Luis Gustavo Fernades tem 36 anos e há oito meses está em regime semiaberto no Centro de Progressão Penitenciária I, na cidade de Bauru. Ele trabalha auxiliando os professores que ministram aulas dentro do CPP, por meio da Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” de Amparo ao Preso (FUNAP) – programa do governo estadual que atua na reeducação em 142 penitenciárias de São Paulo.
Com o programa, Luis conseguiu concluir o Ensino Médio e prestar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Ele conta que, durante o regime fechado, foi inspirado por um funcionário da penitenciária que, aos 64 anos, estava terminando sua graduação. Perceber a força de vontade desse senhor despertou nele a vontade de estudar. “A iniciativa de mudança parte de nós. Fui vendo as pessoas que estavam ao meu redor, com esse empenho de mudar, e pensei: se eles podem, por que eu não?”, conta.
O contato com os projetos de reeducação o aproximou dos livros durante o cumprimento da pena. Durante o regime fechado, trabalhou como monitor da biblioteca da unidade e passou a admirar o trabalho de escritores como Dan Brown e Augusto Cury. O reeducando relata os avanços que teve na redação de textos. “Minha mãe vê minhas cartas antes e depois de começar as leituras e até a escrita melhorou, ajudou muito. Até pra redação do Enem eu tive auxílio, por causa da biblioteca”, relata Luis.
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Atualmente, Luis Gustavo cursa Direito em uma universidade particular da cidade, no período da manhã. A graduação é custeada com recursos próprios e com a ajuda da família. O reeducando diz que seu interesse pela área vem desde a infância, quando, segundo ele, a maioria dos meninos sonhava em ser advogado ou piloto de caça (inspirados pelo filme “Top Gun”, lançado na década de 80).
A faculdade é o lugar onde James Marques quer voltar a frequentar. Natural de Florianópolis, o catarinense cumpre pena em regime semiaberto no CPP I há 5 meses e quer finalizar o curso de Administração de Empresas, interrompido restando apenas um semestre para sua conclusão.
James tem 31 anos e ocupa duas funções dentro da penitenciária: auxiliar do setor administrativo e monitor nas atividades de reeducação. Junto com Luis Gustavo, contribui com o trabalho do corpo docente responsável pelas aulas noturnas da unidade.
A escola do CPP I representa uma oportunidade para evolução intelectual dos reeducandos. Rende diploma de mesmo valor ao das escolas públicas da cidade, emitido pela secretaria de educação do estado. O estudo também se converte em remissão de pena. Um dia é removido da pena final para cada três dias estudados (o Estado conta como dia de estudo o período de quatro horas letivas).
As aulas são ministradas por professores de escolas estaduais da cidade. O método de ensino é semelhante ao das outras instituições, mas com uma diferença: as turmas são multisseriadas. Em uma mesma sala, estudam alunos do 6º e 7º ano do Ensino Fundamental; em outra, convivem simultaneamente estudantes de todos os anos do Ensino Médio.
Trabalho que ensina
Os reeducandos trabalham para diferentes empresas. No pavilhão, existem lavanderias e produção de doces (como cocada e paçoca), vidraças, travas elétricas para automóveis e até uma horta, da qual alimentos são colhidos duas vezes por semana. O trabalho é importante para o reeducando como ocupação e pode render um certificado de profissionalização que auxilia na procura por emprego quando ele voltar à liberdade. A volta, aliás, pode vir mais cedo para quem trabalha, de forma semelhante ao estudo. Para cada três dias trabalhados, um dia é removido da pena a ser cumprida.
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Existe também a possibilidade de trabalho fora do complexo prisional. Mecânico, pintor e pedreiro são algumas das opções para os reeducandos. João Colella, diretor do centro de trabalho e educação do CPP I, afirmou que, em todas as secretarias da cidade, ao menos um reeducando trabalha. Para poder trabalhar nas ruas, o detento deve ter cumprido um sexto da pena, estar na unidade há mais de 30 dias e apresentar bom comportamento.
O salário recebido em atividades externas deve ser superior a 75% do salário mínimo. Atualmente, representa cerca de 700 reais, de acordo com a Lei de Execução Penal. O salário é depositado em uma conta vinculada ao Estado. O montante não pode ser transferido à terceiros, sendo utilizado apenas por suas famílias após trâmites burocráticos.
Os familiares possuem certa liberdade com Colella. Durante a entrevista, ele recebeu um telefonema da mãe de um dos reeducandos. “Elas ligam falando que acharam emprego na rua. Todo mundo em um dado momento tem oportunidade, alguns não querem. Então a gente foca em quem quer. A gente faz um trabalho de divulgação, mas alguns não querem trabalhar nem estudar. A opção é deles”, diz. João conta que, às vezes, não conseguem atender toda a demanda. Todavia, estão sempre procurando novas empresas para se instalar no CPP.
No CPP I, estão 2399 reeducandos, dos quais 862 exercem algum tipo de trabalho e 117 estudam. Entre os que trabalham, o percentual do CPP I (36%) é maior do que a média nacional (20%), porém o índice é menor entre os que estudam – são pouco menos de 5%, contra 11% da população carcerária nacional de acordo com dados do INFOPEN – levantamento nacional de informações penitenciárias de dezembro de 2014.
Projetos de reeducação ajudam na reinserção à sociedade
Além dos trabalhos fixos, existem ações esporádicas voltadas à profissionalização e regularização desses cidadãos. Uma delas é a Via Rápida Expresso, projeto que oferece cursos de pintura residencial e organiza reformas e revitalizações de espaços públicos. João Colella comenta que os reeducandos do CPP I deverão realizar em breve atividades em duas escolas de Pirajuí, a 60 quilômetros de Bauru.
Em 2016, a Escola Estadual João Maringoni foi uma das atendidas por esse projeto de reeducação. Durante o mês de julho daquele ano, 75 reeducandos do CPP III reformaram a instituição localizada no Núcleo Residencial Beija-Flor, em Bauru. Foram feitos serviços elétricos, hidráulicos, pinturas, jardinagem e ações de revitalização de materiais. O Repórter Unesp foi conferir os resultados obtidos. Veja na galeria a seguir.
Para Maria Thereza Camargo Cardoso, vice-diretora da escola, o balanço do serviço é positivo. Segundo ela, os reeducandos envolvidos no projeto apresentaram ótimo comportamento durante o período de serviço e os ganhos para a escola foram enormes.
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A professora comenta que as mudanças foram muito bem recebidas pelos alunos. Frente a essa aprovação, um novo ofício foi enviado à prefeitura. O documento solicita serviços na limpeza externa da E. E. João Maringoni. A escola ainda não recebeu um parecer do pedido.
Veja o depoimento de Maria Thereza explicando um pouco melhor o trabalho prestado e sua opinião sobre a reinserção desses cidadãos na sociedade.
Outro projeto de reeducação vigente é a Jornada de Cidadania e Empregabilidade, realizada nas dependências dos CPPs pela Secretaria da Administração Penitenciária do governo estadual. O evento acontece durante uma semana e oferece palestras profissionalizantes e motivacionais, ações de saúde e regularização de documentos.
Na edição mais recente, ocorrida em maio de 2017, 1100 detentos participaram de atividades. Entre os serviços ofertados estavam a expedição de documentos, cortes de cabelo e testes rápidos de glicemia, HIV e hepatite.
James Marques participou dessas atividades e reconhece a importância de tais ações. “Às vezes, quem está aqui acha que não vai ter oportunidade. Aí, eles mostram que organizações e pessoas querem ajudar o preso quando ele sair daqui”, avalia.
Veja o vídeo no qual Luis Gustavo e James comentam sobre oportunidades e possíveis melhorias que poderiam ser implementadas no processo de reeducação:
O estudo e o trabalho carcerário no Brasil
De acordo com dados de 2014 do INFOPEN, o Brasil ultrapassou a marca de 622 mil pessoas presas. Dessas, cerca de 112 mil cumprem pena em regime semiaberto.
Pouco mais de 68 mil pessoas (11%) da população carcerária geral estão envolvidas com alguma atividade relacionada à educação. Desse grupo, 14% estão em fase de alfabetização e 60% na educação básica (ensino fundamental e médio). Menos de 1% está inserido no ensino superior. Cursos técnicos e de capacitação profissional agregam 11%. Os 14% restantes se dividem em programas de remissão de pena via leitura ou via esporte.
Em relação aos 20% que trabalham, três quartos exercem atividades dentro da unidade prisional, enquanto os demais trabalham em atividades externas. A distribuição dessas atividades é pouco concentrada, com 14% no setor agrícola e rural, 31% nas indústrias e na construção civil, 23% nos serviços e o restante de 32% no apoio aos estabelecimentos.
Mesmo com as oportunidades oferecidas, a reincidência penal é um problema no sistema penitenciário brasileiro. Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, chegou a estimar que aproximadamente 70% dos presos são reincidentes. A medição desta situação é complicada, visto que um percentual grande da população carcerária é mantida presa sem julgamento. De acordo com relatório do Conselho Nacional de Justiça, um em cada três presos brasileiros aguarda julgamento.
Um levantamento feito em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou que o índice de reincidência é de 24%. O levantamento foi feito apenas com processos julgados e finalizados. Dos reincidentes, 80% não completou sequer o ensino fundamental, sendo 21% analfabetos funcionais.
Reportagem: Arthur Finati e Guilherme Sette
Produção Multimídia: Ana Carolina Ribeiro
Edição: Jéssica Dourado