Luta antimanicomial completa 29 anos e segue reivindicando
Integrantes do movimento desafiam a lógica das internações hospitalares e destacam serviços alternativos
Dia 18 de maio é comemorado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. A data é significativa para reforçar os direitos das pessoas com transtornos mentais e a constante luta por um tratamento humanizado, sem violações e isolamentos. O dia não foi escolhido ao acaso. Neste mesmo dia em 1987, Bauru (SP) recebeu o Encontro Nacional dos Trabalhadores da Saúde mental, um marco na história da luta, que reuniu 350 pessoas e, a partir de então, o movimento foi concretizado no Brasil.
A luta preocupou-se em incorporar não somente trabalhadores da saúde mental, mas também usuários e familiares, todos juntos contra as violências cometidas nos hospitais psiquiátricos. Com o lema “por uma sociedade sem manicômios”, denunciava-se as atrocidades, os maus-tratos e reivindica-se a implementação de modelos substitutivos às internações.
As primeiras reivindicações no Brasil, entretanto, já existiam desde o final dos anos 70, no contexto da ditadura militar. Sob influência da Itália, que determinou o fechamento de todos os hospitais psiquiátricos, o Brasil iniciou as discussões favoráveis a uma reforma psiquiátrica. Em 1989, o deputado federal Paulo Delgado (PT) inspirou-se no modelo italiano para criar o primeiro projeto de lei que dispõe sobre os direitos das pessoas com transtornos mentais e determina o fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos. O projeto foi aprovado somente em 2001, com emenda que permite a internação após todos os outros recursos se mostrarem insuficientes e visando a reinserção social do paciente. A lei ficou conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216/01).
Para Osvaldo Gradella, professor de Psicologia com ênfase na área da Saúde Mental e atuante na luta antimanicomial, a permanência das internações, mesmo seguindo as determinações da Reforma Psiquiátrica, não se justifica. “Eu, como muitos do movimento, digo que hospitais são desnecessários. Eu acho que qualquer problema de saúde mental pode ser atendido de forma aberta. Os hospitais criam um espaço de estigmatização do sujeito e da doença mental. Quanto maior o estigma de doente mental, mais difícil é a ressocialização. No capitalismo, a ressocialização só acontece se você tem um emprego. Às vezes a pessoa tem um emprego, por mais precário que seja, mas se eu retiro ela desse sistema, você acha que ela vai ser contratada de novo? As condições sociais são muito desfavoráveis para a reinserção do sujeito”, diz.
O professor defende outros modelos para tratar da saúde mental, como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que propõe uma alternativa aos hospitais psiquiátricos. O paciente recebe o tratamento e o acompanhamento necessário mas pode retornar para casa no mesmo dia. No caso do CAPS III (indicado para municípios com mais de duzentos mil habitantes), o funcionamento é 24 horas, todos os dias, e possui leitos.
“Eu tenho a tranquilidade que posso levar meu familiar para ser atendido mesmo de madrugada, em casos de crise, então o olhar já se modifica. Se não existe essa tranquilidade, é criada a demanda pela internação”, observa Gradella. Outro serviço substitutivo aos hospitais são as Residências Terapêuticas, que oferecem abrigo às pessoas que permaneceram muito tempo internadas e perderam vínculos familiares.
Para a luta antomanicomial avançar, é preciso que tais serviços alternativos sejam efetivos e que políticas públicas se voltem a eles. “Se não mantiver essas políticas sob o controle do Estado, vamos ter a falência da Reforma Psiquiátrica. O que interessa para o setor privado são os hospitais e as medicações, porque o que mantém os antigos modelos de internação são interesses econômicos. O nosso desafio é mostrar que esses serviços podem ser cada vez mais eficazes, que produzem resultados mais efetivos que internação hospitalar”, afirma o professor.
Hospitais psiquiátricos que persistem
Mesmo que em números reduzidos após a Lei de Reforma Psiquiátrica, ainda existem hospitais psiquiátricos no Brasil. A região de Bauru conta com o hospital Thereza Perlatti, localizado em Jaú, que atende mais de 60 municípios. A instituição propõe tratamento respeitando os direitos e a cidadania dos pacientes e reforçando vínculos sociais para que estes não sejam perdidos.
Para a terapeuta ocupacional Melina Pirágine Milano, que trabalha no hospital há nove anos, a internação é necessária quando o paciente “oferece risco para própria vida e para a vida de terceiros, quando há tentativa de suicídio, agressão e ameaças, ou quando o quadro é de sofrimento intenso e se solicita ajuda”, embora observa que deva ser o último recurso. “A ideia não é se permanecer em uma internação, mas ficar o tempo necessário para se estabilizar de uma crise, realizar um trabalho de conscientização para restabelecer vínculos familiares que são desestabilizados pelas próprias crises psiquiátricas”, diz.
Na prática, Melina diz que, muitas vezes, a internação acaba sendo realizada antes das outras alternativas se esgotarem. Questionada sobre o motivo da precipitação, a psicóloga Marilia Belfiore Palacio, que também trabalhou no CAPS, opina que a sociedade ainda possui uma forte cultura hospitalocêntrica, que enxerga o hospital como a instituição mais adequada para oferecer saberes especializados, muitas vezes dispensando a atenção básica e a prevenção. “O que acontece também é que faltam recursos materiais, falta medicação básica e profissionais nas outras redes. Há CAPS que trabalha sem equipe mínima”.
O que é loucura?
Para discutir luta antimanicomial, é preciso discutir o estigma da loucura, que prejudica o tratamento e cria estereótipos que dificultam o resgate das relações sociais. Melina Pirágine lembra que saúde sempre é associada à falta de doença, mas que é preciso abrir o leque e levar em conta o bem-estar físico e emocional. “O tratamento não é só dar remédio para estabilizar da crise. Trata-se de uma pessoa que necessita de um ambiente saudável e de apoio social. Temos que ver o que o sujeito gosta e olhar para ele como cidadão ativo de sua própria história”.
Rodrigo de Lima Cândido, psicólogo do hospital Thereza Perlatti, diz que é importante enxergar o indivíduo como sujeito que tem a doença, e não alguém doente. “Os sintomas não tomam todo o conteúdo e tempo da pessoa. Há uma parte que precisa de cuidado dentro de um todo que possivelmente é saudável”. Melina diz que ainda é intenso o estigma que “louco não pode viver em sociedade”. “Aí a gente entra na discussão do que é loucura. Todo mundo é normal?”, questiona. “A gente tem que batalhar para que o transtorno não seja um carimbo de pessoa incapaz e que todo o resto acabou”.
O professor Osvaldo Gradella discute o diagnóstico de doença mental, que contribui com estereótipos e pode se tratar de uma mistificação da psiquiatria. “Um grande questionamento feito desde os anos 50 é o falseamento dos diagnósticos. A questão da doença mental nada mais é o sujeito que não se adapta à lógica da produção capitalista, não cabe nesse mundo regrado. O problema não está no funcionamento do cérebro. A gente precisa acolher as pessoas que estão sofrendo, mas não com essa visão definitiva e biologicista”. Ele lembra a importância de olhar para esses indivíduos como pessoas normais, que estão passando por transtornos: “As pessoas têm transtornos ao longo da vida, acontece com todos nós. Se eu não lhe dou a atenção adequada naquele momento, isso pode ir se amplificando. Eu preciso criar estratégias para que o sujeito seja acolhido e não é preciso diagnósticos para isso”.
Umas das dificuldades da luta antimanicomial é mudar não apenas as instituições, mas a visão sobre as pessoas com transtornos mentais. “Há um grande passado profissional que não entende o que é uma atenção psicossocial, não entende o que é um modelo aberto e acaba reproduzindo uma lógica manicomial mesmo estando num modelo substitutivo, porque continua olhando para o indivíduo como doente e incapaz. Esse ainda é um desafio e só vamos superá-lo com a participação ativa dos familiares e usuários na luta”, afirma Osvaldo.
Reportagem: Laiza Castanhari
Produção Multimídia: Helena Nogueira
Edição: Monique Ferrarini