Dependência química: uma questão atemporal

Browse By

Por meio de um paralelo entre os anos 90 e os dias atuais, entenda como a dependência química nunca deixou de impactar a vida dos brasileiros

Historicamente, a humanidade sempre procurou por substâncias que causassem algum tipo de alteração em seu humor e em suas percepções e sensações. Os motivos não seguem um padrão fixo, variando de indivíduo para indivíduo. Cada pessoa tem necessidades, impulsos ou objetivos que as fazem agir de uma forma ou de outra e a fazer escolhas diferentes.

Contudo, o uso indiscriminado de tais substâncias provocam efeitos maléficos para os usuários, que podem se tornar reféns das drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas. A dependência química pode contribuir com a manutenção de vários problemas sociais, econômicos e de saúde enfrentados no país.

O consumo de drogas entre 1988 e 1999

A humanidade tem uma longa convivência com psicotrópicos, substâncias psicoativas, que há milênios são empregados em diversas situações, que vão de ritos indígenas a festas romanas. Portanto, traçando um paralelo entre a década de 1990 e os dias atuais, é possível perceber que as drogas sempre estiveram presentes na sociedade. Apesar disso, números variam de uma época para a outra.

Assim, pensando em drogas lícitas, no período de 1988 a 1999, em hospitais e clínicas psiquiátricas de todo o Brasil, o álcool foi o responsável por cerca de 90% de todas as internações hospitalares por dependências.

 

Em relação às drogas ilícitas, até os anos de 1990, a heroína injetável era o que havia de mais autodestruidor no mundo. No entanto, no Brasil, havia uma menor incidência da substância. Uma possível explicação se dá pela divulgação dos malefícios da droga em campanhas contra o seu uso. Isso aconteceu principalmente a partir da década de 1980, quando houve um pico de consumo mundial.

Por outro lado, essa tese é questionável se considerada a quantidade de publicidade negativa feita sobre o crack. Isso porque a utilização dela apenas se intensificou a partir dos anos de 1990. Em São Paulo, o crack ainda hoje é a droga mais vendida em favelas e entre as pessoas em situação de rua.

Mudanças de comportamento

Os últimos 30 anos contaram com diversas mudanças em relação a costumes, forma de interação social e noção de grupo em todo o mundo. Isso aconteceu especialmente para as faixas etárias que usam drogas com maior frequência – entre os 15 e 30 anos de idade.

 

Segundo o psiquiatra Marcelo Kimati, com especialização em política de drogas, a forma de interação social, a identificação em grupo e a sexualidade sofreram mudanças impactantes. Certamente em função do surgimento de plataformas digitais de agrupamento social.

“Da mesma forma, tivemos uma explosão do uso de drogas lícitas, antidepressivos e ansiolíticos a partir da década de 1990. Hoje, os psiquiatras começam a se dar conta que estes psicotrópicos, ainda que lícitos, desenvolvem formas graves de dependência química. Houve ainda a popularização e ritualização de uso de novas drogas sintéticas, como o êxtase e seu uso em raves. E, atualmente, vivemos no país um movimento conservador, com um forte eixo neopentecostal que tem ganhado espaço legislativo com o financiamento público de comunidades terapêuticas com práticas curativas de cunho religioso”, aponta o profissional.

Números da dependência

De acordo com pesquisa recente, de abrangência nacional, divulgada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mais de dois milhões de pessoas apresentaram comportamentos de dependência do álcool e mais de um milhão e meio de pessoas entre 12 e 65 anos disseram que usaram crack alguma vez na vida. Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas, 35 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de transtorno por uso de substâncias químicas. Entretanto, apenas uma em cada sete recebe tratamento.

Kimati ainda destaca que é impossível dissociar o uso de drogas da forma com que as pessoas vivem. “O ser humano é um usuário de drogas e sua forma de consumir é definida, histórica e socialmente, por meio da criação de vínculos, rituais, significados atribuídos. Uma vez que estamos num processo de rápida transformação de costumes, vinculação e comunicação, é natural que novas drogas e novas formas de uso surjam”, finaliza.

Cenário brasileiro atual

O álcool é a substância psicoativa com maior utilização e dependência no Brasil. Segundo números da Organização Mundial da Saúde (OMS), a ingestão de bebidas alcoólicas pelos brasileiros acima de 15 anos acelerou significativamente em uma década.

 

Risco conforme o consumo

Além do álcool, a cannabis teve uma ascensão significativa no país. De acordo com os dados do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad), 1,5 milhão de brasileiros consomem maconha todos os dias.

No entanto, se comparada com outros países, a proporção de brasileiros que já experimentou e consumiu a droga no último ano (7% e 3% da população, respectivamente) é pequena. Contudo, um aspecto em específico chama atenção no relatório do Lenad: 1,3 milhão de usuários apresentam sintomas de dependência da maconha.

 

Devido à dificuldade de quantificar a maconha que atinge a corrente sanguínea, não há doses formais definidas de THC (substância psicoativa encontrada na cannabis) que produzem a dependência.

O risco de se tornar dependente aumenta conforme a extensão do consumo. Apesar disso, alguns usuários diários não se tornam dependentes nem desejam parar de consumir. Assim, maioria das pessoas que utilizam a droga não cria uma relação de dependência com a mesma. Dessa forma, uma minoria desenvolve uma síndrome de uso compulsivo semelhante à dependência de outras substâncias, como aponta os dados do Lenad.

Por trás do uso nocivo

As drogas podem ser ingeridas, fumadas, inaladas ou injetadas. No último caso, os efeitos podem ocorrer mais rapidamente e de forma mais intensa. Portanto, os usuários de drogas injetáveis (UDI) estão expostos à dupla via de contaminação e se constituem em importantes transmissores de doenças como o HIV, por exemplo.

 

O compartilhamento de agulhas, seringas e demais equipamentos para uso de drogas endovenosas constituem um número alarmante em relação à Aids. Entre 2011 e 2014, houve um aumento de 33% nas novas infecções por HIV entre os UDI.

O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) estima que as pessoas que usam drogas injetáveis são até 24 vezes mais propensas a viver com o HIV do que a população em geral. Apesar disso, estes usuários são frequentemente sujeitos à exclusão e marginalização, ficando fora do alcance de serviços que priorizam a saúde e os direitos humanos.

Por meio da página da UNAIDS, é possível saber como buscar ajuda e quais são os direitos das pessoas infectadas pelo HIV.

Tratamento e reinserção social

Segundo o Observatório Brasileiro de Informações Sobre Drogas (Obid), a dependência química é considerada uma doença multifatorial que não está restrita a qualquer grupo social, racial ou etário.

 

As pessoas acometidas por esta doença têm garantido por lei o direito à assistência intersetorial, interdisciplinar e transversal. Por tanto, isso implica em ter disponível uma rede de atenção psicossocial ampla, capaz de suprir as necessidades particulares de cada indivíduo, oferecendo o tratamento adequado.

O impacto social devido ao uso abusivo de drogas é grave e, muitas vezes, excludente. Por esse motivo, a reinserção social do paciente faz parte do tratamento da dependência química. A pessoa deve contar com apoio assistencial que compreenda o amparo às suas necessidades fundamentais.

“O acompanhamento psicológico desde os primeiros momentos da apresentação de sintomas de abstinência são essenciais. Apoiar os familiares e promover relações sociais saudáveis são as principais formas de alavancar o tratamento e ajudar a reduzir possíveis recaídas dos usuários”, explica a assistente social Rosângela Souza, que presta atendimento psicossocial no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) do município de Bauru, em São Paulo.

Cuidar da mente é importante

Além disso, o tratamento psicológico para dependentes químicos irá contribuir para que alguns dos distúrbios causados pela abstinência sejam aliviados. É válido ressaltar que tanto os psicólogos quanto os psiquiatras podem fazer esse tipo de acompanhamento, tudo depende do quadro clínico do usuário.

 

“A apropriação, pelo campo da saúde mental, do uso de drogas não é hegemônico. Ao mesmo tempo em que a psiquiatria em geral se esforça sem sucesso em garantir a interrupção do uso de drogas ilícitas de seus pacientes, encarrega-se de criar uma imensidão de pessoas dependentes de drogas lícitas, prescritas pelos próprios médicos”, pontua o psiquiatra Marcelo Kimati.

Como ajudar os pacientes?

A intervenção dos médicos pode ocorrer de diversas maneiras, variando de acordo com as necessidades dos usuários. A técnica adotada só poderá ser definida depois de uma análise precisa do caso pelo profissional, onde serão identificadas as causas da dependência e definida a melhor forma de tratamento.

As técnicas adotadas pelo médico poderão ser modificadas conforme a maneira que o usuário está reagindo ao tratamento psicológico para dependentes químicos. O objetivo está em atingir resultados duradouros e satisfatórios.

“É importante que haja um acompanhamento de perto com os familiares também e, principalmente, que não sejam prescritos apenas remédios, mas que haja um tratamento humanizado, onde o usuário se sinta à vontade para falar sobre seus traumas e, dessa forma, iniciar um processo de superação. Somente enfrentando aquilo que, de fato, provoca o uso nocivo das substâncias químicas é que o paciente conseguirá se afastar do vício”, finaliza a assistente social.

 

Repórter: Marina Borges

Produtor multimídia: Guilherme Ribeiro

Editora: Fernanda Fernandes

Editora-chefe: Nayara Campos

*Esta edição foi atualizada às 14h58 do dia 06 de novembro de 2019. Foi acrescentado o significado da sigla Lenad (Levantamento Nacional de Álcool e Drogas). O título do terceiro infográfico foi de “A maconha no Brasil” para “O consumo da maconha no Brasil”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *