Os impactos da pandemia no mercado editorial
Em 2020, o surgimento de um novo coronavírus altamente contagioso fez com que a Organização Mundial da Saúde declarasse emergência de saúde pública em todo o planeta. O vírus, que assolou em diferentes graus a maioria dos países do globo, exigiu mudanças bruscas e repentinas no modo de vida que, antes, era usual. Isso porque uma das principais medidas adotadas pelas autoridades sanitárias para conter o rápido avanço do contágio foi o isolamento social – processo ainda em curso. Em pouco menos de dois anos, muitos setores tradicionais de nossas vidas em sociedade sofreram grandes modificações, precisando se adaptar à nova dinâmica universal, e comercialização de livros não saiu ilesa disso.
Uma vez que o mercado editorial já vivenciava um longo momento de queda, os problemas consequentes da pandemia se somaram à proposta de taxação dos livros, e a combinação de fatores não foi nada positiva para o setor. O processo de produção das editoras ficou mais caro, os eventos presenciais que divulgavam obras independentes deixaram de acontecer, e pouco a pouco a situação se deteriorou. Além disso, o isolamento nos colocou cara a cara com as novas tecnologias, e o que antes eram produtos e aplicativos opcionais passaram a apresentar caráter de necessidade. E mesmo com o “novo normal”, novas alternativas de sobrevivência para o mercado editorial não se mostraram plenamente eficazes, de modo que mesmo o grande crescimento visto no consumo de livros digitais ainda representa uma parcela mínima do faturamento das editoras
A digitalização da leitura
Entre as principais mudanças comportamentais derivadas das medidas restritivas para o combate ao coronavírus, é possível citar aquelas relacionadas aos hábitos de consumo. Visto que a quarentena teve que, literalmente, fechar as lojas físicas, a adesão ao comércio eletrônico foi recorde em 2020. Segundo estudo realizado pela Mandalah, empresa de consultoria em inovação consciente, o setor teve um crescimento de 75% durante a pandemia, e um alto índice de criação de novas lojas que circulam apenas de forma online.
Para Elói Senhoras, docente acadêmico da Universidade Federal de Roraima, estas alterações já eram esperadas. Em sua obra Mudanças de comportamento, na economia e no trabalho: Como as epidemias transformam o mundo, o autor afirma que “em séculos anteriores, a disseminação explosiva de doenças ajudou a abalar impérios e alterar modelos econômicos, redesenhou cidades e favoreceu mudanças de comportamento.”
Os hábitos dos consumidores de livros não fugiram a essa regra. Recentemente, a Bookwire divulgou um relatório que compreende o impacto da Covid-19 e do lockdown nas vendas de livros digitais e consumo no Brasil. A análise foi conduzida entre setembro e outubro de 2020 e se estende em três períodos distintos: pré-isolamento (29/12/2019 a 14/03/2020), durante o isolamento (15/03/2020 a 31/05/2020) e pós-isolamento (01/06/2020 a 16/08/2020).
No geral, os resultados da pesquisa apontam que “as compras de ebook aumentaram num ritmo impressionante, com padrões muito distintos que se diferenciavam entre categorias de gênero, à medida que claramente novos públicos começaram a descobrir os livros eletrônicos. Mesmo depois que o período de isolamento foi sendo gradualmente encerrado, níveis médios de compra permaneceram significativamente mais altos do que apenas alguns meses antes do início da pandemia.”
Dados mostram que, em 2020, foram comprados 83% mais ebooks que em 2019, num aumento de 4,6 milhões para 8,4 milhões de unidades vendidas. Além disso, as ofertas gratuitas representaram uma grande parte dos downloads durante o pico de isolamento. Numa tentativa de atrair mais leitores, descontos mais robustos foram ofertados, o que explica como o crescimento da receita foi menor que o do número de ebooks vendidos: o valor pelo qual os livros foram comercializados caiu 25% entre 2019 e 2020.
Campanhas de marketing impulsionaram produtos para os consumidores, principalmente nos dois primeiros meses da pandemia, e mesmo após um abrandamento do isolamento e uma diminuição nos ritmos das campanhas, os números de vendas continuaram a subir. Os pesquisadores chegaram à conclusão, então, de que a pandemia em criou novos leitores e trouxe aqueles que já leem constantemente para mais perto do digital.
A produção de livros
Apesar do crescimento das vendas de livros digitais (e-books e audiolivros), este formato representou, em 2020, apenas 6% do faturamento das editoras brasileiras. Os livros físicos ainda ocupam a maior parte do mercado. No início da pandemia, houve o fechamento das livrarias, o que causou grande impacto neste primeiro momento, e fez com que o mercado precisasse se adaptar para o comércio digital para continuar a atender seus clientes.
A tecnologia teve um papel fundamental para a sobrevivência do mercado durante a pandemia. As vendas online por sites das livrarias e também das próprias editoras contribuíram para a retomada do mercado, de acordo com o Professor Jézio Hernani Bomfim Gutierre, diretor-presidente da Fundação Editora da Unesp. “O aperfeiçoamento de sites eletrônicos de vendas e também um novo alento para as publicações digitais fizeram com que as editoras suportassem bastante bem este período de pandemia”, ele diz.
Em relação aos custos de produção de livros, a pandemia não trouxe um aumento tão significativo. No seu processo de fabricação, um livro passa por várias revisões, edição, diagramação, criação de uma capa e, no caso da versão física, a impressão na gráfica. O valor investido varia de acordo com as características do livro, como tipo de papel e de capa. Foi justamente na parte gráfica que houve um aumento de despesas devido à importação de insumos, que ficam sujeitos à variação do valor da moeda, como explica Jézio Gutierre: “Os insumos que são importados pelas gráficas acarretam um aumento de custos e a indústria editorial se ressente disso, mas efetivamente, a pandemia não afetou os custos de produção”.
Ouça o que diz o Professor Jézio Hernani Bomfim Gutierre sobre os custos de produção um livroOs impactos na sociedade
Os efeitos da pandemia de Covid-19 não foram sentidos apenas na economia brasileira. Um relatório feito pela Unesco em parceria com o Laboratório de Pesquisa e Inovação em Educação para a América Latina e Caribe (SUMMA) revela que a pandemia aumentou a desigualdade educacional na América Latina e no Caribe. A pesquisa mostrou que um em cada dois jovens na região não atinge o nível mínimo de proficiência em leitura.
Um projeto de reforma tributária do governo federal em relação ao setor editorial enviado ao Congresso em julho de 2020 gerou insegurança em relação à possibilidade de um aumento ainda maior das desigualdades socioeducacionais e da pobreza educacional no Brasil. A nova proposta de tributação poderia aumentar o preço dos livros em até 20%, limitando o acesso da população mais economicamente vulnerável à cultura e à educação.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, sustentou a medida na frágil argumentação de que os livros são um produto consumido pelos grupos mais ricos da população, gerando portanto um impacto pífio no acesso à leitura, que por sua vez poderia ser mitigado por políticas públicas direcionadas. A mensagem passada foi de que a atual elitização da leitura no Brasil não é para muitos um desafio a ser superado, mas uma oportunidade de arrecadação tributária.
Em resposta, entidades representativas do livro no Brasil criaram o manifesto em Defesa do Livro, que sustentava o objetivo primário da atual isenção sobre os livros, dificultado pela medida em questão: o de “tornar o papel acessível às mais diferentes vozes no debate das questões nacionais, garantindo o suporte material para a livre manifestação de opiniões”.
Para o economista da Universidade de São Paulo Júlio César Corradini, não é possível separar a crise do setor literário da elitização da liberdade de opinião. “Pensando pela ótica de um produto, quando um produto fica mais caro, das duas uma: ou o consumidor procura bens substitutos de valores mais acessíveis ou deixam de consumir. No caso aqui, livros mais caros também resultam em queda de vendas, o que, por sua vez, enfraquece ainda mais editoras e as impede de investir em novas publicações – especialmente aquelas de menor apelo comercial, mas igualmente importantes para a pluralidade de ideias.”
A origem da determinação de isenção sobre os livros data de 1946, quando o escritor Jorge Amado, autor de obras como Gabriela Cravo e Canela, Capitães de Areia, O País do Carnaval e outros clássicos da literatura e que na época atuava como deputado federal, apresentou uma emenda constitucional que determinava a isenção de impostos sobre o papel usado para imprimir livros, revistas e jornais. Mais tarde, a isenção passou a valer para o livro como produto final e, de lá para cá, ganhou garantia tanto pela Constituição de 1988 quanto por uma lei de 2004.
A medida tinha um simbolismo para além de fatores econômicos: não basta que os livros com relevância social sejam publicados, é necessário que eles cumpram sua função social e educacional nos mais diversos setores da sociedade brasileira.
O livro não deve ser visto como um artigo de luxo ou privilégio de poucos, pois aí se teria uma postura totalmente contrária a nossa história recente, onde os nossos mais expressivos autores usaram a arte da escrita para quebrar barreiras sociais e econômicas, levando ao povo novas maneiras de se enxergar o mundo que se está inserido e até a si mesmo, tendo aí um campo fértil de luta contra racismo, machismo, xenofobia, misoginia, homofobia e outras chagas da sociedade. Uma sociedade com menos leitores e menos livros seria uma sociedade sem poder de consciência e argumentação. Um país que tem em sua história já um marco artístico e literário, como foi a semana de arte moderna não pode considerar que livro, conhecimento e liberdade é algo restrito.
Júlio César Corradini
Os impactos das desigualdades sociais e econômicas brasileiras alimentadas pela pandemia de Covid-19 são ainda mais abrasivas para as classes com alta vulnerabilidade econômica, bem como para setores produtivos de baixo apelo comercial, que passam a perceber a resiliência e a segmentação de público como ferramentas de trabalho.
O escritor independente
José Júnior em sua tese Girafas e bonsais: editores ‘independentes’ na Argentina e no Brasil (1991-2015, define a produção independente como “aquela que está fora – ora por escolha, ora por condição – dos circuitos e mercados massivos; que não adota as lógicas dos grandes conglomerados de cultura e mídia; que se identifica com métodos artesanais de produção, com o experimentalismo estético e/ou com discursividades dissonantes, alternativas, contra-hegemônicas”.
Uma pesquisa realizada pela consultoria Nielsen para a Revista Época constava que as editoras independentes cresceram 12,97% em volume e 4,58% em faturamento no acumulado das 28 semanas de 2018 em comparação ao mesmo período de 2017.
A editora independente não possui recursos para investir em grandes tiragens por não ter vinculação com grandes empresas e investidores. Geralmente possui uma equipe pequena e busca atender temas que as grandes editoras não publicam, não focando apenas no potencial de venda do tema do livro. Para Natália Okamoto, editora na Editora Andarilho, “Uma editora independente é aquela que preza pelo leitor ao invés de só produzir massivamente e crescer”.
A pandemia de Covid-19 afetou o processo de produção pelo aumento dos preços de insumos e a comunicação online durante as etapas de produção. Como dependiam de livrarias e eventos físicos para fazer as vendas, foi necessário fazer a adaptação às pressas, pensando em novas maneiras de atrair o leitor. Ações como roda de leitura no Instagram, disponibilização de livros gratuitos e sorteios foram algumas opções encontradas, relata Natália.
Uma grande dificuldade de editoras independentes é: “Encontrar leitores dispostos a pagar por livros de uma editora pouco conhecida e pequena, fora isso também a editora tem que encontrar formas de se manter, tem que criar todo o cenário para chamar a atenção da internet. E para piorar, tem que dividir esse espaço com grandes editoras que possuem maior estrutura para continuar crescendo” finaliza Natália.
Já os escritores independentes, aqueles que não possuem editora e nem agente literário, também sentiram os efeitos da pandemia. Gabriel Goto é professor de português e escritor independente e atualmente o seu processo de produção está mais focado na pré-escrita do que na escrita em si. “Ler acaba me inspirando a escrever”, mas devido aos fatores externos como o desânimo faz com que diminua a frequência de leitura e consequentemente diminuindo a escrita também.
As duas profissões exercidas por ele acabam se complementando, pois nas aulas está sempre falando de literatura. Enquanto não está produzindo conteúdo para as aulas, está escrevendo (apesar de não estar no momento, devido ao contexto atual), e vice-versa, encaixando os horários e encontrando uma maneira de conciliar os seus trabalhos.
Confira abaixo a entrevista completa com o Gabriel Yukio Goto:
Giuliana Murakami também é escritora independente, além de atuar como advogada. Já para ela, por conta do escritório de advocacia estar atuando em home office, a sua produtividade aumentou durante a pandemia por estar tendo um horário mais flexível para escrever. E é justamente o tempo a principal dificuldade para conciliar as duas profissões por ele ser muito escasso.
Em relação às vendas dos seus livros físicos, foi preciso fazer promoções e a quantidade vendida foi um pouco menor do que seria se estivesse participando de eventos literários físicos. Em contrapartida, os seus livros digitais publicados na Amazon, através do Kindle Direct Publishing, uma plataforma de autopublicação, venderam muito mais. Como foram feitas várias promoções de assinatura gratuita do Kindle Unlimited, as pessoas começaram a baixar livros de autores independentes brasileiros também, conta ela.
Confira abaixo a entrevista completa com o Giuliana Murakami:
Giuliana recomenda para quem começar a escrever ter paciência e resiliência. “Eu acredito que sejam os dois elementos que produzem uma forma muito importante para a nossa saúde mental, primeiramente porque estamos em uma era tecnológica que tudo tem que acontecer ao mesmo tempo. A resiliência e paciência são importantes porque é normal ouvir não, é normal ser criticado, é normal ser rejeitado em editais”. Já as dicas práticas são conhecer o mercado e entender as demandas, ter contato com pessoas do mercado editorial, conhecer o seu público. “Antes de tudo, vocês são escritores, não se esqueçam disso” complementa ela.
Redação: Anna Luiza Dias, Beatriz Oliveira, Ellen Sayuri, Isabella Pilegis e Olívia Ambrozini