O doente sistema penitenciário brasileiro e a negligência da saúde mental

Browse By

Ausência de amparo do Estado e despreparo dos profissionais resultam em problemas massivos nos cárceres do país

O pensamento moderno embasado pelas ideias iluministas que defende, entre outras coisas, a propriedade privada, sustenta um sistema de leis que pune. Nessa legislação penal, o indivíduo que comete crimes deve ser privado de sua liberdade. Assim como de alguns direitos, por meio do isolamento, de seus próprios pensamentos e juízos morais. Contudo, a prática desse processo é bastante diferente e implica diretamente na saúde mental dos indivíduos.

Há tempos se escuta que o sistema carcerário brasileiro enfrenta uma crise. Logo que sofre problemas de ordem estrutural que inviabilizam a recuperação e ressocialização dos detentos. Superlotação, serviço social deficitário, escassez de profissionais da saúde e da educação são alguns dos principais motivos. Tanto, que tornam as prisões espaços disfuncionais que causam danos à população e ao Estado.

Conforme o agente penitenciário José Silva*, de 32 anos, o contato com a realidade dos presos é algo que requer muito preparo emocional e psicológico: “Ali, nós temos que lidar com pessoas que pertencem a outras classes sociais. De uma forma ou outra, o sistema carcerário aprisiona o preto, o pobre, o marginalizado: pessoas que, de forma geral, não tiveram oportunidade de se educar, de ter condições dignas de vida e possibilidade de ascensão social. Essas pessoas, por estarem presas, ficam nessa cortina que as separam da sociedade. Quando temos acesso à parte de trás da cortina é um grande choque”, relata.

Amparo psicológico

Nesse sentido, para os funcionários e detentos penitenciários, o amparo psicológico não é eficiente. Segundo José, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) disponibiliza o órgão “Centro de Qualidade de Vida e Saúde do Servidor”, o CQVidass. Em suma, pretende prestar serviços que otimizem a vida e saúde mental no ambiente laboral e orientar ações da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA). No entanto, Silva desconhece a abrangência do programa. “Por trabalhar numa escala muito complicada, não posso aproveitar desse benefício. Tenho um colega que vai e diz que não é muito bacana, apesar de que todo apoio é importante. Ele diz que você tem que falar sobre o órgão que te causa sofrimento para uma pessoa que trabalha para essa mesma instituição. Então é algo que causa um pouco de constrangimento”, conta.

Do mesmo modo, o isolamento do cárcere impossibilita o ideal de reabilitar os detentos. De tal forma, que superem seus problemas de ordem social que os levaram ao crime. Naquele ambiente insalubre, são submetidos a condições hostis como violência sexual e física, fome e solidão. Assim sendo, a distância da sociedade e do mundo não-carcerário provoca danos físicos e mentais, muitas vezes, irreparáveis.

O servidor, que trabalha como agente penitenciário há dois anos, comenta que o quadro de psicólogos que são responsáveis pelo apoio mental dos detentos é falho. “O atendimento acontece quando o preso está prestes a cometer suicídio ou quando acabou de ter uma crise. Antes de passar pelo psicólogo, geralmente é feito um atendimento com um enfermeiro, que normalmente receita um analgésico. E depende da sensibilidade desse profissional de repassar o preso para o psicólogo”, conta.

Com efeito, na sub-cultura do cárcere, os indivíduos se submetem a regras e disciplinas extremamente rígidas e frias. Se não obedecem, são castigados e humilhados. O “bom comportamento” é advindo da obediência dessas normas. Uma vez livres, existe preconceito por parte da sociedade, dificuldade de conseguir emprego e, também, na recolocação social como cidadão. Como resultado, frequentemente, as pessoas retornam ao mundo do crime por acreditarem estar sem opção.

Encarceramento em números

O sistema penal brasileiro possui falhas graves em sua base. O resultado disso, entre uma série de problemas sociais, é a terceira maior população carcerária do mundo. De acordo com um estudo da Pastoral Carcerária, divulgado em setembro de 2017, o Brasil tinha 725 mil pessoas encarceradas. Ficando atrás da China (1,6 milhões) e Estados Unidos (2,1 milhões).

O pesquisador da Pastoral e responsável pelo estudo, Rodolfo Valente, comenta em entrevista à Carta Capital que “o aumento da taxa de encarceramento é tão intensa que o quadro de superlotação, na verdade, tende a se agravar, a despeito dos muitos presídios inaugurados regularmente e que, na realidade, só fazem fomentar ainda mais a banalização das prisões e de suas barbáries”, enfatiza.

Saúde mental e violência

A jornalista Baz Dreisinger lecionou por mais de dez anos no sistema prisional estadunidense. Realizou um estudo em doze prisões ao redor do mundo. Os resultados foram publicados no livro “Incarceration Nations: A Journey to Justice in Prisons Around the World”. Nele, a jornalista afirma que “presídios são obsoletos e só agravam a violência”. Um dos capítulos do livro fala sobre as cadeias brasileiras. Principalmente, as que importaram o molde de cadeia “supermax” (prisões de segurança super-máxima) dos Estados Unidos.

Em entrevista à Carta Capital, quando perguntada sobre a situação dos presidiários, ela responde: “Pura tortura psicológica. O confinamento em solitárias é inacreditavelmente intenso. O que vi e conversei com os prisioneiros é que psicologicamente são torturados por ficarem tantas horas sozinhos por dia. Há anos sem ver a família. Isso prejudica a saúde mental deles. Minha visita ao Brasil é um dos capítulos mais sombrios do livro, justamente por causa dos horrores do confinamento em solitárias. É perigoso para seres humanos, é cruel”, conta a jornalista.

Baz diz ainda que “as ‘supermaxes’ são o extremo oposto da reabilitação social. Pois produzem tensão psicológica, o que leva à produção de mais crimes. A maioria dos presos com quem conversei não tiveram oportunidades de se reabilitar socialmente. Se quisermos fazer isso, precisamos criar espaços saudáveis no qual eles aprendam, cresçam e estejam perto da família”, sugere.

Para mais informações sobre a questão da Saúde mental dos agentes penitenciários, acompanhe na reportagem: “Os dois lados do encarceramento: os impactos prejudiciais na saúde mental” dessa mesma edição.

*O nome do entrevistado foi alterado para preservação da identidade.

Repórter: Felipe Marsola Monteiro

Produtora Multimídia: Júlia Pascoal

Editora: Thais Barion

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *