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Relatos de ex-detentos comprovam violência nas penitenciárias

Grande déficit de vagas, encarceramento em massa e supremacia de facções criminosas são alguns dos fatores responsáveis pelos problemas do cárcere brasileiro

A letra da música foi inspirada no diário de Jocenir, ex-detento do casa de detenção do Carandiru

O começo do ano de 2017 foi marcado por uma série de rebeliões dentro dos presídios brasileiros. Só nos primeiros dias do ano, cerca de 130 presos foram mortos por conta de confrontos dentro dos centros de detenção. O Governo Federal chegou a liberar homens das forças armadas para atuar dentro dos presídios de alguns estados. Essa crise carcerária, contudo, não é uma novidade. Os acontecimentos do começo do ano eclodiram devido a inúmeros problemas presentes dentro do sistema prisional brasileiro.

O déficit de vagas, por exemplo, é um problema há mais de cem anos. No começo do século XX, só o estado de São Paulo já estava com um número nove vezes maior do que a capacidade dentro de seus presídios. Hoje a realidade não é muito diferente. Atualmente, o Brasil tem cerca de 700.000 detentos e um déficit de vagas de aproximadamente 50%, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça. De acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 40% das pessoas privadas de liberdade ainda não foram julgadas.

A doutoranda em Direito pela PUC-SP Dina Alves afirmou, em palestra realizada na UNESP de Bauru em fevereiro deste ano, que não há uma crise carcerária. “As rebeliões acontecem desde a época da escravidão. O que acontece é uma tentativa de disciplinar, é o Estado exercendo seu papel com a legitimidade da violência. A violência é a essência do Estado”. Ela é autora da dissertação “Rés Negras, Judiciário Branco”, na qual discute a situação carcerária do Brasil e acompanha uma série de mulheres negras que foram presas sob critérios que apontam racismo. 

Guerra às drogas

O tráfico é o principal motivo do encarceramento no Brasil. A Lei de Drogas, que completou dez anos em 2016, é a responsável por grande parte dessas prisões. Apesar de parecer um avanço para a situação carcerária no Brasil por tirar a pena de prisão para usuários, ela aumentou a pena para traficantes. A lei tem critérios subjetivos para diferenciar quem é usuário e quem é traficante, ficando responsáveis por decidir isso delegados e policiais que atendem o caso.

Juliana Borges, ativista da INNPD (Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas), que também esteve presente na palestra realizada na UNESP organizada pelo Coletivo Negro Kimpa, ressalta que a nova lei de drogas veio em um governo popular e colaborou para a situação do encarceramento no Brasil.

“Essa nova lei vem para corroborar com o discurso de punitivismo no Brasil. Aqui nós acreditamos que tudo se resolve com cadeia, nada se resolve de outra maneira. A gente se aproveita dessa cultura que existe no Brasil para agravar e aprofundar esse senso punitivista”.

A pesquisadora também diz que as principais críticas à Lei de Drogas não têm o objetivo de desmantelar de forma estruturante o tráfico no Brasil por focar em pequenos traficantes, atuando apenas na ponta da cadeia comercial, deixando intactas as estruturas mais profundas dessa economia do tráfico.

O doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo Bruno Paes Manso diz que o encarceramento em massa não tem uma relação direta com o aumento da violência. “É preciso levar outros fatores em conta. O mercado de drogas em São Paulo hoje é dominado por apenas uma facção e não existe concorrência. O PCC [Primeiro comando da Capital, organização criminosa de São Paulo] organizou todo um mercado de drogas dentro e fora da prisão e isso de alguma forma ajudou a diminuir os conflitos em ambos os casos”, afirma o pesquisador.

Violações no sistema

Paes diz que um dos grandes marcos no sistema carcerário brasileiro foi o massacre do Carandiru, que em 1992 foi responsável pela morte de 111 presos em uma ação policial para conter uma rebelião no Pavilhão 7. “Logo no ano seguinte do massacre aconteceu a fundação do PCC, e houve toda uma reformulação no sistema carcerário. Quando o PCC surge, o discurso era que os presos tinham que se unir contra o Estado”. Segundo o pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência da USP, desde essa época há a dominação dos presídios em São Paulo com a morte de rivais, e durante os anos de 1990 aconteceu o que vimos em 2017.

Alexandre*, 37 anos, é morador de um albergue noturno em Bauru, administrado pelo Centro Espírita Amor e Caridade, o CEAC. O morador, que já foi preso três vezes, conta que durante o tempo em que esteve lá, seus familiares passaram por situações vexatórias devido às condições do ambiente. “Logo quando cheguei, fui para uma salinha com 15 detentos. Só depois fui para as alas da prisão. Só quem passou por isso sabe como é a situação lá dentro”, conta Alexandre.

Bruno*, 25 anos, saiu do sistema no final do ano passado. O jovem, que está há 17 dias no CEAC, também conta que passou por muitas humilhações na cadeia.

“Lá dentro não tem essa história de direitos humanos, isso é da porta para fora. Lá dentro a gente é humilhado, temos que dormir no chão duro, apanhamos, levamos choque. Essa é a realidade”.

Em liberdade desde o ano passado, Marcos, 44 anos, conta sobre as regras, a ética e as normas de conduta impostas pelo PCC dentro dos presídios. “Quando fui preso em 2001, fui para o Cadeião em Bauru. Lá era uma ‘terra sem regra’, onde mandava quem tinha mais poder. Hoje em dia, o PCC manda em tudo, controla tudo. Existe uma ética, um respeito entre os presos que vem do PCC e faz com que as coisas fiquem melhores lá dentro. Segurança existe só do lado de fora da cadeia, lá dentro não”, completa.

Bruno Paes, que também é um dos organizadores do site Ponte Jornalismo e apura questões relacionadas a segurança pública, direitos humanos e justiça,  afirma que a principal violação que ocorre dentro do sistema carcerário é o domínio de uma facção. “As pessoas precisam respeitar as regras do PCC, então existe uma opressão por parte de uma facção que estabelece normas que devem ser cumpridas. A superlotação é outra grande violência que ocorre dentro do sistema. Hoje muitos presídios tem duas ou três vezes mais detentos do que a sua capacidade. O ambiente interno é degradante, muitas vezes os familiares gastam muito dinheiro com comida para os detentos”, completa.

Ressocialização?

Ao saírem da cadeia, usualmente essas pessoas voltam a cometer crimes, o que comprova a ineficiência do Estado brasileiro em ressocializar os presos. A reincidência é fator preocupante relacionado ao problema do encarceramento no Brasil. Um levantamento realizado pela Secretaria de Segurança Pública em 2014, mostrou que de cada 10 acusados por roubo em São Paulo, sete voltaram a praticar o mesmo crime. O período analisado foi entre janeiro de 2001 e julho de 2013.

Dina Alves não acredita ter uma resposta ou soluções para a melhoria nas condições nos presídios. “É difícil pensar em soluções para o cárcere, uma vez que vivemos em uma sociedade altamente racista e a prisão é utilizada também como forma de manutenção de privilégios pela ‘alta’ sociedade”, diz a doutoranda.

A pesquisadora Juliana Borges acredita que as alternativas penais possam ser um meio, desde que envolvam a sociedade civil e não somente o Estado.

“Eu acho que as penas alternativas são uma possibilidade, até porque a maioria das pessoas que estão no cárcere estão por crimes passíveis de penas alternativas, o que poderia reduzir bastante o encarceramento em massa”.

Abaixo, você pode responder um teste com perguntas sobre a situação dos presídios brasileiros.

 

Reportagem: José Felipe Vaz

Produção multimídia: Mariana Pellegrini Bertacini

Edição: Ana Flávia Cézar

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