Estudos sobre a performance de pessoas trans no esporte são recentes e tema provoca muitas discussões
Quando conhecemos Valkyria Vonshiroder ou Tinker (seu apelido na faculdade), alguns detalhes chamam a atenção. Ela é uma mulher alta, de olhos claros, personalidade divertida e um pouco irônica. Vestida com as roupas do volêi da Unesp Bauru, ela demonstra orgulho pelo time e pela Universidade. Antes de entrar na Unesp, quatro anos atrás, ela já jogava no time de base de sua cidade, Bariri. “Eu jogo desde pequenininha, mas eu comecei a treinar mesmo há quase 08 anos”, conta a atleta.
No começo da faculdade, Tinker treinava tanto com o time masculino quanto com o feminino, mas competia somente pelo masculino. Porém, a sensação de que não se encaixava ali sempre a acompanhou. “Teve um dia que eu tava jogando na Copa Fupe (Federação Universitária Paulista de Esportes) e eu já tinha um cabelo maior, unha feita, batonzinho sempre. Na hora que eu entrei em quadra, escutei um ‘saca na Tifanny’. Eu me achei, eu fiquei um nojo (risos). Porque eu queria ser ela ”.
No início de 2018, Valkyria decidiu que era hora de jogar pelo time feminino da Unesp. “Eu conversei com a Atlética, perguntei se tinha a possibilidade de jogar na categoria que eu me identifico. Eles compraram essa ideia e levaram para a Liga”, revela.
Antes disso, ela já jogava no feminino pela sua cidade, e sempre cumpriu todo procedimento de apresentar a documentação com nome social e realizar os exames de testagem hormonal. Na Unesp, ela não precisa seguir esse processo, já que isso é contra o regulamento dos esportes universitários. A primeira barreira que encontrou, então, foi a treinadora. Desde o princípio, ela foi contrária à presença de Valkyria no time.
Com a ajuda da Atlética e com muito diálogo, Tinker conseguiu entrar no time e competir no Inter. Apesar disso, revela que ainda se sente menosprezada. “Essa foi uma barreira que eu tive que derrubar a força. Mas ela não me coloca no time principal. E esse ano eu continuo em time secundário com bixetes que são muito inferiores tecnicamente”.
Para Valkyria, a Unesp deveria trabalhar mais esse aspecto, promovendo diálogo e debate. “Se alguém chega e fala ‘eu sou contra trans jogarem’, eu acho importante que se tenha um diálogo. Porque a gente tem literatura, estudo e embasamento teórico para apresentar, então dá para trabalhar junto com os treinadores, conscientizando e conversando”, enfatiza.
Menino bom de bola
Na cidade de São Paulo, um time de futebol se reúne todo domingo na quadra do Sindicato dos Bancários. Raphael Martins, um são paulino de sorriso tímido, conta que através do facebook conseguiu reunir e formar o primeiro time trans do Brasil, os Meninos Bons de Bola. “Teve a participação de uns 30 homens. Eu nunca tinha visto tantos homens trans juntos, eu tinha poucos contatos. Aí a gente viu a importância desse time, muitos meninos depois do hormônio começaram a engordar muito e ficaram mais irritados. Então nós começamos a treinar todo domingo e fazer uma roda de conversa com uma psicóloga”, comenta Raphael.
Antes de conseguir a quadra, eles jogavam em espaço públicos e sofriam com comentários violentos e quase foram agredidos. “No começo a gente sofria um pouquinho mais. A maioria tava no começo da transição, então as pessoas tinham muita dificuldade de reconhecer o nosso gênero”, destaca.
Raphael conta que passou por situações desagradáveis, até mesmo num torneio voltado para o público LGBT, a Taça Hornet. Lá eles jogaram contra times formados por homens gays e ouviram comentários preconceituosos. “Ele diziam ‘Ah a gente tem que ganhar desse time de meninas’. Tentamos conversar com a organização e eles falaram que isso não era nada demais. A partir daí a gente decidiu não participar mais de nenhum campeonato que tivesse os envolvidos, porque eles não estão preparados para lidar com a transexualidade. Para eles, um homem tem que ter um pênis, mas isso tá muito além de uma genitália”.
Os Meninos, então, escolheram continuar jogando com homens cis héteros sem se identificar como trans. “Às vezes a gente prefere mesmo jogar com os caras cis e caso rolar alguma piada, tentar conversar, do que ficar quebrando a cabeça direto com caras gays desse movimentos”.
Ganhando ou perdendo não paro de cantar
Desde que os Meninos Bons de Bola conseguiram o campo do Sindicato dos Bancários, Raphael notou uma diferença na torcida. “Depois dessa quadra, a gente começou a promover uns torneios e chamar vários times. Hoje, a gente tem até uns fãs, eles gritam, apoiam e a gente vê que não tá sozinho e que precisa continuar lutando”, revela.
Mas a torcida nem sempre é assim, e estar ali no meio também pode ser sinônimo de grande desconforto. O Esporte Clube Bahia anunciou em Janeiro deste ano que passaria a adotar o nome social para pessoas trans sócias do clube. “O futebol une pessoas, reconcilia conflitos e promove igualdade. Por outro lado, também se revela como reflexo da sociedade ao ser, lamentável e paradoxalmente, um ambiente de reprodução de homofobia, machismo, racismo, transfobia e outras muitas formas de preconceito”, declarou o time em nota. A iniciativa do clube, no entanto, é um caso isolado.
O são paulino Raphael confessa que não consegue frequentar estádios. “Eu não faço parte de torcida (organizada), porque eu acho que é um ambiente machista e violento. Não consigo nem ir em estádios, pois eu já sofri violência. Eu acho que deveria ter uma sensibilização maior, pra deixar a gente torcer e jogar em paz”.
Apaixonada pela SESI Bauru, Valkyria concorda que a transexualidade não é trabalhada o suficiente pelo clube. “Eu gosto muito do Sesi, mas eu acho que o time poderia conversar mais com a população, com os torcedores, com os árbitros e técnicos de outros times, isso evitaria muitas polêmicas e situações desnecessárias”. Por outro lado, ela revela que a torcida da Unesp Bauru é muito acolhedora, e que ouvir o grito de “Coloca a Tinker” a estimula a continuar jogando.
Jogo Limpo
No Brasil, onde a expectativa de vida é de 75 anos, uma pessoa trans vive, em média, 35. A inclusão dessas pessoas no esporte é algo recente e com casos isolados. A tenista Renée Richards foi a primeira atleta trans profissional da história. Seu principal resultado veio em 1977, disputando a final do torneio de duplas do Aberto dos Estados Unidos e ocupando o 20ª lugar no ranking mundial. Em 2017, a brasileira Tiffany Abreu estreou pela equipe de vôlei do SESI e, desde então, é alvo de polêmicas dentro e fora das quadras.
Quando se trata de homens trans, os casos são ainda mais raros. Em 2015, Chris Mosier foi o primeiro a se qualificar para a equipe dos Estados Unidos no Mundial de duatlo (ciclismo e corrida).
Uma consequência dessa exígua representatividade é a pequena quantidade de estudos sobre a performance de atletas trans. O Repórter Unesp ouviu dois especialistas na área para saber o que há de consolidado e o que ainda precisa ser estudado.
Joanna Harper – pesquisadora da Universidade de Portland (EUA), consultora do COI (Comitê Olímpico Internacional) e autora do primeiro estudo sobre performance de mulheres trans no esporte, publicado em 2015.
Rogério Friedman – endocrinologista, especialista em esporte e membro da Comissão de Autorização de Uso da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (CAUT ABCD) do Ministério do Esporte.
Confira a entrevista!
Discute-se que o tratamento hormonal para mulheres trans não “apagaria” as mudanças causadas pela puberdade. Qual a sua opinião e suas descobertas sobre o assunto? Deve ser considerado verdadeiro mesmo que a pessoa em questão tenha passado pelo tratamento muitos anos após a puberdade?
Joanna: Eu acho que nós devemos fazer estudos cuidadosos e cada esporte deve ter sua própria regra. Se você comparar quaisquer grupos diferentes de atletas, nós teremos vantagens e desvantagens. Falando especificamente de mulheres trans, elas apresentaram sim diferenças em relação às outras mulheres, em relação à mulheres cis. Em média, as mulheres trans podem ser mais altas e grandes e essas características não mudam. Porém, sua massa muscular cai, assim como sua rapidez e capacidade motora, e isso também é uma desvantagem. Isso não é óbvio quando você apenas olha para uma mulher transgênero que é maior que as outras, mas essas desvantagens estão lá.
Rogério: O que se sabe de fato é que o tratamento hormonal tem um impacto muito grande nas características físicas. Quando se está tratando uma mulher trans, através de hormônio feminino, existe uma perda enorme de massa muscular, de força e de velocidade. Isso a gente já sabia muito antes de se começar a tratar pessoas transgêneros, porque a gente tem experiência em quando se tratava câncer de próstata com hormônios. E já desde aquela época a gente tem dados que mostram que existe uma diferença drástica e que o paciente com performance semelhante a mulheres cis da mesma faixa etária. Não há dados contrários conclusivos. Existe uma questão, altamente especulativa, sobre comportamentos e alguns tipos de respostas, como agressividade e rapidez no raciocínio, mas tem pouca ciência em torno disso. E a experiência que a tem com atletas transgêneros, que são pouquíssimas, é que as mulheres trans acabam tendo resultados semelhantes as mulheres cis.
Quais são os cuidado em relação a homens trans? É possível ter problemas com doping?
Rogério: Hormônio feminino (estrogênio) não é considerado doping, porque, do ponto de vista físico, ele traz desvantagem. Hormônio masculino é doping, nenhum atleta pode usar sem uma autorização especial. Então um homem trans precisa de autorização para receber testosterona. No momento em que a testosterona atingir níveis masculinos, ele não pode mais competir com mulheres cis. A WADA (Agência Mundial Antidoping) exige também que o atleta esteja em tratamento com um médico que se responsabilize pela reposição hormonal. Além disso, dependendo da federação em que ele compete, tem que ter um período mínimo de estabilização. Isso varia muito, para algumas é de seis meses a um ano, enquanto outras chegam a exigir até dois anos.
Ao analisar esportes que enfatizam ou exigem contato físico, como o combate a MMA, os critérios de avaliação devem ser os mesmos?
Joanna: Em esportes de combate, como Boxe e MMA, os atletas são divididos por peso. E mesmo que as mulheres trans sejam maiores na média, elas não são maiores que as mulheres cis da sua categoria. Nós ainda não sabemos se elas são mais fortes, mas eu suspeito que a resposta seja não. Não existe um problema, porque elas estão lutando com atletas do mesmo peso e tamanho que elas.
Rogério: Os critérios legais são os mesmos, é tudo baseado nos níveis circulantes dos hormônios. E se a gente consegue garantir que esses níveis são compatíveis ao gênero desejado, o problema está resolvido.
Ouça um trecho da entrevista em inglês com a pesquisadora Joanna Harper. Você pode ativar a legenda na configuração do vídeo
Atualização – 15 de maio de 2019
O Repórter Unesp havia tentado entrar em contato com a técnica Joanil Soares para saber sua versão sobre o caso da Valkyria. Inicialmente, ela não nos respondeu. Após a publicação da reportagem, no dia 13 de maio, ela entrou em contato com a repórter pedindo direito de resposta. A nota está publicada na integra:
“Essa conversa foi com a presidente da Atlética, Helena, em 2018. Nela foi colocado que havia sido realizada uma reunião com os demais campi da UNESP e que aprovaram a inclusão de atletas trans na equipe feminina ou masculina. Embora, no ano anterior o Tinker e outros atletas já treinassem com o vôlei feminino, onde sempre nos auxiliavam nos treinos. Em uma de nossas conversas informais, o atleta ventilou essa possibilidade e eu
sempre expus de maneira sincera e objetiva os meus posicionamentos.
Em 2017, eu disse tanto para o Tinker quanto para a presidente que a minha resposta era a mesma: que não concordo no ponto de vista fisiológico, mas se a Atlética de Bauru e demais concordavam, Tinker poderia sim compor a equipe de Bauru, sendo avaliada como as demais por nível técnico. Até ontem, sempre achei que fosse tranquilo e verdadeira a nossa relação. Além do que participou de jogos como Desafio de Rio Claro/2018 e o InterUnesp. Eu cobro como cobro as demais e não tenho preocupação alguma de corrigir ou chamar atenção das atletas. Quero ressaltar, e com testemunho da equipe feminina e masculina, a forma acolhedora e motivadora com a qual sempre tratei, dispensando sempre respeito e carinho como pessoa”.
Repórter: Michelly Neris Alves
Produção multimídia: Amanda Melo
Editora: Daiane Tadeu
2 thoughts on “Atletas trans encontram preconceito e acolhimento no esporte”