciado em droga. Aí você vê que é um problema de saúde pública mesmo, porque superlota a população carcerária, tem ser humano literalmente vazando pela grade, e não tem tratamento. E os caras que estão na rua estão ao léu, jogados. E a partir do momento que o cara tirou um matinho da calçada aqui, pediu ali e não conseguiu uma grana para suprir o vício dele, ele vai roubar” reforça.
Ambos os entrevistados criticaram a forma que o sistema funciona, segundo eles, visando lucro por meio do controle dos corpos de presos e detidos.
“Para eles é mais lucrativo fazer presídios que escolas. Um presidiário toma banho gelado todo dia, não tem ventilador, não tem energia elétrica de sobra, não tem comida da boa e da melhor igual muita gente acha, não tem cinco refeições por dia e não gasta dois mil reais por mês igual é a nota do governo. Não gasta 600, um preso. Para o governo é dois mil reais cada preso. Então dá lucro para eles, é uma máquina”. É o que diz João Paulo.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a média de custo no país é de R$2.400 por preso.
Abertura da porta: reconquistando a liberdade após a prisão
Pedro lembra o dia em que saiu do CDP, diz que, naquele momento, tudo o que queria era comer aquilo que tinha ficado na vontade por tantos meses. Mas depois de satisfazer o desejo, a sensação de liberdade, ele narra, foi substituída pela preocupação. “Eu precisava recomeçar minha vida, tinha perdido muito tempo. Precisava correr e eu já estava muitos passos para trás da linha de partida em comparação às outras pessoas”.
João Paulo, mesmo sem conseguir emprego, afirma ser grato por aquilo que tem. “Eu ainda tenho disposição de sair todo dia da minha casa para ir parar em um cruzamento e cuidar de um carro. Esses dois anos que eu estou egresso estou bem, estou tranquilo, graças a Deus”.
O músico começou a estudar teclado com oito anos e, aos 10, iniciou os trabalhos com shows. “Em barzinhos, choperias, universidades”. Conta que sabe tocar 16 instrumentos no total e que o maior motivo de procurar trabalho registrado é se reinserir na música.
“Só está me faltando o que? A segurança de um emprego registrado. Isso com certeza iria me ajudar bastante para conseguir montar um som bacana, para poder comprar um instrumento legal. Me inserir novamente na minha área de trabalho. Eu vivo de música, não sei fazer outra coisa”, afirma.
Pedro diz ter vontades, mas não as chama de planos. Comenta sobre o sonho de abrir um bar com uma mini rampa e fortalecer a cena do skate na cidade. “Dá pra acontecer, é que é difícil. A gente se mata de trabalhar e o pouco que a gente ganha mal dá para as necessidades básicas. Quando arruma um trampo é sempre uns trampos ruinzinhos, mesmo que você tenha qualificação”.
O que vem agora?
“O brasileiro nasce num país sem muita expectativa, sem uma boa educação pública, sem um bom emprego para os seus pais, sem um ambiente tranquilo na sua casa. Dificilmente a pessoa sorri com a barriga vazia. A pessoa ir atrás de um livro com a barriga vazia? Não vai. Então eu acho que tudo tinha que começar com a educação das nossas crianças. A gente educar nossos jovens para não precisar reeducar os nossos adultos, entendeu? As pessoas precisam de ajuda, mas somos todos órfãos do Poder Público”, sustenta João Paulo. Diz que é o que queria para si: ter crescido com expectativa de vida.
Até o fechamento desta reportagem a Secretaria de Administração Penitenciária não respondeu aos e-mails informando se há dados que estimem a quantidade de ex-presidiários empregados e procurando empregos. Também não comentou se existem políticas na cidade que reconheçam e lidem com a questão do desemprego de egressos.
*Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservação das identidades.
Repórter: Paula Betelli
Produtora Multimídia: Rhaida Bavia
Editora: Nathália Sousa