O aumento dos colégios militares no país tem trazido o debate e a reflexão sobre as problemáticas da rigidez no ambiente escolar
“Transgressões disciplinares são quaisquer violações dos preceitos de ética, dos deveres e obrigações escolares, das regras de convivência social e dos padrões de comportamento impostos aos alunos”. É com esse trecho que começa um dos capítulos do regulamento disciplinar de umas das várias instituições militarizadas que existem no Brasil.
A onda das escolas militares não é uma novidade. Ela começou em meados dos anos 1990 e vem se estendendo por todo o país. O modelo de educação, basicamente, é marcado pela hierarquia e disciplina. É a partir desses dois pilares que tais instituições se sustentam.
Sob o olhar da polícia militar
O trecho acima é de uma das escolas estaduais geridas pela Polícia Militar de Goiás, estado que hoje, por exemplo, possui o maior número de instituições militarizadas. Ao todo são 122 em funcionamento, número que tende a aumentar conforme as últimas governanças goianas declararam.
Em Goiás, algumas dessas escolas surgiram no governo de Marconi Perillo (PSDB), que em 2013 passou a gestão educacional de 30 delas para as mãos da PM. Essa decisão ocorreu após a aprovação de uma medida em Assembleia Legislativa. A justificativa era reduzir os índices de violência e evasão escolar em regiões periféricas.
Desde então, o número só vem aumentando. Segundo o governo do estado, a pretensão em 2019 é que mais 70 escolas estaduais se militarizem.
O ensino
Organização, respeito aos símbolos nacionais, permissão para falar com as autoridades e intolerância a atrasos são algumas das inúmeras regras que cercam as instituições da PM no estado goiano. Os alunos, assim que chegam, precisam ficar em fila indiana e não podem correr.
Os meninos têm de estar sempre barbeados e com os cabelos cortados; às meninas cabem os cabelos sempre em coque e nada de usar esmaltes ou brincos chamativos. Além dessas restrições estéticas, os colégios pedem aos pais um valor simbólico de 50 reais mensais que, em outras unidades, pode chegar a 150 reais. Segundo os gestores, isso seria uma contribuição não obrigatória dos pais.
Outra das exigências são as vestimentas, das quais os alunos precisam utilizar a farda, que custa em torno de 400 reais. Alguns estudantes que não conseguem comprar uma peça nova, reutilizam fardas usadas dos colegas, mas isto não é recorrente.
Na mão do Exército
Assim como os colégios militares da polícia militar, o Exército Brasileiro também detém a gestão de 13 escolas pelo Brasil sob o mesmo argumento – de tirar jovens da situação de vulnerabilidade social. Essas instituições são geridas pela Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial (DEPA). Com sede no Rio de Janeiro, o órgão é responsável pelo sistema de ensino, incluindo material didático, método, atividades e outros.
Contudo, para ingressar nas escolas do Exército, é realizado um processo seletivo que, geralmente, é bem concorrido. Segundo o jornal O Estado de São Paulo, anualmente, mais de 22 mil pessoas por todo o Brasil concorrem às vagas para o ensino fundamental e médio. Além disso, os filhos e dependentes de militares, que regularmente são transferidos de cidade por conta do trabalho, podem entrar nessas instituições pelo ingresso por amparo.
Os colégios do Exército possuem um investimento maior que as demais escolas públicas. Por ano, cerca de 19 mil reais são gastos por aluno, o que resulta em melhores instalações com laboratórios, piscinas, rendendo, assim, bons números no Índice de Desenvolvimento Básico (Ideb). Dessa maneira, em 2015, os colégios de Fortaleza e Rio de Janeiro alcançaram nota 7– enquanto a nota da rede pública dos estados do Ceará e do Rio não passaram de 4,5.
Em outubro de 2018, a portaria para a criação do primeiro colégio do Exército em São Paulo foi assinada pelo general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas. A previsão de inauguração é em 2020.
Na contramão da militarização
Todavia, apesar dos bons resultados em exames e aparente cultura de disciplina, existem muitos argumentos desfavoráveis à militarização do ensino.
O primeiro deles é o suposto acesso das populações periféricas. Por causa de seu processo seletivo, do alto custo da farda e da “mensalidade”, os estudantes mais carentes não conseguem estudar nesses colégios. Outro fator é a localidade dessas escolas – característica principal das instituições do Exército –, que se concentram em regiões centrais, assim sendo, muitas vezes, inviáveis para aqueles que moram na periferia.
Outro problema é no que diz respeito à gestão. Essas escolas são tocadas por autoridades militares que, por vezes, não tem a preparação necessária para gerir a instituição. Em alguns casos, não existe um pedagogo ou educador formado e com experiência no ramo. Foi o que aconteceu com o Colégio Militar Estadual da Polícia Militar de Goiás Waldemar Mundim, em 2015, ano em que o militarizaram.
Como funciona na prática?
“O colégio militar possui um manual do aluno, com todas as regras. Não as considerava abusivas, a norma do colégio era aquela e não tinha para onde correr. A problemática que eu enxergava era a conduta de alguns que trabalhavam lá. Pela minha experiência, não digo que sofri repressão nenhuma, mas criaram uma página na internet na qual vários alunos relatavam situações opressivas que passaram e a página acabou por ser derrubada porque é super comum isso de acobertar atitudes ruins de autoridades militares”, relatou a ex-estudante do Colégio Militar de Fortaleza, Brenda*.
Sua fala traz à luz outra questão importante para o debate da educação: a liberdade de pensamento e manifestação. Uma reportagem da ÉPOCA sobre o tema mostrou que poucos professores que lecionam nessas escolas quiseram dar entrevista, por se sentirem acuados com a presença das autoridades militares.
“Os militares, por terem base no positivismo, apropriam-se de projetos pedagógicos com uma pedagogia inegavelmente tradicional. É uma pedagogia composta por uma pessoa que tem o saber e os alunos que não tem o saber, e que, como um receptáculo vazio, o professor vai colocar o saber neles. Então, existe já uma hierarquia em sala de aula”, explica o psicólogo e professor Gabriel Arfelli. Segundo ele, a educação nas escolas militares se baseia em um ensino conteudista, engessado e não-relacional. Na sua opinião, é extremamente problemático. “Ele ignora as singularidades de todo mundo e não relaciona os saberes”, acrescenta.
“Um aluno, por processos culturais, aprende que sim, a culpa é dele. Isso é muito comum, ninguém está imune, ainda mais pelo momento histórico-individualista, a gente entende que tudo poderíamos ter feito melhor ou o que a gente fez de errado, poderíamos não ter feito. A gente sempre joga para si. E isso dentro de uma hierarquia, que culpabiliza o adolescente, gera extremos sofrimentos. Sem contar as denúncias de claro machismo e homofobia. Entretanto, isso também é um dado interessante, em estruturas militares, a masculinidade é muito mais realçada”, ainda pontua Arfelli. E foi o que aconteceu com a estudante Brenda.
“Não é novidade dizer que as meninas passaram eventualmente por situações machistas. Alguns soldados que davam em cima, professor militar que assediava em troca de nota… Um momento que eu nunca esqueci foi no meu terceiro ano, quando eu e as meninas estávamos com as saias curtas (uns 3 dedos acima do joelho), fomos chamadas a atenção por isso, o que realmente era aceitável visto que a saia tinha que estar no joelho. Mas nós fomos chamadas a atenção porque estava atraindo olhares de professores e homens que trabalhavam lá”, relatou a ex-aluna.
Por fim, confira a íntegra da entrevista com o psicólogo Gabriel Arfelli:
*O nome do entrevistado foi alterado para preservação da identidade.
Repórter: Ariely Polidoro
Produtora Multimídia: Rhaida Bavia
Editora: Nathália Sousa